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Vidas Negras, Justiça, Violência Policial Paula Cardoso Vidas Negras, Justiça, Violência Policial Paula Cardoso

Odair Moniz: depois da faca invisível, entra em cena a sua "astúcia" fatal, agravada pela 'ameaça' do crioulo 

Por esta altura, há exactamente um ano, o país reagia, em sobressalto, a uma onda de protestos nas periferias da Área Metropolitana de Lisboa, motivada pelo assassinato de Odair Moniz, às mãos de Bruno Pinto, agente da PSP. O crime, prontamente justificado por narrativas racistas, assentes na criminalização da vítima e na defesa da Polícia, evidenciou, mais uma vez, a política de impunidade que grassa nas forças de segurança.  Aliás, não fossem os vídeos captados pelos moradores da Cova da Moura – onde Odair Moniz foi mortalmente baleado –, e talvez ainda estivéssemos a ouvir testemunhos sobre como a vítima empunhou uma faca contra o agente, forçando-o a disparar em legítima defesa. Não uma, mas duas vezes, sublinhe-se, não fosse Odair feito à prova de bala. Assassinado a 21 de Outubro de 2024, Dá, como era carinhosamente tratado, deixou viúva, dois filhos, e uma comunidade enlutada. Todos pedem Justiça. Todos pedimos Justiça, e ela passa pelo Tribunal de Sintra, onde o homicídio começou a ser julgado, na última quarta-feira, 22 de Outubro. Amanhã, 29, há mais.

Por esta altura, há exactamente um ano, o país reagia, em sobressalto, a uma onda de protestos nas periferias da Área Metropolitana de Lisboa, motivada pelo assassinato de Odair Moniz, às mãos de Bruno Pinto, agente da PSP. O crime, prontamente justificado por narrativas racistas, assentes na criminalização da vítima e na defesa da Polícia, evidenciou, mais uma vez, a política de impunidade que grassa nas forças de segurança.  Aliás, não fossem os vídeos captados pelos moradores da Cova da Moura – onde Odair Moniz foi mortalmente baleado –, e talvez ainda estivéssemos a ouvir testemunhos sobre como a vítima empunhou uma faca contra o agente, forçando-o a disparar em legítima defesa. Não uma, mas duas vezes, sublinhe-se, não fosse Odair feito à prova de bala. Assassinado a 21 de Outubro de 2024, Dá, como era carinhosamente tratado, deixou viúva, dois filhos, e uma comunidade enlutada. Todos pedem Justiça. Todos pedimos Justiça, e ela passa pelo Tribunal de Sintra, onde o homicídio começou a ser julgado, na última quarta-feira, 22 de Outubro. Amanhã, 29, há mais.

Foto do movimento Vida Justa

Não há dúvidas sobre a identidade do homicida: Bruno Pinto, agente da PSP, atingiu Odair Moniz com dois tiros, na madrugada de 21 de Outubro de 2024.

Um ano depois, na última quarta-feira, 22, o polícia começou a ser julgado no Tribunal de Sintra, e, repetindo um já estafado argumento entre as forças de segurança, optou por fazer do ataque à vítima a sua defesa.

Além de insistir na descrição de Odair como uma pessoa "astuta", que ia oscilando entre a passividade e a agressividade, o arguido sugeriu que o cabo-verdiano teria algum domínio de artes marciais, habilidade que, na sua ficção dos acontecimentos, inviabilizou os esforços para o imobilizar sem recurso à arma de fogo.  “Parecia que o bastão lhe fazia cócegas", declarou.

Como se não bastasse, o agente juntou ao retrato de indomabilidade de Odair elementos que parecem retirados de um mau filme de acção: o segundo disparo é explicado pela alegada ausência de efeitos do primeiro.

Qual "duro de parar", o cabo-verdiano não só terá permanecido em pé após o tiro inicial, como, relatou o polícia, parecia disposto a avançar sobre si.

Para completar o enredo do perigoso agressor, algures no testemunho, Bruno Pinto acusou Odair de proferir ameaças contra si e o seu colega, inclusivamente em crioulo cabo-verdiano, língua que assumiu desconhecer.

Num dia em que também se ouviu Ana Patrícia, viúva da vítima, Rui Machado, o outro agente envolvido nos trágicos acontecimentos, e uma moradora da Cova da Moura, ficou evidente que a tese da legítima defesa vai ser explorada desavergonhada e despudoradamente.

De tal forma que até a faca supostamente empunhada por Odair, porém invisível nos vídeos, reaparece nas convicções do arguido, entre inúmeras contradições.

O julgamento, marcado ainda pelas perguntas absolutórias do colectivo de juízes, continua amanhã,  29.

Até lá, o Afrolink partilha oito notas extraídas do primeiro dia, onde o acesso à sala de audiências se fez sob o filtro de uma lista de ‘personas non gratas’.  

Nota 1: Proibido entrar! O mistério dos nomes banidos

Levo o protocolo bem estudado: chego já com o cartão de cidadão em mãos, escancaro a mala para a devida verificação, e, acto contínuo, atravesso o detector de metais. É então que me apercebo da novidade: em vez de se limitar a confirmar a minha identidade, a equipa de segurança do tribunal verifica se o meu nome está “na lista”. Estranho o procedimento, quero questionar, mas mantenho o foco: o acesso à sala de audiências onde vai ser julgado o homicídio de Odair Moniz. Aliviada por não ter sido barrada, guardo a pergunta para um melhor momento, que chega depois de almoço. Como quem entretém o tempo, pergunto: “Olhe, esta manhã, quando apresentei o meu cartão de cidadão, reparei que consultaram umas folhas, para verificar se o meu nome estava incluído. Porquê?”. A resposta adensa a minha inquietação: “Se estivesse nessa lista, não a poderíamos deixar entrar”, explicaram-me. Cada vez mais intrigada, perguntei: o que as pessoas listadas fizeram para ser banidas? Fiquei sem resposta.  

Nota 2: Conhecem o caso Elson Sanches (Kuku)?

Quinze anos separam os assassinatos de Elson Sanches (2009) e Odair Moniz (2024), ambos no município da Amadora e na sequência de perseguições policiais, encerradas com disparos fatais. Nas duas situações, envolvendo agentes da PSP, as vítimas surgem conveniente e presumidamente armadas: vale tudo para justificar o recurso à lei da bala. No caso de Elson, também conhecido por Kuku, o agente relatou ter visto um objecto metálico brilhante, e ouvido um som semelhante ao manuseio de uma arma, antes de baleá-lo à queima-roupa. O tribunal não conseguiu provar a alegação – tornando o disparo injustificado e esvaziando a tese de legítima defesa –, mas a ausência de testemunhas no momento do crime, aliada à criminalização da vítima e falta de iluminação no local, conspiraram no sentido da absolvição do polícia. Ainda que Kuku fosse apenas um miúdo de 14 anos, e do outro lado estivesse um agente treinado e de quase 40 anos, a juíza entendeu que naquelas circunstâncias a decisão policial dificilmente poderia ser outra. E nem o facto de o disparo ter sido efectuado a escassos centímetros da cabeça de Kuku, ao jeito de uma execução, levou a magistrada a reavaliar o que classificou de “infeliz evento”. Poderá a narrativa da “legítima defesa” repetir-se no caso de Odair Moniz, tendo em conta que também aqui existe uma putativa arma – no caso branca – e todo um argumentário que criminaliza a vítima? O advogado José Semedo Fernandes, que representa a família de Odair, aproveitou as alegações iniciais do julgamento para lembrar as semelhanças deste processo com o de Kuku, sublinhando a principal diferença: desta vez temos imagens da intervenção policial. Muitas foram captadas por moradores munidos de telemóveis e, não fosse a sua pronta disseminação nas redes sociais, talvez tivéssemos um comunicado sobre a avaria das câmaras de videovigilância instaladas no local, da mesma forma que tivemos um auto de notícia da PSP com uma faca que afinal não o era.  “A defesa acredita que aqui a verdade vai ser encontrada, e que o arguido será condenado”. Assim seja!

Nota 3: Procurador investido em revelar os factos, colectivo de juízes parece apostado em mascará-los com teorias absolutórias

Sabemos quem matou Odair Moniz. Chama-se Bruno Pinto, é agente da PSP e está a ser julgado por homicídio. Sabemos também que, ao contrário do que a Polícia começou por alegar, a vítima não estava armada quando foi baleada. Sabemos ainda que o outro agente que se encontrava no local, Rui Machado, estava munido de uma lata de gás pimenta, que poderia ter usado para imobilizar Odair, mas optou por não o fazer. “Seis minutos é a linha de tempo que está aqui a ser analisada”, lembrou, mais do que uma vez, o procurador Pedro Lopes Pereira, colocando o foco nas decisões que determinaram os factos ocorridos entre as 5h25 e as 5h31 de 21 de Outubro de 2024. “Retrospectivando: considera proporcional que se tenha chegado a esta situação?”, questionou o representante do Ministério Público, recordando que na origem da intervenção de Bruno Pinto esteve um eventual crime de desobediência, e outro de condução perigosa. O procurador quis igualmente saber porque é que o agente disparou duas vezes contra Odair – afinal, se o objectivo era imobilizar a vítima, não estaria já imobilizada com o primeiro tiro? Pedro Lopes Pereira sublinhou ainda que a dupla de agentes já estava à espera de reforços policiais quando se deu a confrontação com Odair Moniz, e questionou-os sobre a não utilização do gás pimenta. Em separado, o arguido Bruno Pinto e a testemunha Rui Machado repetiram a mesma ficção dos acontecimentos: por um lado, naquela madrugada o vento desaconselhava o uso do gás pimenta; por outro lado, o manuseio do spray tornou-se desafiante perante a atitude da vítima. Nos antípodas da intervenção do procurador, o colectivo de juízes pareceu estar mais interessado em oferecer ao arguido argumentos para uma legítima defesa, em vez de o confrontar com a consequência das suas escolhas. Desde logo, a insistência na falta de formação da Polícia, nomeadamente em carreira de tiro, sugere que Bruno Pinto tenha sido vítima de uma impreparação estrutural. Do mesmo modo, quando se questiona  “Conformou-se com este resultado?”, “Voltaria a fazer o mesmo?”, ou “Alguma vez desejou este resultado?”, parece que se está a forçar uma reparação da imagem  do agente, apresentado com um profissional bem intencionado, a quem um azar bateu à porta. “Infeliz evento”, como no caso de Kuku? As manobras de absolvição incluíram mesmo uma analogia com o futebol: perante a explicação do arguido para a trajectória fatal dos seus disparos – quando os mesmos supostamente foram direccionados para os membros inferiores da vítima –, o juiz Carlos Camacho lembrou-se de sugerir que há um movimento semelhante no desporto-rei. Resumidamente: tal como o agente inclina o torso ligeiramente para trás quando dispara, também futebolista o faz para ganhar impulso quando remata.

Nota 4: Odair culpado por ser uma pessoa negra...perdão, astuta!

Armado ou desarmado, encorpado ou franzino, alcoolizado ou sóbrio, com ou sem cadastro, aparentemente pouco importa. Se de um lado estiver um elemento das forças de segurança e, do outro, um homem negro, este transforma-se automaticamente num alvo a abater. A presunção da culpa negra está de tal forma instituída nas polícias que, à falta de provas, aposta-se tudo na construção de uma história de criminalidade que transforme a vítima em agressor. O caso de Odair não é excepção. Repetidamente descrito pelo agente que o assassinou como uma “pessoa astuta”, o cabo-verdiano foi apresentado em tribunal como um perigo ambulante, que ia atropelando uma série de pessoas, e chegou mesmo a ameaçar de morte a dupla da PSP. Para a narrativa soar mais credível, Bruno Pinto, que assume não saber crioulo, expressa o que terá ouvido de Odair: “Mi ta mata”, ou qualquer coisa do género.  “Ele alterava de personagem: passivo-agressivo, passivo-agressivo”, apontou o agente que o matou, estendendo o juízo incriminatório à generalidade da Cova da Moura. “O bairro oferece protecção”, observou Bruno Pinto no seu depoimento, garantindo que na madrugada fatídica efectuou os primeiros disparos para o ar em resposta a um avanço popular, alegadamente instigado pelos pedidos de ajuda de Odair. “O que é que fiz, o que é que se passa?”, terá sido um dos ‘alertas’ a soar rua acima, ao encontro de um grupo que, segundo o arguido, está ligado à “criminalidade organizada e violenta”. Noutra referência aos perigos da Cova da Moura, o agente adiantou: “Quando passamos por eles não cometem nenhum crime, assobiam”. Já Odair, além da atitude astuta, ficou ‘marcado’ por um suposto domínio de artes marciais.  “Ele mantém sempre uma boa postura”, notou o arguido, atribuindo o equilíbrio à prática desportiva.

Nota 5: Dúvidas razoáveis - faca na imaginação, tiro à queima-roupa

“Num primeiro momento, o arguido é peremptório a dizer que Odair Moniz estava munido de uma faca. Depois refere que não sabe dizer a 100% se havia uma faca ou uma lâmina”. A incoerência, apontada ao agente da PSP, é assinalada pelo procurador que, já depois de visionadas as imagens de videovigilância em tribunal, confronta Bruno Pinto: afinal, havia ou não havia uma faca? Hesitante, o arguido devolve afirmativamente: “Eu agora tenho a certeza”. Questiono-me: na altura, não teve a mesma convicção? Então porque é que disparou contra uma pessoa desarmada? Mais: se, de facto, em algum momento suspeitou da existência de uma faca, não seria lógico assumir que, logo após os disparos, procurasse localizar e neutralizar a arma? “Deveria tê-lo feito, mas não era a minha preocupação”, afirmou, igualmente titubeante perante uma hipótese colocada pelo advogado José Semedo Fernandes. “Garante que o tiro à queima-roupa não foi disparado no momento em que estava debruçado, em cima de Odair?”. Antes da resposta do arguido, o contexto: apesar da insistência na tese da indomabilidade da vítima, há pelo menos um momento em que a intervenção policial consegue conter Odair, que fica de bruços sobre um carro e de costas para Bruno Pinto, permitindo a este ganhar alguma vantagem física. Terá sido nesta situação, já com o cabo-verdiano manietado, que o agente disparou o primeiro tiro? “Acredito que não”, atira o homicida, insistindo na superior capacidade de Odair para resistir. “Tanto no primeiro como no segundo tiro, ele encontrava-se a vir para cima de mim, e eu protejo-me”. Facto: aquando do primeiro tiro, não se vê, nas imagens, nenhum clarão. Como é que com um disparo à queima-roupa, o agente avança para um segundo, sob a alegação de que não tinha a certeza de ter acertado o primeiro? Afinal, queria matar ou manietar?

Nota 6: Mais dúvidas razoáveis – arma no coldre, rádio no chão

Na noite do homicídio de Odair Moniz, Bruno Pinto fazia a patrulha com Rui Machado, agente que está a ser acusado de falso testemunho por, juntamente com outro PSP, ter afirmado que viu um punhal por baixo do corpo de Odair, algo que se comprovou ser mentira. Por causa deste processo, a presença de Rui Machado no julgamento de Bruno Pinto ficou circunscrita a questões não relacionadas com a arma branca. Feito este enquadramento, há a destacar dois momentos do seu testemunho. O primeiro prende-se com as armas que usou, o segundo tem que ver com os tiros que mataram Odair. Vamos por partes: assim que saiu da viatura, empunhou a arma de fogo em direcção a Odair, para o intimidar, mas acabou por recolhê-la, quando entendeu que não era necessário manter essa abordagem. “Não achou necessário porquê?”, questionou o procurador, baralhando o agente. “Pode repetir a pergunta?”. Na resposta, Rui Machado secundou a leitura do autor dos disparos: “Inicialmente [Odair] sai do carro com um comportamento passivo. Embora não esteja a colaborar connosco, não partiu logo para a agressão”. Prosseguindo com os pedidos de esclarecimento, o procurador indagou: em vez da arma de fogo, o agente optou pelo bastão extensível, e nem tocou no gás pimenta que transportava, será que não lhe passou pela cabeça usar o spray, ou entendeu que as condições não eram favoráveis à sua utilização? “Ambas as duas”, respondeu, escancarando mais uma incongruência.  Avancemos para os tiros: ao mesmo tempo que Rui Machado relatou a agressividade de Odair e dificuldade em manietá-lo, ficámos a saber que desperdiçou uma oportunidade para o conter – em prol de um objecto que poderia recuperar depois. Ficámos igualmente a saber que o que lhe ocorreu fazer numa situação de confronto físico entre a vítima e Bruno Pinto, foi dar costas à altercação. “Estou com o bastão, dou um empurrão, e ele [Odair] embate contra a parte traseira de uma viatura, desfiro uma bastonada, quando vou para desferir a segunda levo o meu braço atrás, o meu rádio saltou e caiu atrás de mim, cerca de um metro e pouco. Virei-me de costas para os dois. O meu colega continuava na altercação, digamos assim, com Odair”. Conta o agente que foi nesse instante, em que estava de costas, que ouviu mais um tiro, o terceiro da noite – dois tinham sido para o ar, e este foi primeiro a acertar na vítima. “Não sabia quem tinha sido atingido, nem quem tinha efectuado o disparo: se tinha sido o meu colega, o Odair, ou um disparo para o ar. Viro-me para os dois, primeira imagem que tenho é o Odair com a mão esticada na cabeça do meu colega numa posição de agressão. O meu colega meio que recuava, com a arma apontada na direcção das pernas do Odair. Dirijo-me na direcção dos dois, e quando estou a chegar há mais um disparo, e o Odair caído no chão. Naquele momento não me apercebi do sucedido, estava completamente sob o efeito túnel”. Foi aí que Rui Machado ainda carregou sobre a vítima com uma bastonada, porque, garante, não conseguiu travar o impulso que já levava. O testemunho torna bastante plausível a hipótese aventada por José Semedo Fernandes, de que o primeiro tiro a atingir Odair aconteceu quando o mesmo estava imobilizado, encostado a um carro. É, contudo, ao segundo tiro que o cabo-verdiano cai sobre o asfalto, de barriga para baixo, embora tenha aparecido posteriormente de barriga para cima, circunstância que levou a juíza presidente do colectivo a questionar: “Foi por via da sua acção que [a vítima] acabou por ficar de barriga para cima?”. “Não lhe consigo dizer.”

Nota 7: O grito de Odair – “Sou doente” – e a mão ferida que as algemas policiais queriam ignorar

Os agentes da PSP Bruno Pinto e Rui Machado coincidem no retrato da resistência oferecida por Odair Moniz. “Sou doente, sou doente. Arma não, bastão não”, terá vociferado a vítima, que começou por levantar os braços, tornando assim visível a ligadura que lhe cobria uma das mãos. “Chegou a explicar que tinha um ferimento?”, perguntou o advogado José Semedo Fernandes, numa alusão a uma queimadura que, desde Maio, mantinha Odair de baixa médica. Não tendo a vítima explicado, questiono-me se não seria lógico assumir que a referência a uma doença pudesse estar relacionada com a mão que a vítima fez questão de elevar. Estaria Odair a recusar ser algemado por ser “uma pessoa astuta”, como tantas vezes repetiu o agente que o matou, ou por estar a recuperar de um ferimento que as algemas iriam agravar? A ausência de diálogo entre os agentes e a vítima parece ter marcado os seis minutos de interacção que tiveram, dominados, no testemunho dos PSP, por ameaças. “Vou-vos matar filhos da p***”, terá avisado Odair que, mesmo com a mão ligada e sob o efeito de álcool e estupefacientes, permanecia, aos olhos dos agentes, incapaz de manietar.  (os exames toxicológicos indicaram que tinha no sangue de 1,98 gramas de álcool por litro, e uma concentração de canabinóides de 1 nanogramas por mililitro).“A adrenalina dele estava muito alta devido à perseguição, à fuga e por ter embatido”, numa série de carros antes de parar, considerou Rui Machado, insistido na ficção –“Tentámos de tudo”–, mas assumindo que ignoraram o ferimento de Odair.  Afinal, conforme declarou em tribunal, estavam a tentar algemá-lo “na mão que desse”. Já Bruno Pinto aproveitou todas as oportunidades para salientar o quão perigosa é a Cova da Moura. “Ali optei pela minha vida e pela do meu colega”. Para Odair restou a morte.

Nota 8: Regressar da morte – o pesadelo de uma família destroçada

“A vida mudou muito?”. Diante da juíza que preside ao colectivo de juízes, Ana Patrícia Moniz, viúva de Odair, não hesitou um segundo antes de responder: mudou “bastante”, mudou “tudo”. Incapaz de pregar olho desde o assassinato do seu “Dá”, a ajudante de cozinha, lembra que ele era “o pilar da casa”, que “nunca deixava faltar nada”. Como se não bastasse o pesadelo que representa a perda irreparável do companheiro de 23 dos seus 37 anos de vida, ‘Mónica’, como também é conhecida, recordou em tribunal que a violência policial contra a sua família não acabou com o homicídio. “Rebentaram-me a porta, ponho um armário [atrás da porta] para tentar dormir”, relatou a viúva, e mãe dos dois filhos de Odair. A receber tratamento psiquiátrico desde Novembro do ano passado, a ajudante de cozinha partilha os danos emocionais que observa também nos filhos, de 21 e quatro anos. “O mais velho está com depressão, não sai do quarto”, lamenta, enquanto descreve como o mais novo corre para o comando da televisão, desligando-a, de cada vez que surge uma notícia sobre o pai. “Ainda hoje pergunto-me o que aconteceu com o meu marido”, sublinha a viúva, que passou a andar movida por uma bateria de medicamentos: anti-depressivos, calmantes, SOS para ansiedade. Perdas somadas, a família reclama 200 mil euros de indemnização. Pague-se! Faça-se Justiça.

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Em nome da liberdade, não da repressão: uma resposta feminista à proibição da burca

O Parlamento aprovou hoje, na generalidade, o projecto de lei que proíbe o uso, em espaços públicos, de “de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto", designação onde se incluem as burcas. A proposta, do Chega passou com o apoio do PSD, Iniciativa Liberal e CDS e contou com votos contra do PS, Livre, PCP e Bloco de Esquerda. PAN e JPP abstiveram-se.  “Enquanto mulher feminista e deputada socialista”, Eva Cruzeiro explica, neste artigo de opinião que o Afrolink publica, porque se recusa “a aceitar que a emancipação das mulheres seja invocada para legislar contra elas”. “Esta medida não protege as mulheres muçulmanas, silencia-as. Não promove liberdade, impõe exclusão. Não defende os seus direitos, criminaliza a sua diferença”.

O Parlamento aprovou hoje, na generalidade, o projecto de lei que proíbe o uso, em espaços públicos, de “de roupas destinadas a ocultar ou a obstaculizar a exibição do rosto", designação onde se incluem as burcas. A proposta, do Chega passou com o apoio do PSD, Iniciativa Liberal e CDS e contou com votos contra do PS, Livre, PCP e Bloco de Esquerda. PAN e JPP abstiveram-se.  “Enquanto mulher feminista e deputada socialista”, Eva Cruzeiro explica, neste artigo de opinião que o Afrolink publica, porque se recusa “a aceitar que a emancipação das mulheres seja invocada para legislar contra elas”. “Esta medida não protege as mulheres muçulmanas, silencia-as. Não promove liberdade, impõe exclusão. Não defende os seus direitos, criminaliza a sua diferença”.

Texto de Eva Cruzeiro

A aprovação do projeto que proíbe o uso da burca em espaço público, apresentado pelo Chega e viabilizado pelos votos do PSD, da Iniciativa Liberal e do CDS, constitui um grave retrocesso nos valores de liberdade, igualdade e inclusão que devem sustentar qualquer democracia plural.

Enquanto mulher feminista e deputada socialista, recuso-me a aceitar que a emancipação das mulheres seja invocada para legislar contra elas. Esta medida não protege as mulheres muçulmanas, silencia-as. Não promove liberdade, impõe exclusão. Não defende os seus direitos, criminaliza a sua diferença.

A imposição sobre o modo como as mulheres se vestem, seja por obrigatoriedade ou por proibição, é sempre uma forma de controlo sobre os seus corpos. Quando o Estado define o que uma mulher pode ou não usar, está a perpetuar o mesmo tipo de opressão que, em outras geografias, condenamos.

Não podemos permitir que o feminismo seja instrumentalizado por discursos da extrema-direita para justificar medidas islamofóbicas. A luta feminista é, e sempre será, uma luta pela liberdade de todas as mulheres, incluindo as que não se enquadram nos padrões culturais ocidentais. O verdadeiro feminismo não impõe libertações por decreto. Escuta, respeita e apoia.

Proibir a burca coloca as mulheres muçulmanas numa encruzilhada injusta. Ou abandonam os seus princípios religiosos e culturais ou são excluídas da vida pública. Para muitas, isso poderá significar deixar de sair à rua, deixar de estudar ou de trabalhar. Em vez de promover integração, esta medida acentua a invisibilização.

Este não é um debate sério sobre segurança, é uma falsa solução para problemas que não se resolvem com proibições. É também um ataque à liberdade religiosa, à autodeterminação e à dignidade de milhares de mulheres que fazem parte da nossa sociedade.

Quantas mulheres portuguesas muçulmanas foram ouvidas na construção desta proposta? Quantas foram chamadas a opinar sobre uma medida que afetará diretamente as suas vidas?

Há quem diga que estas mulheres muçulmanas não conseguem denunciar ou reclamar por causa das condicionantes religiosas, culturais, familiares ou da dependência económica. Mas o mesmo acontece com muitas mulheres cristãs que, em contexto de violência doméstica ou até de violação dentro do casamento, também permanecem em silêncio, por medo, por vergonha, por isolamento ou por pressão social. E nem por isso propomos proibir o casamento cristão ou legislar contra a vida familiar tradicional. O que fazemos, ou deveríamos fazer, é garantir apoio, criar condições reais de autonomia, ouvir as mulheres e agir com responsabilidade. Isso implica desenvolver políticas públicas de informação e consciencialização, investir em canais seguros de denúncia e reforçar redes de apoio psicológico, jurídico, habitacional e económico, tanto do Estado como da sociedade civil. Só assim podemos criar alternativas concretas de libertação, em vez de impor restrições que apenas reforçam o isolamento e o estigma.

Se há mulheres a usar burca contra a sua vontade em Portugal, é nosso dever agir, como agimos em relação a qualquer forma de opressão. Para isso, devemos reforçar mecanismos de apoio, criar linhas de denúncia seguras, investir em respostas de proteção e empoderamento. Mas quando existem mulheres que usam burca por sua livre e consciente vontade e lhes é proibido fazê-lo, estamos a limitar a sua liberdade.

Pessoalmente, posso não me rever no uso da burca. Mas os meus gostos, convicções ou referências culturais não podem justificar a imposição de normas sobre os outros. E o mesmo se aplica em sentido inverso. Liberdade é isso, o direito de cada um existir plenamente, desde que sem causar dano ao outro.

Devemos apoiar todas as mulheres, e não legislar contra algumas. Precisamos de mais escuta e menos imposição. Mais inclusão e menos exclusão. E, acima de tudo, mais compromisso com uma sociedade onde todas as mulheres possam viver com dignidade, autonomia e respeito.

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“O que há de Negro na História da Arte?”, Alayo Akinkugbe revela

Mais de cinco anos depois de ter criado a página ABlackHistoryofArt, no Instagram, Alayo estende a sua intervenção a várias outras plataformas, com destaque para o podcast “A Shared Gaze” (Um olhar partilhado), a que juntou, já neste ano, o lançamento do seu livro de estreia, intitulado “Reframing Blackness, What's Black About History of Art” (Reenquadrando a Negritude, O que há de Negro na História da Arte).  A obra, recém-editada pela Penguin, serve de mote para uma conversa com o Afrolink, realizada em vésperas da apresentação portuguesa, marcada para as 18h30 de hoje, 7, no TBA – Teatro do Bairro Alto.  O momento, com moderação do autor, actor e curador Paulo Pascoal, dá uma dimensão profissional a uma já longa relação de Alayo com Lisboa.  “Nunca trabalhei em Portugal, mas nos últimos 10 anos tenho passado muito tempo no país”, diz, partilhando os planos de transformar a actual autorização de residência num pedido de cidadania.

A cada imagem e texto apresentados, de publicação em revelação, Alayo Akinkugbe foi preenchendo, no Instagram, o vazio de referências que encontrou em Cambridge. “Não queria sair com um diploma em História da Arte, mas sem saber nada, ou a saber muito pouco sobre artistas negros”, conta ao Afrolink, recuando aos primórdios de criação da página @ABlackHistoryofArt. Mais de cinco anos depois, Alayo estende a sua intervenção a várias outras plataformas, com destaque para o podcast “A Shared Gaze” (Um olhar partilhado), a que juntou, já neste ano, o lançamento do seu livro de estreia, intitulado “Reframing Blackness, What's Black About History of Art” (Reenquadrando a Negritude, O que há de Negro na História da Arte).  A obra, recém-editada pela Penguin, serve de mote para uma conversa com o Afrolink, realizada em vésperas da apresentação portuguesa, marcada para as 18h30 de hoje, 7, no TBA – Teatro do Bairro Alto.  O momento, com moderação do autor, actor e curador Paulo Pascoal, dá uma dimensão profissional a uma já longa relação de Alayo com Lisboa.  “Nunca trabalhei em Portugal, mas nos últimos 10 anos tenho passado muito tempo no país”, diz, partilhando os planos de transformar a actual autorização de residência num pedido de cidadania. “Fiquei muito feliz com o convite para estar no TBA, porque me permite chegar a outro público, e também porque quero muito que o livro seja publicado em português”. Seja em que idioma for, o compromisso para romper com os cânones mantém-se, mais ainda perante o avanço da extrema-direita. “É em momentos como este, em que há muita oposição e o mundo está tão sombrio e difícil, que precisamos continuar a falar”.

Alayo Akinkugbe, fotografada por Cameron Ugbodu

Impossível de ignorar, o contraste recalibrou, precocemente, as lentes raciais de Alayo Akinkugbe. “A minha compreensão da negritude sofreu uma grande mudança, porque saí da maior nação negra, para um lugar onde a maioria das pessoas era branca”.

Na altura com 11 anos, a curadora e escritora revisita hoje, aos 25,  como a saída da Nigéria de nascimento, e a entrada num colégio privado no Reino Unido alterou, em definitivo, a sua perspectiva de “como a negritude se relaciona com a branquitude, ou com a europeidade”.

A reconfiguração, assinala Alayo em conversa com o Afrolink, marca o tom de “Reframing Blackness, What's Black About History of Art” (Reenquadrando a Negritude, O que há de Negro na História da Arte), o seu livro de estreia, e mote para a conversa desta tarde no TBA – Teatro do Bairro Alto.

Antes do encontro, marcado para as 18h30, o Afrolink entrevistou a também autora da página @ABlackHistoryofArt, criada em 2020 para preencher os vazios de uma licenciatura em Cambridge.

“Não queria sair com um diploma em História da Arte, mas sem saber nada, ou a saber muito pouco sobre artistas negros”.

Desde o primeiro ano do curso confrontada com a hegemonia branca do currículo da universidade, e então estudante encontrou, num artigo académico, o caminho para subverter essa desigualdade.

“Fiz um trabalho sobre arte contemporânea nos EUA e no Reino Unido, a partir dos anos 80 e, de repente, tive acesso às obras de artistas negros”, recorda Alayo, desde esse momento determinada a aprofundar essa exposição.

“Sabia que, depois de terminar o artigo, não teria muitas oportunidades de aprender mais, a não ser através da minha pesquisa independente.

Então, comecei a publicar no Instagram, criei a página como uma forma de me autoeducar sobre o que os artistas negros têm feito ao longo da história em diferentes partes do mundo”.

Do Instagram para a Penguin

A investigação acabou por também aguçar o interesse “pela forma como as figuras negras têm sido retratadas na História da Arte europeia; como modelos, musas e temas negros têm sido descritos; e como os artistas têm nomeado – ou não – os seus retratos”.

Desse misto de necessidade e curiosidade gerou-se a força motriz d’ @ABlackHistoryofArt, rapidamente transformada num fenómeno de popularidade, entretanto alargado ao podcast “A Shared Gaze” (Um olhar partilhado).

“Comecei em Fevereiro de 2020 e, em Junho de 2020, com o forte ressurgimento do Black Lives Matter, devido ao assassinato de George Floyd, a página explodiu. Muitas pessoas escreveram-me a dizer que tinham estudado Arte, ou História da Arte, mas nunca tinham aprendido sobre artistas negros”.

Até então convencida de que as suas inquietações eram únicas – “Nenhum dos meus colegas parecia se preocupar na universidade” –, depressa a escritora compreendeu que as suas experiências eram comuns a pessoas de diferentes gerações.

“Cerca de um ano depois de ter criado a página, fui abordada para escrever o livro”, nota, recuando a história cerca de quatro anos. “Estava prestes a terminar a minha licenciatura, quase a fazer 21 anos, e não teria tido a confiança para avançar se não fosse o convite”.

Desafiada pela Penguin, Alayo conta que o título foi uma das primeiras coisas que lhe ocorreu, acompanhada de muitos questionamentos.

“Fiquei a pensar: como vou definir a negritude? Então, no prefácio, falo muito sobre como a negritude é vivida de forma diferente em lugares diferentes. De como é uma multiplicidade e não um monólito, de como não significa uma única coisa”.

Demarcando-se de “uma definição estática e fixa”, a curadora insiste em sublinhar que escreve a partir das subjectividades, ainda que focada na História da Arte ocidental e europeia, por entender que é “nesse contexto que a negritude é marginalizada”.

Interessada em “abordar essa tensão” – inexistente, por exemplo, na História da Nigéria, por mais que existam lastros coloniais –, traz para as páginas de “Reframing Blackness” exemplos que ilustram como, ao longo do tempo, se tem produzido e reproduzido o apagamento de figuras negras na arte, e como os artistas e curadores negros estão a contribuir para iluminá-las.

“Barbara Walker é uma artista britânica caribenha que tem recriado muitas pinturas canónicas”, aponta Alayo, explicando que o seu livro apresenta uma dessas manifestações artísticas, reconstruída a partir da obra de Titian, “Diana and Actaeon”, exposta na The National Gallery de Londres.

“Bem na borda da pintura, a tentar proteger a mulher branca nua, que é Diana, a protagonista, há uma mulher negra. A forma como Titian a pintou, em frente a um tronco de árvore, faz com que mal a consigamos ver. Tem de se olhar com muita atenção para reparar nela, porque está lá apenas para contrastar com a brancura da Diana”.

A leitura, acrescenta a escritora, é desconstruída e reconstruída por Barbara Walker.  “Ela usa papel branco, gravado em relevo, de modo que toda a composição é basicamente branca. E é como se tivesse uma textura, e dá para ver o contorno de todas as figuras. Ao mesmo tempo, com lápis de grafite, Barbara pinta a figura negra no canto. Ao fazê-lo, não está a tentar apagar as outras figuras, mas sim a desviar o nosso olhar para pensar sobre essa figura, e sobre como uma mulher negra era representada no século XVI pelo mestre renascentista, relegada a um canto”.

Paulo Pascoal, fotografado por Peter Arcanjo, será o moderador da conversa no TBA

Curar a mudança, com Arte e Educação

O convite a uma mudança de perspectiva é transversal às produções de Alayo, e está bem patente em “Reframing Blackness”.

“No capítulo final do livro, há uma série de conversas com curadores e curadoras que, além de serem negros, desenvolvem um trabalho que se concentra na negritude”, realça a escritora, enumerando algumas das presenças reunidas na obra.

A galeria de notáveis inclui Koyo Kouoh, falecida precocemente, em Maio passado, já depois de ter sido anunciada como curadora da 61.ª edição da Bienal de Veneza; Ekow Eshun, curadora de “In the Black Fantastic” e “The Time Is Always Now” uma exposição de retratos negros na National Portrait Gallery, em Londres; e Denise Murrell, que curou “Posing Modernity” no Met, uma mostra que também viajou para Museu d'Orsay, sobre como os modelos e musas negros têm sido apresentados ao longo da história.

“O traço comum entre todos é que, acima de tudo, estão a fazer o que fazem por uma espécie de sentido de dever. Todos sentiam que tinham de o fazer, e não se viam a criar nada além de narrativas negras”.

O olhar partilhado, assinala Alayo, explica-se pelas vivências. “Acho que isso se deve ao facto de eles próprios terem tido experiências de marginalização, de serem postos de lado. Então, quando se tornam curadores, concentram-se nessas histórias porque sentem que é importante que sejam partilhadas. É um chamamento que eu também sinto”.

Na resposta a esse “chamamento”, autora não se limita a apontar para o reconhecimento de múltiplas exclusões, antes propõe caminhos de transformação.

“No Reino Unido, e provavelmente na maior parte da Europa, a razão pela qual as pessoas têm uma perspectiva tão eurocêntrica e branca do que é o mundo da arte ou a História da Arte é por ser isso que é ensinado nas escolas. Portanto, defendo que as escolas e universidades devem abrir os seus currículos para incluírem perspectivas mais diversificadas, não apenas em termos de vozes negras, mas também de todo o mundo, reconhecendo a História da Arte no sentido mais amplo, e não apenas na narrativa típica europeia”.

A esperança de que a proposta ganhe terreno aumenta a cada convite para estar em escolas, adianta a escritora, que ambiciona também que a mensagem se dissemine em língua portuguesa.

“Nunca trabalhei em Portugal, mas nos últimos 10 anos tenho passado muito tempo no país”, diz, partilhando os planos de transformar a actual autorização de residência num pedido de cidadania.

“Fiquei muito feliz com o convite para estar no TBA, porque me permite chegar a outro público, e também porque quero muito que o livro seja publicado em português”.

Seja em que idioma for, o compromisso para romper com os cânones mantém-se bem firme, mais ainda perante o avanço da extrema-direita. “É em momentos como este, em que há muita oposição e o mundo está tão sombrio e difícil, que precisamos continuar a falar”, salienta, sem contemplação: “Se pararmos, as nossas vozes serão abafadas”. Façamo-nos ouvir.

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Michèle Stephenson e Joe Brewster: “O filme é política. Queremos apoiar um movimento em que os afrodescendentes não implorem para ser vistos”

A autores de documentários premiados, como “Going to Mars - The Nikki Giovanni Project”, ou “American Promise”, Michèle Stephenson e Joe Brewster estiveram em Lisboa no âmbito do projecto “Democracy in Action”, que está a ser desenvolvido por um consórcio europeu, integrado, em Portugal, pelo CESA - Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento do ISEG. Mais do que darem a conhecer o seu trabalho, exibido em sessões de cinema no Centro Cultural Cabo Verde, e no espaço Mbongi 67, Michèle e Joe conduziram uma formação intensiva em vídeo-documentário, exclusivamente dirigida a videomakers africanos e afrodescendentes. A experiência, que o Afrolink seguiu de perto, cumpre um dos propósitos maiores da dupla de cineastas: apoiar, local e globalmente, projectos de criadores negros emergentes.

O território da ficção desviou o cineasta Joe Brewster para o caminho da não-ficção. “Aprendi como o sistema não abraçava as nossas histórias, como não me ia deixar contar o que eu queria contar. Então, tive de fazer ajustes”. Há muito ‘convertido’ à arte do documentário, Joe aprimora-a há décadas ao lado da companheira Michèle Stephenson que, ao trocar uma carreira na Justiça pelos planos de cinema, somou à parceria de vida com Joe uma sólida aliança profissional. Fundadores da Rada Studio New York, e autores de documentários premiados, como “Going to Mars - The Nikki Giovanni Project”, ou “American Promise”, Michèle e Joe estiveram em Lisboa no âmbito do projecto “Democracy in Action” (DiA), que está a ser desenvolvido por um consórcio europeu, integrado, em Portugal, pelo CESA - Centro de Estudos sobre África e Desenvolvimento do ISEG. Mais do que darem a conhecer o seu trabalho, exibido em sessões de cinema no Centro Cultural Cabo Verde, e no espaço Mbongi 67, Michèle e Joe conduziram uma formação intensiva em vídeo-documentário, exclusivamente dirigida a videomakers africanos e afrodescendentes. A experiência, que o Afrolink seguiu de perto, como parceiro do DiA, cumpre um dos propósitos maiores da dupla de cineastas: apoiar, local e globalmente, projectos de criadores negros emergentes. A missão concretiza-se através da ONG Rada Collaborative, uma extensão do seu estúdio em Nova Iorque, criado com um foco irremediavelmente político. “Estamos a fazer filmes que queremos ver, e não estão a ser feitos pelas comunidades brancas”, assinala Michèle, enquanto Joe lembra a importância de cada comunidade encontrar a sua voz. “Nunca faríamos um documentário sobre Portugal”, sublinha, defendendo que cabe à comunidade negra no país dar esse passo. “Queremos apoiar um movimento em que os afrodescendentes não implorem para ser vistos, em que não procurem uma razão para justificar a sua presença, porque eles construíram este país”.

Foto de Marianna Rios/CEsA, com Michèle Stephenson e Joe Brewster, na formação em Lisboa

Despida de crónicas e históricas narrativas de branqueamento, Lisboa apresenta-se inteira aos olhos da dupla de cineastas Michèle Stephenson e Joe Brewster: “É uma cidade bastante negra”, converge o casal.

Sob este ângulo partilhado, poderá a capital portuguesa transformar-se num pólo de produção da Rada Studio New York, casa que fundaram para valorizar, humanizar e projectar no grande ecrã a História, Cultura e vidas negras?

Aconteça o que acontecer, Joe é peremptório num destino: “Nunca faríamos um documentário sobre Portugal”, sublinha, defendendo que cabe à comunidade negra no país dar esse passo. “Queremos apoiar um movimento em que os afrodescendentes não implorem para ser vistos, em que não procurem uma razão para justificar a sua presença, porque eles construíram este país”.

O processo de sustentação começou a ganhar vida em meados de Junho, num workshop intensivo de vídeo-documentário, exclusivamente dirigido a videomakers africanos e afrodescendentes.

A experiência, nota Michèle, reforçou o compromisso colectivo que, desde as primeiras cenas, acompanha a acção da Rada Studio.

“Não se trata apenas de ensinar sobre como contar histórias, mas de criar uma comunidade de solidariedade, e também um sentido mais forte de agência, de ‘eu sou suficiente’, ‘eu posso fazer isso’, ou ‘eu tenho algo para contar’”.

O impacto, assinala a cineasta, mede-se bem pelas palavras de uma das participantes.

 “Disse que aprendeu mais nos três dias que passou com este grupo, do que nos nove meses em que participou de uma outra formação em cinema”. 

Desbloqueadores e amplificadores de vozes

A diferença salta à vista: no outro lado era a única mulher negra, e nunca se sentia suficientemente confortável para falar sobre a sua história; nesta capacitação sentiu-se vista, ouvida e acolhida, o que lhe permitiu desbloquear a voz.

O testemunho vai ao encontro do que Michèle e Joe têm observado, não apenas nos EUA, mas em todas as geografias por onde têm actuado.

Justamente por isso, a dupla de cineastas estendeu as suas operações à Rada Collaborative, organização sem fins lucrativos que se destina a apoiar, local e globalmente, projectos de criadores negros emergentes.

“Queremos assumir um compromisso de longo prazo, porque essas coisas levam tempo. Desde logo para as pessoas encontrarem a sua voz, e se sentirem confiantes nas histórias que estão a contar”, explica Michèle, já calejada nos ritmos cinematográficos de produção, exaustão e também alguma frustração.

Hoje com vários documentários premiados, a cineasta não descura a passagem de testemunho. “Há um papel histórico nisso”, considera, lembrando que a ausência ou apagamento de narrativas, argumentistas e realizadores negros acaba por desincentivar a entrada de profissionais afrodescendentes nesta indústria. “O padrão é sermos invisíveis”, aponta, enquanto Joe partilha como encontrou o seu lugar no cinema.

Iniciado na ficção, universo no qual chegou a assinar um par de produções, o parceiro de vida e de trabalho de Michèle alterou a rota a partir de um repto inesperado.

“Ela decidiu que ia fazer documentários”, conta, recuando cerca de três décadas nesta história.

Até aí ao serviço da Justiça, com intervenção na área dos Direitos Humanos, a cineasta acabou por incentivar a adiada especialização do marido na não-ficção.

“Na realidade, fui para Nova Iorque estudar documentário, mas morava no centro da cidade com muitos artistas, cineastas, actores e actrizes, e todos faziam ficção. Então, foi isso que fiz: comecei a escrever guiões”.

O hábito foi fazendo o monge, e, ao mesmo tempo, beliscando a fé na arte.

“Estava desencantado, porque na ficção passamos a maior parte do tempo a angariar fundos e, depois, há um período intenso em que se faz o filme”, adianta Joe, explicando que nesse percurso esbarrou com sólidas barreiras raciais.

“O dinheiro que se consegue depende muito do olhar com que se escreve, e normalmente tem que se escrever com um olhar branco, para que os personagens não ofendam a população dominante”.

Documentar para constar

O reconhecimento de que as regras da indústria cerceavam a sua liberdade criativa e possibilidades de expressão, favoreceu a entrega aos documentários.

“Aprendi como o sistema não abraçava as nossas histórias, como não me ia deixar contar o que eu queria contar. Então, tive de fazer ajustes. E como eu amo o ofício, comecei a vê-lo de forma diferente”.

Em vez de se debater com a ideia de uma “arte branca”, Joe rendeu-se “à arte de contar histórias”, uma das mais preciosas heranças africanas.

“O que um griot faz? Ele conta a sua história, a nossas histórias. Então, vejo-as como parte de uma necessidade cultural da qual fomos privados”.

O resgate da tecnologia ancestral permitiu ao cineasta perceber, de forma bem concreta, que não queria assinar produções de super-heróis.

“Os filmes mais poderosos são sobre uma empregada doméstica que basicamente cuida dos seus filhos e os ama, ou sobre alguém que está a passar por dificuldades, como o pai que está a tentar criar os filhos e manter a sua dignidade”.

Michèle reforça a ideia: “Estamos a fazer filmes que queremos ver, e não estão a ser feito pelas comunidades brancas. As histórias têm uma ressonância, porque vemos as nossas vidas no ecrã”.

Certeza americana

A força do efeito-espelho tornou-se especialmente expressiva a partir de “American Promise” que, ao longo de uma dúzia de anos, registou os desafios, marcadamente raciais, enfrentados por Michèle e Joe na educação de Idris, o filho de ambos.

“Pais negros de todo o país apareciam e levavam os seus filhos e os filhos dos seus filhos. Era quase um culto”, nota Joe, de volta ao 2013 de lançamento do documentário, que também acompanhou os embates vividos pelo melhor amigo de Idris.

A par da aceitação do público “American Promise” arrebatou várias distinções, com destaque para o prémio especial do júri no Festival de Sundance.

O amplo reconhecimento robusteceu a capacidade de Michèle e Joe financiarem as suas produções, habilidade que se revela cada vez mais vital, face a sucessivos retrocessos políticos, particularmente nefastos para projectos que representam comunidades sub-representadas e historicamente discriminadas.

“Trump quer que a sua narrativa domine, e está a silenciar todas as outras porque se sente ameaçado por elas”, assinala Michèle, defendendo que esta realidade pede compromisso redobrado.

“Temos de compreender que há um poder nisso: de nos arriscarmos a contar as nossas histórias. E não devemos ignorar o impacto que as histórias que escolhemos contar podem ter daqui a 20, 30, 40 anos”.

A partir desta consciência social, Joe acredita que há caminho para reverter os ataques às liberdades.

“Angariámos uma quantia enorme de dinheiro para um dos nossos filmes, provavelmente apenas porque as pessoas sabem que vai ser mais difícil de financiar. Então, investiram intencionalmente em Paul Robeson porque querem que a história seja divulgada. Mas todos os outros projectos estão a angariar metade do dinheiro que já deveriam ter angariado”.

Sejam quais forem os apertos e as folgas financeiras, a dupla de cineastas lembra a importância de construir audiências.

“Não nos limitamos a fazer o filme e a dar como certo que o nosso público negro vai aparecer”, diz Michèle, defendendo que “é preciso angariar fundos para o seu envolvimento, investir tempo na divulgação e nas exibições comunitárias, que se sabe serem necessárias para criar esse diálogo, e para que as pessoas se vejam a si mesmas”.

Nesse caminho, acrescenta Joe, impõe-se não perder o foco. “Estamos sempre a tentar descobrir quais as melhores histórias para contar, sabendo que não se pode contar todas”, aponta, realçando o dever de resistir, insistir e persistir. “O filme é política de muitas maneiras”. 

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Junte-se à Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros na Educação

“Por uma Educação com Justiça, Representatividade e Compromisso Ético”, a Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros propõe-se “mapear e chegar a todas as professoras, professores, educadoras e educadores negros que actuam em Portugal — no continente e nas ilhas — criando um espaço de conexão, escuta e acção colectiva”. O propósito ganha vida online, a partir de um repto à participação, que o Afrolink divulga.


“Por uma Educação com Justiça, Representatividade e Compromisso Ético”, a Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros propõe-se “mapear e chegar a todas as professoras, professores, educadoras e educadores negros que actuam em Portugal — no continente e nas ilhas — criando um espaço de conexão, escuta e acção colectiva”. O propósito ganha vida online, a partir de um repto à participação, que o Afrolink divulga.

“Se és uma educadora, educador, professora ou professor negra/o a actuar em Portugal, preenche o formulário de mapeamento e junta-te a esta rede nacional”, apela a educadora, formadora e consultora Georgina Angélica, promotora da iniciativa, e criadora do projeto Educar com Amor e Consciência.

Além de “mapear e conectar docentes negras e negros em Portugal, em todos os níveis de ensino”, a Rede pretende “valorizar saberes, experiências e trajectórias de profissionais negras e negros no campo educativo”, bem como “partilhar desafios e construir soluções práticas e colaborativas para uma educação anti-racista, plural e representativa”.

As ambições do projecto passam ainda por “influenciar políticas públicas, apresentando ideias e propostas concretas que promovam a justiça racial na educação”; meta que se articula com a necessidade  de “sensibilizar decisores políticos e instituições para a urgência de garantir equidade na formação, contratação e progressão de profissionais negras e negros”.


A missão da Rede inclui ainda criar as condições para a sua integração “como um órgão consultivo permanente, que contribua activamente para o desenvolvimento de políticas educativas mais justas, inclusivas e coerentes com a diversidade da sociedade portuguesa”.
 

Mais informações Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros na Educação-Mapeamento e Colaboração - Google Forms

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Assata Skakur: “Sou uma revolucionária Negra”

Na despedida a Assata Skakur, ícone da luta dos Panteras Negras que morreu na passada quinta-feira, 25 de Setembro, em Cuba, publicamos uma mensagem gravada pela própria a 4 de Julho de 1973, e que extraímos da obra “Assata – Uma Autobiografia”, editada em 2022 pela brasileira Pallas. O importante testemunho, com prefácios de Angela Davis e Lennox Hinds, permite-nos mergulhar na história daquela que se tornou uma das mulheres mais procuradas pelo FBI. Nascida em Nova Iorque, a 16 de Julho de 1947, Assata iniciou a militância política na universidade, e, com a adesão aos Panteras Negras, interveio na criação de clínicas comunitárias e programas de alfabetização. Na luta pelos direitos civis, destacou-se igualmente como uma das líderes do Exército da Libertação Negra, até que, em 1973, fruto de uma emboscada policial, acabou presa e condenada à prisão perpétua. Conseguiu fugir em 1979 e, na hora da morte, aos 78 anos, permanecia asilada em Cuba. Conheça-a na primeira pessoa.


Na despedida a Assata Skakur, ícone da luta dos Panteras Negras que morreu na passada quinta-feira, 25 de Setembro, em Cuba, publicamos uma mensagem gravada pela própria a 4 de Julho de 1973, e que extraímos da obra “Assata – Uma Autobiografia”, editada em 2022 pela brasileira Pallas. O importante testemunho, com prefácios de Angela Davis e Lennox Hinds, permite-nos mergulhar na história daquela que se tornou uma das mulheres mais procuradas pelo FBI. Nascida em Nova Iorque, a 16 de Julho de 1947, Assata iniciou a militância política na universidade, e, com a adesão aos Panteras Negras, interveio na criação de clínicas comunitárias e programas de alfabetização. Na luta pelos direitos civis, destacou-se igualmente como uma das líderes do Exército da Libertação Negra, até que, em 1973, fruto de uma emboscada policial, acabou presa e condenada à prisão perpétua. Conseguiu fugir em 1979 e, na hora da morte, aos 78 anos, permanecia asilada em Cuba. Conheça-a na primeira pessoa.

Irmãos Negros, irmãs Negras, quero que saibam que eu vos amo e espero que em algum lugar dos vossos corações tenham amor por mim. O meu nome é Assata Shakur (nome de escrava joanne chesimard), e eu sou revolucionária. Uma revolucionária Negra. Quero dizer com isso que declarei guerra a todas as forças que estupraram as nossas mulheres castraram os nossos homens e deixaram os nossos filhos com a barriga vazia.

Declarei guerra aos ricos que prosperam com a nossa pobreza, aos políticos que nos mentem entre sorrisos, e a todos os robôs sem mente e sem coração que os protegem assim como às suas propriedades.

Eu sou uma revolucionária Negra e, como tal, sou vítima de toda a ira, o ódio e a calúnia que a amérika pode gerar. Assim como fez com todos os outros revolucionários Negros, a amérika está a tentar linchar-me.

Eu sou uma revolucionária Negra, e por isso me responsabilizaram e acusaram de todos os supostos crimes nos quais se acredita que uma tal mulher tenha participado. Nos supostos crimes, nos quais se presume que apenas homens estariam envolvidos, fui acusada de os ter planeado. Eles pregaram fotos supostamente minhas em agências dos correios, aeroportos, hotéis, carros de polícia, metros, bancos, televisão e jornais. Ofereceram mais de 50 mil dólares de recompensa pela minha captura e deram ordens para atirar assim que me vissem e para matar.

Eu sou uma revolucionária Negra e, por definição, isso faz de mim uma integrante do Exército de Libertação Negra. Os polícias têm usado os seus jornais e televisões para pintar o Exército de Libertação Negra como um grupo de criminosos violentos brutais e insanos. Eles apelidaram-nos de gângsteres e de pistoleiros, e nos compararam a personagens como john dillinger e má Barker. Que fique claro, que fique bem claro para qualquer pessoa que pense, enxergue ou ouça, que nós é que somos as vítimas. Vítimas, e não criminosos.

A essa altura já deveria também estar claro para nós quem são os verdadeiros criminosos. Nixon e os seus parceiros de crime assassinaram centenas de irmãos e irmãs do Terceiro Mundo no Vietname, no Camboja, em Moçambique, em Angola e na África do Sul. Como ficou provado no caso de Watergate, os principais agentes da lei neste país são um bando de criminosos mentirosos. O presidente, dois procuradores-gerais. o chefe do fbi o chefe da cia e metade dos funcionários da casa branca foram todos implicados nos crimes do Watergate.

Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós que matámos mais de 250 homens, mulheres e crianças Negros desarmados, que ferimos outros milhares nos motins que eles provocaram nos anos 60. Os líderes deste país sempre consideraram as suas propriedades mais importantes que as nossas vidas. Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós os responsáveis pelos 28 irmãos reclusos e nove reféns assassinados em attica. Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós também que matámos e ferimos mais de 30 estudantes Negros e desarmados na Jackson State – ou na Southern State.

Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós que matámos Martin Luther King Jr.,  Emmet Till, Medgar Evers, Malcolm Max, George Jackson, Nat Turner, James Chaney w inúmeros outros. Não fomos nós que assassinámos pelas costas Rita Lloyd, de 16 anos de idade, Rickie Bodden, de 11 anos ou Clifford Glover, de 10. Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não somos nós que controlamos ou impomos um sistema de racismo e opressão que mata sistematicamente pessoas Negras e do Terceiro Mundo. Embora os Negros supostamente representem cerca de 15% da população total amerikkkana, pelo menos 60% das vítimas de assassinato são Negras.  Por cada porco que é morto supostamente cumprindo o seu dever, há pelo menos 50 Negros assassinados pela polícia.

A expectativa de vida dos negros é muito menor do que a dos brancos, e eles fazem de tudo para nos matar antes mesmo de nascermos. Somos queimados vivos em moradias precárias sem protecção contra incêndio. Os nossos irmãos e irmãs são acometidos diariamente por overdoses de heroína e metadona. Os nossos bebés morrem de intoxicação por chumbo. Milhões de Negros morrem em consequência de assistência médica indecente. Isto é assassinato. Mas eles têm o desplante de nos apelidarem de assassinos.

Eles chamam-nos sequestradores, mas foi o Irmão Clark Squire (que é acusado, juntamente comigo, de assassinar um polícia do Estado de Nova Jérsei) quem foi sequestrado a 2 de Abril de 1969 da nossa comunidade Negra, e mantido refém sob fiança de um milhão de dólares, no caso de conspiração dos 21 Panteras de Nova Iorque. Ele foi absolvido a 13 de Maio de 1971, com todos os outros, de 156 acusações de conspiração, por um júri que levou menos de duas horas para deliberar. O Irmão Squire era inocente. Mesmo assim foi sequestrado da sua comunidade e da sua família. Mais de dois anos da sua vida foram roubados, mas eles dizem que os sequestradores somos nós. Nós não sequestrámos os milhares de Irmãos e Irmãs mantidos em cativeiro nos campos de concentração da amérika. Noventa por cento da população carcerária deste país são Negros ou do Terceiro Mundo, pessoas que não têm como pagar fiança ou advogados.

Eles chamam-nos ladrões e bandidos. Eles dizem que roubamos. Mas não fomos nós que roubámos milhões de Negros do continente africano. Roubaram a nossa língua, os nossos Deuses, a nossa cultura, a nossa dignidade humana, o nosso trabalho, e as nossas vidas. Eles chamam-nos ladrões, mas não somos nós que desviamos mil milhões de dólares todos os anos, através de evasões fiscais, precificação ilegal, desfalques, fraudes contra os consumidores, subornos, comissões e trapaças. Eles chamam-nos bandidos, mas toda a vez que a maioria de nós Negros recebemos os nossos contracheques, nós é que estamos a ser roubados. De cada vez que entramos numa loja do nosso bairro estamos a ser assaltados. E toda vez que pagamos a nossa renda, o senhorio encosta uma arma às nossas costelas.

Eles chamam-nos ladrões, mas nós não roubamos e assassinámos milhões de índios tomando as suas terras, e depois nos autodenominámos pioneiros. Eles chamam-nos bandidos, mas não nós somos nós que roubamos os recursos naturais e a liberdade de África, da Ásia e da América Latina enquanto as pessoas que vivem lá estão doentes e a morrer de fome. Os governantes deste país e os seus lacaios cometeram alguns dos crimes mais brutais e cruéis da história. Os bandidos são eles. Os assassinos são eles. E têm que ser tratados como tal. Esses maníacos não estão aptos para me julgar, ao Clark, ou a qualquer outra pessoa Negra que esteja em julgamento na amérika. Os Negros têm que, e, inevitavelmente vamos determinar os nossos destinos.

Toda a revolução na história foi realizada através de acções, apesar de as palavras serem necessárias. Devemos criar escudos que nos protejam, e lanças que atravessem os nossos inimigos. Os Negros devem aprender a lutar lutando. Temos de aprender com os nossos erros.

Quero me desculpar com vocês, meus irmãos e irmãs Negros, por ter estado na rodovia new jersey turnpike. Eu não poderia ter cometido esse erro. Aquela rodovia é um lugar onde os Negros são parados, revistados, assediados e agredidos. Os revolucionários nunca devem estar apressados demais ao tomarem decisões descuidadas. Aquele que corre enquanto o sol dorme tropeçará muitas vezes.

Toda a vez que o Militante pela Liberdade Negra é assassinado ou capturado, os porcos tentam dar a impressão de que aniquilaram o movimento, destruíram as nossas forças, e acabaram com a Revolução Negra. Os porcos tentam também dar a impressão de que cinco ou 10 guerrilhas são responsáveis por toda a acção revolucionária conduzida na amérika. O que é uma tolice. Um absurdo. Revolucionários Negros não caem do céu. Somos gerados pelas nossas condições. Moldados pela nossa opressão. Estamos a ser fabricados em massa nas ruas do gueto, em lugares como attica, san quentin, bedford hills, leavenworth e sing sing. Eles estão a produzir milhares de nós. Muitos Negros veteranos de guerra desempregados e mães que dependem de políticas assistencialistas estão a engrossar as nossas fileiras. Irmãos e irmãs de todas as esferas da vida que estão cansados de sofrer passivamente compõem o Exército de Libertação Negra.

Há e sempre haverá, até que todo o homem, mulher e criança Negros sejam livres, um Exército de Libertação Negra. A principal função do Exército de Libertação Negra a essa altura é criar bons exemplos, lutar pela liberdade negra, e se preparar para o futuro. Temos que nos defender e não permitir que ninguém nos desrespeite. Temos de obter a nossa libertação por qualquer meio necessário.

É nosso dever lutar pela nossa liberdade.

É nosso dever vencer.

Devemos amarmo-nos e apoiarmo-nos uns aos outros.

Não temos nada a perder a não ser as nossas correntes.

Em honra de:

Ronald Carter; William Christmas; Mark Clark; Mark Essex; Frank “Heavy” Fields; Woodie Changa Olugbala Green; Fred Hampton;  Lil’ Bobby Hutton; George Jackson; Jonathan Jackson; James McClain; Harold Russell; Zayd Malik Shakur; Anthony Kumu Olugbala White.

Devemos continuar a lutar.

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General D: “Havia skinheads por todo o lado, para onde acham que foram? Estão nas polícias, nos hospitais, no Parlamento”

Perdemos-lhe o rasto durante 15 anos. De 1999, altura em que trabalhava no terceiro álbum, até 2014, momento em que reapareceu – primeiro nas páginas do Público, e depois no palco do Lisboa Mistura –, General D tornou-se um mito. Actualmente a residir no Reino Unido, o artista tem aprimorado talentos também fora dos palcos, nomeadamente como chef e criador da marca de alimentação Imella. Nesta entrevista, a dias do regresso aos palcos, seguimos uma rota que percorre os descaminhos da indústria da música, e os caminhos do combate político, da exclusão racial, da sustentabilidade económica e do Amor. Com a palavra, o pensamento e a prática de General D.

Quanto da História de Portugal se escreve sob o signo das atrocidades racistas que, à boa maneira dos blockbusters americanos, popularizaram os Ku Klux Klan, ou simplesmente KKK? Encontramos algumas respostas na discografia General D, que, em 1994, lançou “Portukkkal é um erro”. Três décadas depois o que mudou? O aclamado pai do hip-hop tuga responde, numa conversa que vos convido a ler.

General D, com a Medalha de Prata de Mérito Cultural, atribuída pela Câmara de Almada

Perdemos-lhe o rasto durante 15 anos. De 1999, altura em que trabalhava no terceiro álbum, até 2014, momento em que reapareceu – primeiro nas páginas do Público, e depois no palco do Lisboa Mistura –, General D tornou-se um mito.

O estatuto foi alimentado por toda a sorte de lendas sobre o seu desaparecimento – tão súbito quanto misterioso –, e por uma série de especulações a respeito do seu paradeiro.

Mas, se por cá o vazio deixado pelo aclamado ‘pai do hip-hop português’ se preenchia de ficções, lá fora o afastamento dos holofotes permitia ao músico abrir espaço para um renascimento.

A viagem de regresso a si próprio, conforme a descreve, passou por vários países e experiências profissionais até se direccionar de novo para os palcos, destino que promove este encontro com o Afrolink.

Aconteceu na passada sexta-feira, 12, no Brooklyn Lisboa, dia da celebração colectiva do nascimento de Amílcar Cabral, e, para mim, também de reforço de uma velha convicção: General D é dos melhores “soldados” que temos.

Nascido em Moçambique há quase 53 anos, Sérgio Matsinhe forjou a assinatura artística no círculo de maior proximidade: a ‘patente militar’ foi-lhe confiada por amigos, a partir das competências de liderança amplamente demonstradas, enquanto o D deve a sua proveniência a Dadinho, tratamento afectuoso que ainda hoje recebe dos mais chegados.

Actualmente a residir no Reino Unido, o artista tem aprimorado talentos também fora dos palcos, nomeadamente como chef e criador da marca de alimentação Imella.

Nesta entrevista, seguimos uma rota que percorre os descaminhos da indústria da música, do combate político, da inclusão racial, da sustentabilidade económica e do Amor. Com a palavra, o pensamento e a prática de General D. 

Regressas aos palcos no próximo dia 20 de Setembro, com um concerto no ciclo “Sons do Património”, na cidade da Maia. Tens referido que, antes de mais, este é um regresso a ti próprio. De que forma?

É o regresso a mim, como se eu fosse um peixe num aquário que agora está a voltar para o mar. É assim que eu me sinto, e é super bom, principalmente porque volto para os palcos com uma nova bagagem cultural e histórica, e de noção da indústria e das pessoas. Tive a oportunidade de, com um maior distanciamento, perceber o que é isto do hip-hop, o que nós estávamos a fazer, o impacto que tinha na vida das pessoas. Então, volto com uma noção que não tinha. Porque naquela altura estávamos a ser todos empurrados pela onda, pelo destino, por Deus, ou pelo que for. Tínhamos de fazer o que tínhamos de fazer. E nunca pensei na forma como aquilo afectava o dia-a-dia das pessoas. Voltar com essa noção é uma forma mais consciente de estar no mesmo lugar.

Como é que essa consciência altera o que produzes, num contexto tão diferente, em que a indústria musical e as nossas relações ganharam novas dinâmicas, a partir do digital?

Altera muito, no sentido de que as coisas que me levaram a afastar são as que mais dificuldades criam aos artistas agora. Falo do poder que as indústrias e as editoras têm. Na altura, tinha uma luta muito grande com as editoras. Apesar de todo o desenvolvimento, acho que as correntes estão ainda mais apertadas. Hoje, as editoras têm poder sobre o Spotify, sobre os concertos, sobre tudo.

As correntes deixaram de ser de veludo, como dizia a Janet Jackson?

Exactamente. As correntes já não são de veludo, as correntes são reais. E, no outro dia, estava a ler um artigo em que se dizia que num milhão de streams, o artista ganha cerca de 4 mil euros. Depois tens esse valor dividido pela editora, pelo manager, pelo “taxman” [impostos], por isto, por aquilo. E poucos chegam a um milhão de streams. Tudo começa pelos artistas, mas os artistas não são muito beneficiados. Infelizmente não há uma grande protecção. A indústria não está aqui para proteger os artistas. Esse foi um dos motivos que me levou a afastar e a procurar meios administrativos, industriais, económicos, para criar ou tentar criar uma outra realidade, não só musical, mas também industrial ou business. Uma plataforma que melhor sirva os artistas, principalmente os artistas de reivindicação, que estão aqui com algo para dizer.

A Imella Records, label que tu criaste, é essa proposta?

Sim, ainda está no princípio, mas é a isso que se há-de propor. Por enquanto a Imella está muito focada na alimentação. Com o meu regresso aos palcos, a parte do entretenimento também pode ter um papel fundamental em ligar a alimentação, o bem-estar, a música, porque é tudo um conjunto, é tudo uma questão de vibração. E a vibração é psicológica, é espiritual, é física. E eu penso que aqueles que não gostam de nós, atacam-nos nessas formas todas, porque é necessário baixar a vibração colectiva das pessoas para depois poder oprimi-las. Usando uma linguagem mais actual, eu acho que é o que eles fazem é entrar dentro de nós e mudar a nossa password, como se fossem hackers. E quando mudam a nossa password, começam a postar coisas que não têm nada a ver connosco. É assim que nós vivemos agora, e estou a falar de forma colectiva porque eu também me incluo. Aceitamos comportamentos e formas de estar, e temos reacções em que a nossa vibração está muito lá em baixo. Por exemplo, existem pessoas a beber ou fumar até desmaiar que depois publicam isso como se fosse uma grande coisa. Apesar de ser um comportamento completamente tóxico, ao mesmo tempo é aceitável porque colectivamente fomos hackeados. É o estado em que estamos a vibrar, e é super importante trazermos a nossa vibração para cima, com a alimentação, os filmes que vemos, as culturas às quais estamos expostos, e até mesmo a roupa que vestimos – se é de algodão, se é sintética. Tudo tem vibração.

Em que fase da tua caminhada sentes que estás?

Estou a recuperar a minha password. Isso demora muito tempo. Estou a recuperar a minha password para depois poder começar a postar outras coisas. A fazer outras coisas. E a ser mais eficiente e mais efectivo na minha caminhada.

Foste alterando aspectos da tua vida a partir dessa consciência?

Por isso é que tenho essas duas formas de estar: na alimentação na música. A Imella representa a plataforma prática da alimentação, de como comermos, do self-love, a frase da marca. Depois, eu venho com a música, que é para a alma. Portanto, há o corpo, a alma e o espírito, e nós temos de funcionar como um só, temos que abarcar os três.

Além dos palcos, o músico desenvolve a marca Imella, para já focada na alimentação

Como é que se preserva a alma da música, das criações artísticas, num território capitalista, em que tudo é reduzido a produto?

Há muitos passos a serem dados nesse sentido, mas acho que o principal é nós estabelecermos uma comunicação directa entre as pessoas e os músicos e os artistas.
Porque houve desde sempre os gatekeepers [‘donos’ dos acessos] – editoras e promotores – que encaminham a nossa mensagem e a nossa música para o público, e que têm uma forma de escolher o tipo de mensagem. Isso depois vai condicionar a vibração, ou a que nível é que as pessoas vão vibrar. Havendo agora outros instrumentos, como as redes sociais, temos que fazer proveito deles, e chegar ao público directamente.

Isso não está já a acontecer?

Não, porque o que temos são novos labels daquilo que já existia, muito mais opressivos, mas dando-nos a ilusão de que realmente existe mais liberdade. Nós não temos necessariamente que pôr a nossa música, por exemplo, no Spotify ou em todas as plataformas. Há umas pens agora, que os artistas têm, e o disco físico também está a voltar.

Mas o disco físico está a voltar para um mercado de coleccionadores, mais exclusivo.

Sim, mas nem sempre. O que acontece também é que nessa onda mais coleccionadora os preços são mais altos. E interessa dar aos artistas viabilidade económica. Tudo anda à volta disso. As editoras, os patrocinadores, têm os artistas porque dão essa viabilidade económica. Repara que muitos rappers, desde os anos 90 e até antes, era pessoal do gueto, pessoal que estava nas prisões, ou que, como eu, vivia em situação precária, económica e social. E, com a editora, aparece alguém que diz: ‘Nós podemos resolver partes da tua vida’”. Então, a gente aceita isso tudo, em nome da viabilidade económica. O que nós temos que fazer é criar outra viabilidade económica, que realmente seja justa, que crie justiça e que crie um acesso, que as pessoas tenham um acesso directo à nossa área. Porque uma revolução sem o entendimento da viabilidade económica é apenas um sonho. Nós temos que avançar, e não há outra forma de vencermos se não criarmos serviços e produtos e estruturas para distribuir esses produtos e serviços. Porque é através desses produtos e serviços que criamos emprego. As pessoas detestam quando eu digo isto, mas não vale a pena ir a uma marcha e uma manifestação às três da tarde para às cinco entrar no McDonald's, e na segunda-feira seguinte encaminharmo-nos todos para servir instituições que, muitas delas, estão contra as causas que defendemos, e a apoiar financeiramente o que estamos a combater. 

Enquanto não temos uma alternativa, como escapar a essa lógica dos gatekeepers?

Há tanto a fazer, há um mundo por fazer! Nós temos séculos de trabalho pela frente para nos reconstruirmos, para cuidarmos de nós, no campo da alimentação, no campo da saúde. Há tantas coisas que temos que fazer por nós!  A questão é que aqueles que não gostam de nós conhecem bem os nossos passos, como é que a gente faz a coisas, e sabem como invalidar essa nossa caminhada. Por isso, temos de aparecer com uma forma diferente de estar, e com as nossas estruturas. Mas, infelizmente, eu vejo que gastamos grande parte do nosso tempo e da nossa energia a tentar mudar a pessoa que não gosta de nós. Eu tive que mudar também nesse sentido, e hoje não sinto a necessidade de modificar o pensamento de uma pessoa que é racista. Porque eu tenho que proteger as pessoas que estão do meu lado e proteger-me a mim próprio. Porque se uma cobra me morde, eu não vou correr atrás dela a perguntar: cobra, porque é que me mordeste? Eu não vou querer mudar a cobra. Se ela me morder, tenho que ir para o hospital, tenho de cuidar de mim, do veneno que está dentro [do meu corpo]. Eu não vou passar a minha vida a tentar modificar a pessoa que não gosta de mim. Quem não gosta de mim não é bem-vindo. Eu não sinto falta de quem sabe como me encontrar e não vem ter comigo.

Devemos, então, dirigir o foco para o que conseguimos fazer, em vez de dar tanta atenção à cobra. É daí que vem a crença na força do colectivo, que já expressaste noutras ocasiões? Manténs essa confiança, tendo em conta a energia em que estamos a vibrar, que na tua opinião é muito baixa?

Há uns parênteses que temos que pôr aí, e que eu aprendi a colocar: como dizia o Nipsey Hussle, “Everybody can’t go”. Ou seja, nem todos podem ir. É difícil, mas não temos que trazer toda a gente. Eu procuro juntar-me aos leões e às leoas e fazer esta construção com eles. Não perco mais tempo com cordeiros que, um dia, quando estiverem prontos, hão-de vir. Se não vierem, tudo bem. Nós somos mais de 8 mil milhões de pessoas neste mundo. Se fores ao teu telefone, se calhar tens 1.000 contactos, mas com quantas pessoas realmente contactas? Nos últimos seis meses, quantas dessas mil pessoas entraram na tua vida? Então, há muita gente à volta que não tem grande impacto na tua vida. Não são essas pessoas que fazem com que tu trabalhes, pagues as contas, estejas feliz, sorrias. Como não podemos contar com o colectivo todo, devemos juntarmo-nos com um grupo de pessoas com uma mente parecida. Não vamos concordar em tudo, mas temos de estar alinhados. É muito importante que sejam pessoas que vibrem mais ou menos ao mesmo nível, que vibrem ao mesmo tempo, e que possamos discutir e construir a partir daí. Mas, não vale a pena estar a tentar integrar no mesmo caminho, na mesma marcha, uma pessoa com uma vibração aqui e outra com a vibração ali, porque a coisa é três passos para trás, três passos para a frente. E eu já vi esta Black Revolution [Revolução Negra] há uns anos.

Achas que não houve um upgrade?

Não houve. O que estou a ver agora, já vi há 20 anos, já fiz parte disso há 30 anos, o que houve foi a mudança dos personagens, digamos assim. E depois houve outra coisa que é preciso reconhecer: há mais gente, mas é mais gente a andar em círculos. Esse é o problema. Nós andamos em círculos, não estamos a fazer grandes avanços. Enquanto não controlarmos, não tivermos uma maior influência nos meios principais, seja alimentação, comunicação, emprego, escolaridade, saúde, não estamos a avançar.

Ainda assim, há caminhos que têm sido desbravados. Tu és um pioneiro do nosso hip-hop, percurso recentemente distinguido com a Medalha de Prata de Mérito Cultural da Câmara Municipal da Almada. Surpreendeu-te?

Sim, no sentido de que não estava à espera, porque a minha realidade cotidiana não é aqui. Estou lá fora [Reino Unido] e muitas vezes eu esqueço-me do que está a acontecer aqui. Mas é bom, e eu sinto-me orgulhoso de saber que o trabalho que se fez, as coisas que eu fiz e as palavras ainda têm uma certa relevância. É super importante.

Considerando o contexto que estamos a viver, de ascensão e normalização da extrema-direita, e o conteúdo reconhecidamente interventivo da tua música, a distinção municipal, em ano de autárquicas, é indissociável de uma leitura político-partidária.

Sem dúvida. Mas isso são coisas que eu vejo desde sempre. Naquela altura, eu já percebia isso, como as forças políticas usam os artistas, como usam as pessoas. Mas – outra vez – porquê que isso acontece? Porque somos elementos isolados.

Precisaríamos de estar organizados, numa Motown Records, por exemplo.

Precisamos de estrutura. Não só de uma Motown, mas em todas as áreas: económica, política e religiosa ou espiritual,   no sentido que tenha a ver com a alma e o sistema de crenças. Porque sempre tivemos um sistema de crenças que nos foi hackeado.

Embora ainda estejamos longe da mudança necessária, hoje há mais artistas negros, e mais plataformas para essa estruturação.

Isso não significa nada. Basta ver os Estados Unidos. Quem domina a cultura são os negros, mas isso não quer dizer que tenham um poder significativo. No fundo, as coisas não mudaram, e há pessoas que até dizem que há cento e tal anos estávamos melhor. Porque o que o sistema faz é criar elites dentro da comunidade. Depois, infelizmente, essas elites têm uma tendência a se juntar com o poder, e a esquecer um bocadinho a razão pela qual começaram a lutar, a fazer o que fazem. E a mensagem começa a ficar cada vez mais diluída. Em França é a mesma coisa. Lá os negros também têm uma força e expressão cultural. Mas todas as expressões culturais são dominadas pelo outro lado. Quem controla a cultura negra não são negros. Então, que poder temos? Enquanto não tivermos a capacidade de criar emprego, uma sustentabilidade económica para alimentar as nossas ambições, a nossa revolução, não teremos nenhum poder.

Mas a revolução está em curso.

Está em curso, mas anda às voltas, anda em círculos.

Há pouco falávamos sobre política e tu, a determinada altura, estiveste nesse território, com o partido Política XXI. Recentemente, numa entrevista, disseste que essa experiência fez-te perceber que a luta da nossa comunidade negra não é por aí. É por onde, então?

Não é por aí. Se formos pela política, temos que criar um partido que tenha origem nas sensibilidades africanas, e nas sensibilidades negras. Não vale a pena seres uma negra ou um negro no PS e achares que vais mudar a realidade da comunidade negra. Porque, em primeiro lugar, tens que servir a agenda do partido que estás a representar. Mas, se é por aí, se é pela política, temos de ter o nosso próprio partido. Assim como os ecologistas têm o partido Os Verdes, e a agenda deles é o ambiente.

Precisamos de um Black Panther?
Sim, um Black Panther. Ou, se não for um Black Panther, precisamos, sem dúvida, de uma força política com origem nas nossas comunidades, e que seja independente. E para ser independente é preciso sustentabilidade económica. Porque todos os partidos políticos são suportados, alimentados, pelos grupos económicos.

Estarias disponível para uma luta dessa natureza, ou seja, havendo um partido com essas características que estás aqui a enumerar, que venha dos nossos contextos, com o nosso pensamento e as nossas propostas?

Sim. Se é o que nós precisamos. Mas enquanto não estivermos prontos a discutir dinheiro, eu não entro na conversa. É tão simples quanto isso.

Essa não é, de certa forma, uma cedência à agenda capitalista?

De onde vem essa palavra: capitalista? Essa não é a nossa maka [problema]. Andamos preocupados com coisas que não são nossas. Porque capitalismo, socialismo, não somos nós. Não tem nada a ver connosco e nós temos que nos preocupar connosco. O grande problema que temos é que nós servimos as agendas todas. Queremos ir apagar os fogos em todo o lado, enquanto vemos o fogo na nossa casa. Eu não respondo ao capitalismo. Eu não quero saber do PS, do PSD, do CDS, do Chega. Eu não perco tempo a falar de nada disso. Não é a minha maka. Não é meu.

Então, o que é que defines como teu para termos esta conversa?

O meu é a Dona Joana ali da barraca, és tu...é a possibilidade de nos juntarmos, de começarmos a falar. Porque quando temos cérebros e valores super importantes para nós, mas depois o diálogo começa a ficar corrosivo porque uns são do PS, outros são do PSD, outros são disto, outros são daquilo, a conversa passa a ser à volta de coisas que não têm nada a ver connosco. Então, em vez de começarmos a discutir coisas nossas, estamos a arrastar-nos a partir de partidarismos. Mas não só. Será que realmente importa estarmos a discutir quem é do Islão ou quem é do Cristianismo? Se calhar, neste momento nós temos é que ver quem está a vibrar ao mesmo nível, ou parecido. Nós temos que nos preocupar com as coisas que realmente importam, e que nos possam fazer saltar para uma outra realidade económica e social. A partir daí podemos crescer, combater o sistema taco-a-taco. A justiça não vai acontecer só porque é justo.

De outro modo, já teria acontecido.

Exactamente. A justiça obtém-se na luta – e eu não apelo nesse sentido – ou na negociação. Nós temos que negociar a justiça. Mas só conseguimos negociar a justiça se estivermos apetrechados, se tivermos um poder colectivo. E o engraçado é que todas as outras comunidades têm. Os chineses têm, os indianos e os paquistaneses também.

O que nos bloqueia?

O nosso desejo é a integração. O desejo deles não é integração, é o respeito dentro das diferenças. Nós não. Havia aquela frase, lembras-te? “Todos diferentes, todos iguais”. Essa é a nossa mentalidade de sempre.

Entendes que essa busca de integração é uma especificidade da África dita lusófona?

Eu acho que em França sofrem da mesma questão, pela forma como a colonização foi feita. Em Angola, por exemplo, tinhas um bilhete de identidade diferente consoante o teu tom de pele, e em Moçambique era a mesma coisa. Houve a necessidade, para dominar o povo, de criar diferentes categorias de pessoas, e fazer corresponder diferentes tipos de privilégios a diferentes categorias. São coisas que ficaram até hoje, mesmo que no subconsciente. Porque não foi só colonizar a terra, foi colonizar a mente.

E nesse processo encontra-se, muitas vezes, a vontade de caber num padrão que não é o nosso. Recordo-me perfeitamente que quando tu apareceste todo o teu visual, a tua estética, eram profundamente disruptivos para o nosso contexto e comunidade. Com foi assumir a tua pele perante olhares de estranheza, rejeição e condenação?

Foi super difícil mas, ao mesmo tempo, quando tu estás no balanço, há coisas que nem vês, não dás muito valor ao que estão ou não a dizer. Tu sabes que tens alguma coisa e um percurso a fazer.

Achas que há uma orientação que é maior do que tudo?
Ah, sim, sem dúvida. Há coisas maiores. Toda a minha família, irmãos, estávamos todos sujeitos à mesma realidade cultural, estávamos na mesma situação, mas nenhum deles teve essa irrupção. Tem a ver com outro tipo de chamadas, que não conseguimos definir aqui, nem eu consigo explicar. Mas agora, olhando para trás, para passar por tudo e continuar a lutar, penso que tens mesmo que estar rodeado por outro tipo de coisas que não entendemos.

Recuando justamente aos primeiros tempos, quando inicias os Black Company há, para além da motivação musical, o propósito de fazer face aos skinheads, que se multiplicavam. Hoje, mais de 30 anos depois, estamos a lidar com uma renovação das forças que ameaçam a nossa existência. O que é que aconteceu?

É o que eu pergunto sempre às pessoas. Ok, naquela altura, havia skinheads por todo o lado, centenas e centenas, milhares. E eu pergunto: para onde é que vocês acham que essa gente foi? Será que acham que essa gente mudou de mentalidade, que mudou de ideologia? Não. Essa gente está nas polícias, nos hospitais, no Parlamento, nos cafés...está em todo o lado. E está a usar os poderes que tem, ou os minipoderes que tem, para influenciar negativamente a vida dos negros. Mas desta vez não têm que sujar as mãos. Não é preciso atirar pretos ao rio para prejudicar a nossa vida. Tem-se falado muito, por exemplo, de como as mulheres negras têm uma percentagem muito mais elevada de mortes ou de problemas graves no parto. Isto porque as coisas não mudaram assim tanto. E hoje a capacidade de nos influenciar negativamente de forma colectiva é estrondosa. Por isso eu repito: temos de estar à frente desses lugares, temos que dominar todos os diferentes campos.

E achas que vale a pena ir para o sistema e tentar influenciá-lo? Ou consideras que a mudança só se pode fazer de fora, forçando o sistema?

Só se pode fazer a mudança fora do sistema. Neste aspecto, não temos que inventar a roda, os exemplos de outras comunidades estão aí. Os judeus não pedem dinheiro ao banco, os chineses raramente pedem dinheiro, os indianos raramente procuram emprego nuns CTT. Eles têm as suas próprias estruturas e, muitos deles, têm a sua própria medicação, a sua própria maneira de manter o corpo são. Os exemplos estão aí.

A mudança exige, antes de mais, compromisso.

Sim, mas é muito raro encontrar pessoas que realmente querem ter esse compromisso, porque nós estamos muito habituados ao conforto dos sistemas do nosso opressor. E ninguém quer abdicar desse conforto, desse sistema, desse belief system [sistema de crenças].  

Talvez porque por pior que seja, é um mal que já conhecemos, com o qual estamos habituados a lidar.

E quando tu pões isso em causa, como eu pus, a tua vida toda “crumble” [desmorona]. Porque toda a tua existência gira à volta dessas crenças. Quando tu pões isso em questão, a tua vida transforma-se em pó, até criares uma nova. É uma estrada muito dolorosa. A maior parte das pessoas não quer ir por aí. As pessoas preferem, ou pensam que mais vale entrar no sistema. Querem ser aceites dentro do sistema, e depois vemos o que isso faz. Porque uma coisa é que quereres liberdade, outra coisa é quereres mudar as condições de vida dentro da prisão. E muitos de nós queremos estar na prisão, só que com melhores condições. Talvez com uma televisão, sofá, mais visitas, mas, ainda assim, queremos estar na prisão. Não queremos liberdade, porque liberdade é responsabilidade. A liberdade é dura, e, para muita gente, às vezes a prisão é mais fácil. Por isso é que “everybody can’t go”. Nem todos podem ir, porque é um compromisso muito complicado.

Tu falaste da vida que se desfez. Estás a renascer das cinzas?

Sem dúvida. Absolutamente. Sim. E ao renascer das cinzas, há coisas que não dá para explicar, não dá para falar. Há forças que movem e que fazem coisas acontecer. E eu acredito muito no universo. Eu acho que o universo junta-te com pessoas.  

Mas é um processo muito solitário.

Super solitário. E isso é outra coisa que tens de abraçar: a solidão.

E como se abraça a solidão quando estás em processos de dor, quando te estás a desfazer, quando parece muito mais fácil fugir desse lugar?

Sabes, a semente adora solidão, adora o escuro. Ela brota no escuro. Então, às vezes, é necessário.

Dizes que a tua luta sempre foi e continua a ser pela dignidade do homem e da mulher negros. É muito mais desafiante, hoje, lutar por essa dignidade, com a consciência que tu tens, considerando que há um romantismo que se perde no caminho? Considerando até essa ideia de que não dá para fazer colectivo com todos?

Não, porque hoje eu posso melhor, no sentido de ser mais eficiente, porque, número um, eu apostei muito e continuo a apostar em edificar estruturas. Número dois, eu não estou dependente das estruturas estatais, ou que pertencem ao poder. Eu não preciso de uma editora. Mesmo os concertos, eu adoro, mas se não os tiver, eu consigo pagar as minhas contas, porque tenho uma vida paralela. Então eu posso estar nesta vida, nesta luta, de uma posição completamente diferente. Portanto, respondendo à tua pergunta, eu não ponho as coisas em termos de ser mais difícil ou não, porque é sempre difícil. A luta é sempre difícil. Há 100 anos, ias à guerra, e a guerra continua a ser guerra. Só que se antes ias com os punhos, hoje se calhar tens um armamento diferente. Se calhar a diferença é essa. E eu apostei muito, e continuo a apostar em estruturar as coisas.

Nesse processo de dignificação das nossas vidas, cantaste uma poderosa declaração de amor às mulheres negras, com o tema “Black Magic Woman”. Três décadas depois do sucesso, é-me difícil observar esse amor à mulher negra aqui em Portugal. Consegues ver esse amor?

Como eu não vivo a realidade portuguesa do dia-a-dia, vou falar em termos gerais. E, em termos gerais, o que eu acho é que a relação entre o homem negro e a mulher negra é afectada pelo ataque à família negra. Porque a família negra sempre esteve sob ataque, é o maior inimigo de quem não gosta de nós. Atacando a família negra, é a forma mais fácil de nos controlarem. E o que me levou a esse tema foi realmente o amor que tinha e tenho pela mulher negra como instituição. E eu sei o quão essa instituição é usada pelos nossos inimigos, e de forma às vezes, inconsciente, muitas das nossas irmãs, servem o nosso inimigo. Porque esse nosso inimigo tem consciência do poder que a instituição mulher tem no desenvolvimento da família, no estabelecimento de toda a família, de toda a cena negra. Passa tudo pela mulher. E se eles tiverem o controle da mulher, eles controlam a nação. E agora as mulheres têm realmente que reparar se estão a ser controladas ou não. Outra vez, isto é uma coisa super difícil de seguir. Por isso é importante deixar cada pessoa no seu próprio processo.

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A certeza da Revelação de Marco Mendonça, na arte de afirmar e celebrar pertença

O actor e encenador Marco Mendonça conquistou a 6.ª edição do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II, distinção anual “que pretende reconhecer e promover talentos emergentes no panorama teatral, motivando o arranque e desenvolvimento de percursos profissionais de sucesso neste sector”. O anúncio do vencedor aconteceu na última sexta-feira, 12 de Setembro, e leva-nos a recuperar dois dos trabalhos com a sua assinatura que o Afrolink acompanhou e divulgou: “Blackface” e “Reparations Baby!”


O actor e encenador Marco Mendonça conquistou a 6.ª edição do Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II, distinção anual “que pretende reconhecer e promover talentos emergentes no panorama teatral, motivando o arranque e desenvolvimento de percursos profissionais de sucesso neste sector”. O anúncio do vencedor aconteceu na última sexta-feira, 12 de Setembro, e leva-nos a recuperar dois dos trabalhos com a sua assinatura que o Afrolink acompanhou e divulgou: “Blackface” e “Reparations Baby!”

Marco Mendonça, em Blackface, com fotografia de Diana Tinoco

Antes de lhe darmos a ler – ou reler – os artigos aqui publicados sobre as criações de Marco Mendonça, partilhamos algumas notas curriculares e biográficas.

Nascido em Moçambique em 1995, o actor, dramaturgo e encenador revelou desde cedo a sua veia artística. Em Portugal desde o início da adolescência, licenciou-se na Escola Superior de Teatro e Cinema, em 2015, altura em que iniciou um estágio de um ano no Teatro Nacional D. Maria II.

Co-autor do “Parlamento Elefante”, projecto vencedor, em 2019, da Bolsa Amélia Rey Colaço, também co-criou “Cordyceps”, peça apoiada pela Rede 5 Sentidos, em 2021.

Dois anos depois apresentou a sua primeira criação a solo, “Blackface”, a que se seguiu, já neste ano, “Reparations Baby!”.

Marco Mendonça integra ainda o elenco de “Catarina e a beleza de matar fascistas”, de Tiago Rodrigues, além de somar papéis em cinema e televisão, com vários criadores nacionais.

Com Prémio Revelação Ageas Teatro Nacional D. Maria II, que tem o valor pecuniária de 5 mil euros, Marco vê reconhecida a “qualidade da sua prestação artística no ano a que se refere o prémio; o contributo da sua prestação artística para o desenvolvimento e fortalecimento da área teatral; a capacidade de crescimento e valorização da sua carreira, nacional e internacionalmente; e a introdução de elementos de inovação ou diferenciação na sua prática profissional”.

Saiba mais sobre as suas criações, lendo ou relendo o que publicámos aquando da estreia de Blackface e Reparations Baby! 

“Reparations Baby!” – o concurso-revolução para descolonizar a nossa TV

https://www.afrolink.pt/historias/reparations-baby-de-marco-mendonca-traz-game-show-para-descolonizar-a-tv 

Humor de ressignificação: o “Blackface” que confronta a prática racista

https://www.afrolink.pt/artigos/humor-de-ressignificacao-o-blackface-que-confronta-a-pratica-racista?rq=blackface

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Leitão Amaro (des)faz contas à imigração: “Não sou socialista nem comunista, portanto não sou planificador”

A conversa já lá vai – aconteceu no final de Junho, nos Jardins do Bombarda, em Lisboa –, mas o desgoverno a que estamos entregues mantém-na dramaticamente actual. Trago-a agora para este espaço, cerca de 10 dias depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter chumbado as alterações à lei de estrangeiros propostas pelo Executivo, e aprovadas no Parlamento com votos do PSD e Chega, adornados pela abstenção da IL. O travão de inconstitucionalidade imposto à via anti-imigração trilhada pelo Governo arrepiou caminho para o veto presidencial e devolução do diploma à Assembleia da República, mas, garante o ministro da Presidência, mantém firme o destino nacional de endurecimento de fronteiras.  “A política de portas escancaradas do passado foi uma enorme irresponsabilidade. Isso implica que, neste último ano, agora e para o futuro, precisemos tomar mais medidas”, insiste António Leitão Amaro, aqui citado pelo jornal Público, em declarações proferidas antes do anúncio dos juízes do TC, e reforçadas já depois disso. Mas, voltemos à conversa de final de Junho, da qual se extrai o título deste texto, e à qual regresso já depois de noutras frentes – nomeadamente de alteração às leis laborais, e de intervenção na prevenção e combate aos incêndios –, o Governo evidenciar a mesma impreparação demonstrada na abordagem à imigração. Incapaz de explicar que dados sustentam a narrativa de uma velha política nacional de “portas escancaradas”, e que projecções levam o Executivo a desacreditar estudos que fazem depender o crescimento económico do país dos fluxos migratórios, Leitão Amaro barricou-se num argumento que ajuda a perceber a série de argoladas governativas que continuamos a testemunhar: “Não sou socialista, nem comunista, portanto não sou planificador”. Assumido devoto da “beleza da economia descentralizada”, o ministro partilhou estas palavras no encontro de encerramento do “Migrant Media Project”, projecto para a inclusão de jornalistas migrantes da Associação Pão a Pão, desenvolvido em parceria com o jornal Expresso, e apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. O Afrolink acompanhou o programa e registou as principais linhas com que se cose a nossa desgovernação.

A conversa já lá vai – aconteceu no final de Junho, nos Jardins do Bombarda, em Lisboa –, mas o desgoverno a que estamos entregues mantém-na dramaticamente actual. Trago-a agora para este espaço, cerca de 10 dias depois de o Tribunal Constitucional (TC) ter chumbado as alterações à lei de estrangeiros propostas pelo Executivo, e aprovadas no Parlamento com votos do PSD e Chega, adornados pela abstenção da IL. O travão de inconstitucionalidade imposto à via anti-imigração trilhada pelo Governo arrepiou caminho para o veto presidencial e devolução do diploma à Assembleia da República, mas, garante o ministro da Presidência, mantém firme o destino nacional de endurecimento de fronteiras.  “A política de portas escancaradas do passado foi uma enorme irresponsabilidade. Isso implica que, neste último ano, agora e para o futuro, precisemos tomar mais medidas”, insiste António Leitão Amaro, aqui citado pelo jornal Público, em declarações proferidas antes do anúncio dos juízes do TC. Mas, voltemos à conversa de final de Junho, da qual se extrai o título deste texto, e à qual regresso depois de noutras frentes – nomeadamente de alteração às leis laborais, e de intervenção na prevenção e combate aos incêndios –, o Governo evidenciar a mesma impreparação demonstrada na abordagem à imigração. Incapaz de explicar que dados sustentam a narrativa de uma velha política nacional de “portas escancaradas”, e que projecções levam o Executivo a desacreditar estudos que fazem depender o crescimento económico do país dos fluxos migratórios, Leitão Amaro barricou-se num argumento que ajuda a perceber a série de argoladas governativas que continuamos a testemunhar: “Não sou socialista, nem comunista, portanto não sou planificador”. Assumido devoto da “beleza da economia descentralizada”, o ministro partilhou estas palavras no encontro de encerramento do “Migrant Media Project”, projecto para a inclusão de jornalistas migrantes da Associação Pão a Pão, desenvolvido em parceria com o jornal Expresso, e apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. O Afrolink acompanhou o programa e registou as principais linhas com que se cose a nossa desgovernação.

Da esquerda: moderadores Juliana Iorio e David Dinis, ministro da Presidência, António Leitão Amaro, presidente da Casa do Brasil de Lisboa, Ana Paula Costa e Farid Patwary, jornalista do Bangladesh

O que têm em comum as notícias falsas disseminadas amiúde pelo Chega com as projecções do Eurostat, um estudo da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, e as estimativas das confederações patronais? Para o Governo todas parecem caber no mesmo saco, não apenas suspeito, mas automaticamente descartável.

“Sempre desconfiámos de previsões de necessidades de vindas [de trabalhadores estrangeiros], seja daqueles que do lado das empresas diziam que eram 100 mil para isto, 30 mil para aquilo; e ainda mais daqueles que diziam que do agrupamento familiar vinham 500.000 pessoas. Sempre desconfiámos e discordámos de muitas dessas afirmações”

As palavras, disponíveis online, são do ministro da Presidência, António Leitão Amaro, e ouvem-se na conferência de imprensa do passado dia 23 de Junho, marcada pelo anúncio de alterações às leis da nacionalidade e de estrangeiros.

No final dessa mesma semana, o governante participou no painel “O impacto da política da Imigração”, inserido no encontro de encerramento do “Migrant Media Project”, projecto para a inclusão de jornalistas migrantes da Associação Pão a Pão, desenvolvido em parceria com o jornal Expresso, e apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian.

O Afrolink acompanhou a discussão – ocorrida na tarde de 27 de Junho nos Jardins do Bombarda, em Lisboa –, e questionou o ministro sobre as desconfianças que apresentou nessa conferência de imprensa, quando questionou a importância dos fluxos migratórios para a economia nacional. Por outro lado, quisemos saber porque é que o Governo insiste na ideia de que Portugal seguia uma política de imigração “de portas escancaradas”.

Comecemos pelos números. Leitão Amaro reafirmou a desconfiança em relação às previsões sobre a necessidade de mão-de-obra estrangeira que têm sido avançadas por várias confederações patronais. Acrescentei que há vários estudos que apontam no mesmo sentido, incluindo da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, e também europeus.

Neste caso, referia-me em concreto a uma análise produzida a partir de dados do Eurostat, e publicada pelo jornal The Guardian, alertando para o efeito das políticas anti-imigração que mobilizam cada vez mais votos para a extrema-direita nos países europeus.

Mais do que a perda acentuada de população – em que os saldos naturais negativos (mais mortes do que nascimentos) deixarão de ser compensados pelos saldos populacionais (que incluem fluxos migratórios) –, as projecções, apontadas para 2100, antecipam a perda de capacidade produtiva, e o aumento das despesas com pensões e cuidados a idosos.

O impacto demográfico em Portugal, onde 22% dos bebés nascidos em 2023, eram de mães estrangeiras, seria assinável: ao ritmo actual, daqui a 75 anos a população portuguesa rondará os 9 milhões, número que se fica pelos 5,7 milhões sem imigrantes. Ou seja, estima-se que o país perderá quase 37% de cidadãos.

A publicação conclui que uma Europa sem imigração é uma Europa condenada à própria destruição.

Na mesma linha, a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP) indica que o país precisa de 138 mil imigrantes por ano para crescer 3%. Afastando a ideia de que "os imigrantes empurram os nacionais para fora do mercado de trabalho", a FEP nota que só com a sua força Portugal pode ambicionar entrar, até 2033, no grupo “dos mais ricos”, da União Europeia.

Os dados reunidos no estudo Migrações e Direitos Humanos, da UGT, são igualmente peremptórios. “Num contexto de baixa natalidade e envelhecimento da população, Portugal vai inevitavelmente precisar de 50 mil a 100 mil trabalhadores regularmente ao longo do tempo”, adiantou o coordenador Jorge Malheiros, em declarações à rádio Renascença.

“A beleza da economia descentralizada”

Mas, por mais diversas e sustentadas que sejam as análises apresentadas, António Leitão Amaro insiste em esvaziá-las de importância.

“Permita-me ser céptico”, respondeu ao Afrolink, depois da nossa referência à existência de vários estudos, que vão muito além dos cadernos de encargos do patronato. “Como decisor público, olho para o mercado, olho para as reações dos agentes, e pergunto: se precisam assim tanto de mais trabalhadores, porquê que não pagam mais para atrair mais trabalhadores, nacionais e estrangeiros, e lhes dar mais condições, para não terem que viver numa casa acumulados, em que não têm sequer direito a um quarto. Têm uma fracção de cinco horas durante uma noite para estarem um bocadinho encostados, e depois têm que sair para dar lugar ao outro”.

Crente “na beleza da economia descentralizada”, o ministro da Presidência rematou: “Se houvesse essa necessidade, a economia pagaria esses salários, sobretudo quando nós temos esta lógica de concertação na entrada e com a responsabilização de quem recruta”.

À falta de uma resposta clara, insistimos: se o Governo rejeita todos os números que têm sido avançados, em que projecções assentam as políticas restritivas que tem apresentado, e a ideia de portas escancaradas?

“Eu não faço projecções”, apressou-se a atirar Leitão Amaro, personalizando a resposta. “Eu, reconhecidamente, não sou socialista, nem sou comunista, portanto não sou planificador, não me sinto capaz de fazer um cálculo da alocação do número de recursos, sejam humanos, de capital, de material a cada sector. Acredito na beleza da economia descentralizada que, de forma cooperativa, de forma social ou de forma privada, num mercado em concorrência ou em cooperação, identifica as suas necessidades e vai provê-las por uma cobertura e um jogo concorrencial ou de cooperação entre agentes, entre a procura e a oferta. Portanto, eu nunca vou fazer uma previsão destas”.

Redireccionando o foco para as responsabilidades do Executivo, e não para a fé do ministro da Presidência, prosseguimos com mais uma tentativa de compreender as escolhas governamentais. Afinal, conforme tivemos a oportunidade de sublinhar: esperaríamos que o Governo fizesse todos os levantamentos e mais alguns antes de apresentar as suas políticas.

“Eu percebo, mas nós temos uma ideia diferente sobre a organização da economia. Eu não acho que tenha que fazer. Eu não vou fazer uma planificação”, reiterou Leitão Amaro.

Aqui chegados, pergunto: quão diferente é o actual exercício de governação de um jogo de adivinhação baseado em percepções?

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Cartas Aos Que FicaraM, por Telma Tvon

Escritora e rapper, Telma Tvon escreve para o Afrolink sobre a violenta repressão do Governo do MPLA aos protestos e greves dos taxistas que desde meados de Julho contestam, no país, a subida dos preços dos combustíveis. Com um balanço provisório de 30 mortos e 1.515 detidos, a situação inspirou a escritora a publicar três cartas, cruzando os olhares de três figuras ímpares da História angolana: Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Deolinda Rodrigues.

Escritora e rapper, Telma Tvon escreve para o Afrolink sobre a violenta repressão do Governo do MPLA aos protestos e greves dos taxistas que desde meados de Julho contestam, no país, a subida dos preços dos combustíveis. Com um balanço provisório de 30 mortos e 1.515 detidos, a situação inspirou a escritora a publicar três cartas, cruzando os olhares de três figuras ímpares da História angolana: Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Deolinda Rodrigues.

Telma Tvon

Texto de Telma Tvon

Não, eu não vos escrevo do além. Eu escrevo a partir do interior de cada angolana, de cada angolano, que tanto sente que já nada consegue desabafar no papel. E yah, filho continua a chorar, Mamã não enlouqueceu, morreu mesmo e desta vez nem foram para São Tomé. Jazem aqui mesmo, na Terra que os viu nascer. A Mãe fenece fisicamente por aqui e o Filho por sua vez enlouquece e fenece mentalmente, também por aqui. Destruídos pelas autoridades que era suposto protegê-los. 

Não, eu não vos escrevo com piedade e compreensão porque raros não são os momentos em que me pergunto se vocês conhecem esses sentimentos. Se vocês sequer possuem o dom de ter sentimentos. Eu escrevo-vos, pois, observando o pó de estrela que todos os meus são. Hoje nada brilha. Hoje tudo é incerteza, choro e convulsões. 

Não, eu não vos escrevo rogando que se transformem. Esse tempo expirou. Eu agora escrevo-vos na urgência de quem vê também para os outros o tempo expirar porque careço conspirar a vossa saída. Eu não vos teorizei assim. Eu não vos idealizei assim. Eu escrevo cansado, tentando encontrar forças fora da minha matéria para acender uma nova revolta activa. Eu escrevo com fé conseguindo encontrar inspiração nos manifestos agora proactivos que se aventam perante mim. 

Não, eu continuo a não escrever pedindo mudança ou sextas oportunidades.

Eu agora escrevo torcendo freneticamente pelo vosso fim.

 

Com sublinhada tristeza,

Mário Pinto de Andrade - o Pai Fundador

 

 

Também eu vos quero distantes do meu povo. Sonho-vos fora. Erramos?

Não consigo tolerar mais essa Angola que chora. Errei? 

Sonhadores? Irrealistas? Talvez, mas quantas mais vidas pagaremos pelos nossos sonhos deturpados pelos vossos contínuos erros? Devastação máxima ao desviver deste lado com tanto peso. 

Também eu vos quero culpados por adiarem consecutivamente os dias da Humanidade. Assim eu quero-vos de todos os cargos exonerados. O justo mesmo era serem condenados a viver como estão a condenar o nosso povo a viver. Vocês chumbaram no básico, o meu coração de poeta não vos perdoa e eu já só quero descansar em paz. Eu já só manifesto, de bem longe, para o meu povo, abundância e paz e ainda assim está a doer bwe perceber que vocês não sentem, que vocês vivem tipo vos nasceram sozinhos, que vocês não aprendem nada, que vocês agora são um resumido, inaugurado, condecorado Nada. 

Também eu agora vos quero sem a tentadora Certeza, sem a firme Esperança pois mediante todos os brilhos capazes que nos depenam a magia da vida também de se eclipsar das vossas vidas. Que é isso Viriato a rogar pragas? Talvez não, a prever sentenças. Eu já só vos desejo apartados das minhas gentes, das minhas terras. Com tudo o que já subtraíram construam as vossas Califórnias e Dubais no Inferno, soterrem-se nos vossos palácios de egoísmo. 

Eu agora também escrevo com ansiedade, apelando à vossa partida.

 

Com aviltante pesar,

Viriato da Cruz - O Pai Poeta

 

Assim eu já só penso o quão vão foi o meu destino.

O meu país independente não era o fim. Era o sonho do começo.

Era a vida que germinava nos meus que naquela altura para uma sorte maior precisavam de sofrer. E olha só o azar em vocês personificado, pois nas vossas mãos hoje eles continuam a sofrer. 

Assim eu já sem corpo, continuo a sofrer. Sabia que a liberdade não se alcançaria com sofrimento mas não seria para vocês que esperava endereçar estas palavras. Confusa com o meu corpo parido em Catete e defumado no Congo, me questiono hoje qual é a vossa ideologia? Vocês quem são? Vocês querem o quê? Sendo absurdamente sincera comigo eu acho que sei as respostas mas não me atrevo a dizê-las de forma perceptível. E ainda assim medo do quê pois se as palavras têm força e se materializam ao serem ditas em voz alta há muito que tal já aconteceu porque vocês andam aí, vaidosos, orgulhosos e não parece haver silêncio que quebre o vosso narcisismo. 

Assim eu já só penso que hoje que sem razão aparente se depredam as vidas dos nada a perder, interrogo-me se o vosso M vem do quê, o vosso P juntamente com o vosso L servem para quê, e a vossa Angola é para Quem? Pois, pensem respostas caladas. Pensem em tom de monólogo porque nem diálogo queremos convosco e olhem bem, e oiçam bem, e leiam bem porque mesmo que neste exílio sem regresso eu continuo a ser a revolução. Eu continuo a orar pela libertação dos meus. Eu continuo numa luta sem forma, numa luta de pensamentos e desejos mas continuo, sim fictícios camaradas eu continuo. Continuo até sentir a vossa total retirada. Continuo até se espalhar por todos kimbos acima da terra que o meu povo é soberano. 

 

Com colossal desgosto

Deolinda Rodrigues- a Langidila e Mãe da Revolução Angolana

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Escutar a Terra através dos seus Guardiões - as vozes que tecem o futuro

“Falamos muito de “soluções climáticas” em reuniões e conferências. Mas e se as comunidades da linha da frente forem a própria solução? E se a reparação não for caridade, mas um acto de devolução – de recursos, de dignidade – a quem já cuida da vida?”. As reflexões partem de Virgílio Varela, que regressou de cinco meses de viagem pelo Brasil acompanhado das vozes que foi escutando, “das terras alagadas do Rio Grande do Sul às florestas sagradas de palmeiras no Maranhão, passando pelo solo ancestral da Bahia”. Num percurso que incluiu a visita a “20 comunidades indígenas e quilombolas”, o facilitador, formador, consultor, orador e storyteller pôde recordar que “a justiça tem ritmo (...) como um tambor que nunca deixa de bater”. A experiência é partilhada a poucos meses da COP 30 – Conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, que acontece de 10 a 21 de Novembro na Amazónia –, com a força de uma lição de vida. “A caminho da COP30, não levo apenas notas. Levo vozes. Vozes que dizem: não estamos à espera de salvação. Já estamos a tecer o futuro”. Por isso, o convite que Virgílio deixa “é simples: Não amplifiques apenas estas vozes. Segue a sua liderança”.

“Falamos muito de “soluções climáticas” em reuniões e conferências. Mas e se as comunidades da linha da frente forem a própria solução? E se a reparação não for caridade, mas um acto de devolução – de recursos, de dignidade – a quem já cuida da vida?”. As reflexões partem de Virgílio Varela, que regressou de cinco meses de viagem pelo Brasil acompanhado das vozes que foi escutando, “das terras alagadas do Rio Grande do Sul às florestas sagradas de palmeiras no Maranhão, passando pelo solo ancestral da Bahia”. Num percurso que incluiu a visita a “20 comunidades indígenas e quilombolas”, o facilitador, formador, consultor, orador e storyteller pôde recordar que “a justiça tem ritmo (...) como um tambor que nunca deixa de bater”. A experiência é partilhada a poucos meses da COP 30 – Conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, que acontece de 10 a 21 de Novembro na Amazónia –, com a força de uma lição de vida. “A caminho da COP30, não levo apenas notas. Levo vozes. Vozes que dizem: não estamos à espera de salvação. Já estamos a tecer o futuro”. Por isso, o convite que Virgílio deixa “é simples: Não amplifiques apenas estas vozes. Segue a sua liderança”.

Virgílio Varela percorreu o Brasil durante cinco meses

Texto de Virgílio Varela

“Esta não foi uma jornada para ‘ajudar’ comunidades. Foi uma jornada para escutar, para desaprender — e para recordar o que a Terra já sabe.”

Durante cinco meses, percorri o Brasil — das terras alagadas do Rio Grande do Sul às florestas sagradas de palmeiras no Maranhão, passando pelo solo ancestral da Bahia — visitando 20 comunidades indígenas e quilombolas.

Não ia à procura de histórias. Ia ao encontro de territórios vivos de sabedoria.

Cada comunidade recebeu-me não com discursos ou formalidades, mas com alimento, ritmo e memória. Partilharam comigo as suas dores — grilagem, águas contaminadas, línguas silenciadas — mas também partilharam os seus sonhos.

E isso mudou tudo.

No Maranhão, sentei-me com mulheres que há gerações protegem o babaçu. Mostraram-me que resistir também pode ser plantar, cozinhar, ensinar.

Na Bahia, ouvi tambores que falam de realeza, de exílio e de regresso.

E no Sul, vi escolas destruídas pelas cheias e corações ainda em processo de cura — mas também jovens negros a replantar, regenerar e acreditar.

O que encontrei não foi apenas dor. Foi presença. Uma força ancestral que resiste a tornar-se estatística ou objecto de caridade.

Falamos muito de “soluções climáticas” em reuniões e conferências.

Mas e se as comunidades da linha da frente forem a própria solução?

E se a reparação não for caridade, mas um acto de devolução — de recursos, de dignidade — a quem já cuida da vida?

Esta jornada recordou-me que a justiça tem ritmo. Nem sempre é rápido. Nem sempre é ruidoso. Mas é constante — como um tambor que nunca deixa de bater.

A caminho da COP30, não levo apenas notas. Levo vozes.

Vozes que dizem: não estamos à espera de salvação. Já estamos a tecer o futuro.

O convite é simples:

Não amplifiques apenas estas vozes. Segue a sua liderança.

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A cor que nos divide: o impacto do colorismo em países de maioria negra

“Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite”. O testemunho, escrito na primeira pessoa, é da moçambicana Shira Cátina Guambe que, a partir da experiência “como mulher negra retinta, e do contacto com diversas realidades”, propõe “uma análise crítica sobre as heranças coloniais, os padrões de beleza eurocentrados, e a invisibilidade que persiste nas relações sociais e afetivas”. O resultado lê-se no texto aqui publicado.

“Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite”. O testemunho, escrito na primeira pessoa, é da moçambicana Shira Cátina Guambe que, a partir da experiência “como mulher negra retinta, e do contacto com diversas realidades”, propõe “uma análise crítica sobre as heranças coloniais, os padrões de beleza eurocentrados, e a invisibilidade que persiste nas relações sociais e afetivas”. O resultado lê-se no texto aqui publicado.

Shira Cátina Guambe, assina esta reflexão

Texto de Shira Cátina Guambe

Falar sobre racismo estrutural é, hoje, um debate inevitável em qualquer sociedade. Mas no próprio universo negro, há uma ferida silenciosa, muitas vezes negligenciada: o colorismo. Esta forma de discriminação, baseada na tonalidade da pele no próprio grupo racial, continua a afetar profundamente como nos vemos, nos relacionamos e somos tratados mesmo em países de maioria negra. A questão que se impõe é simples, mas dolorosa: como é possível que, mesmo onde somos maioria, sejamos vítimas de uma lógica que nos hierarquiza pela proximidade à brancura? 

Colorismo: definição e legado

O termo colorismo foi popularizado pela escritora e ativista norte-americana Alice Walker, que o definiu como “o preconceito ou discriminação contra indivíduos com pele mais escura, geralmente entre pessoas do mesmo grupo étnico ou racial”. Embora nascido no contexto afroamericano, o colorismo é um fenómeno global e persistente.

Não é somente uma questão de tom de pele. É um reflexo de séculos de dominação colonial, onde tudo o que se aproximava do europeu era considerado superior: desde a cor da pele, ao cabelo, ao nariz, aos lábios, à estrutura corporal. É uma herança que atravessa gerações e geografias, e que continua a moldar o modo como construímos valor, beleza e estatuto.

Por mais insano que pareça, esta lógica persiste ainda hoje, mesmo em países onde a maioria da população é negra. Em vez de desaparecer, o colorismo ganhou novas roupagens e adaptou-se às dinâmicas atuais de poder, consumo e representação. 

Quando a cor da pele se torna critério: os impactos reais do colorismo

O colorismo não se limita ao campo da estética. Infiltra-se silenciosamente em todas as esferas da vida: nas oportunidades profissionais, na forma como somos atendidos nos serviços públicos, nas escolhas afetivas, na representação nos meios de comunicação e até nas nossas próprias aspirações.

Em muitos países africanos, incluindo o meu, não é raro vermos pessoas de pele mais clara em posições de maior destaque, sobretudo em áreas como a comunicação, moda, publicidade ou atendimento ao público. Em Moçambique, por exemplo, basta assistir a uma sequência de anúncios televisivos ou folhear uma revista para perceber que os rostos escolhidos para representar o “ideal” moçambicano tendem a ter tons de pele mais claros e traços mais próximos dos padrões eurocêntricos. O mesmo se observa em Angola, no Senegal, ou mesmo no Brasil, países com histórias distintas, mas atravessados pelo mesmo legado.

Isto não é coincidência. Segundo um estudo da Universidade da Cidade do Cabo, pessoas de pele mais clara, em contextos urbanos africanos, têm maior probabilidade de aceder a cargos bem remunerados e a serviços de saúde privados. Embora os dados variem consoante o país, o padrão é reconhecível: a tonalidade da pele continua a funcionar como um filtro social um privilégio invisível para uns, uma barreira camuflada para outros.

Contradições e invisibilidade: entre heranças coloniais e padrões eurocentrados

“Ela tem boa cor”, dizem, a elogiar uma mestiça. “O teu cabelo é duro, devias usar relaxante.” “Sou escuro, mas tenho hábitos de brancos.” Quem cresceu em contextos africanos ou afro-diaspóricos provavelmente já ouviu (ou disse) alguma destas frases. À primeira vista, parecem inofensivas. Mas carregam em si séculos de invisibilidade, de negação, de reconfiguração forçada da identidade negra.

São frases que mostram como a colonização deixou marcas profundas. Afinal, é um povo que foi anulado por séculos e levado a crer que os seus traços são feios e vulgares, que o seu cabelo é ridículo e pobre, que as curvas das mulheres negras são excessivas e traiçoeiras, que o nariz largo é deselegante. Tudo isso visando encaixar nos padrões da nova sociedade a colonial e afastar-se de tudo o que revelava a sua origem.

E é aqui que mora o perigo: estas ideias ainda enchem o nosso mundo e esvaziam a nossa essência. Porque muitos negros retintos, nascidos em África, sentem a necessidade de mudar a sua aparência para se tornarem socialmente mais aceites. Hoje, com míseras moedas, é possível comprar cremes que prometem “clarear” a pele. O mesmo se aplica ao cabelo: há uma infinidade de produtos para alisar, extensões e wigs, que poderiam ser usados como opção estética, mas que se tornam uma dependência disfarçada, uma exigência para “pertencer”.

O silêncio não nos serve: entre consciência e mudança

Falar sobre colorismo, especialmente dentro da nossa própria comunidade, não é confortável. Há silêncios que se tornaram regra, e feridas que aprendemos a disfarçar com humor ou resignação. Mas quanto mais ignoramos, mais normalizamos e mais longe ficamos de nos ver por inteiro.

Como mulher negra retinta, reconheço que sou privilegiada por ser consciente da minha identidade e isso devo, na maioria, à minha mãe. Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite.

Mas talvez o impacto mais profundo nem seja o externo é o que acontece por dentro. O colorismo interiorizado, aquele que fere a auto-estima, é provavelmente o mais doloroso. Já ouvi, mais de uma vez, comentários como: “Fulana tem o útero limpo, vê-se pelo facto de o filho ter nascido clarinho.” Ou: “O teu cabelo nem parece ruim” como se o facto de parecer “menos crespo” fosse um elogio. E ainda aquele clássico: “Se fosses clara, eras muito mais bonita.” São frases que se dizem com naturalidade, mas que carregam séculos de rejeição, de comparação, de desvalorização dos traços negros.

Acresce a isto o fenómeno, infelizmente frequente, de vermos homens negros que se sentem vitoriosos ou “evoluídos” quando conseguem relacionar-se com mulheres brancas ou mestiças como se o amor estivesse também submetido a um código de validação racial. Basta observar o padrão em muitos atletas, músicos ou figuras públicas negras que, ao atingirem certo estatuto social ou económico, optam por estar com mulheres de pele mais clara, como se isso simbolizasse uma espécie de ascensão. Palavras, escolhas e silêncios que vão minando a identidade, como gotas constantes numa rocha frágil.

Encerrar para começar: o desafio de reimaginar-nos

Desconstruir o colorismo é um trabalho de todos os dias e de todos nós. Não basta somente culpar o sistema ou recordar as feridas do passado. É urgente olharmos para o interior da nossa comunidade e percebermos como continuamos a reproduzir, muitas vezes sem querer, lógicas que nos dividem, que nos hierarquizam, que nos enfraquecem. Precisamos de criar espaços onde todas as tonalidades de pele negra sejam valorizadas, onde o cabelo crespo seja celebrado e não tolerado, onde as crianças negras cresçam sem precisar de se comparar ou esconder.

Talvez não consigamos mudar tudo de uma vez. Mas podemos começar com o que dizemos, com o que partilhamos, com o que calamos. Podemos começar por escutar mais, por educar-nos mutuamente, por resgatar a beleza que sempre foi nossa e que nunca deveria ter sido colocada em dúvida.

No fundo, trata-se de reimaginar o que significa ser negro num mundo que tantas vezes tentou dizer-nos o contrário. E nessa reimaginação, há espaço para orgulho, para coragem e para cura.

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José Semedo Fernandes vê nas alterações à Lei da Nacionalidade um “ajoelhar” do Governo perante a extrema-direita

A Assembleia da República iniciou, na semana passada, a discussão sobre as alterações à Lei da Nacionalidade, cuja votação foi, entretanto, adiada para Setembro. As mudanças, nos termos propostos pelo Governo, representam não apenas um “retrocesso social”, aponta, ao Afrolink, o advogado José Semedo Fernandes, assinalando o “‘ajoelhar’ do Governo diante da deriva populista que Portugal agora atravessa”.

A Assembleia da República iniciou, na semana passada, a discussão sobre as alterações à Lei da Nacionalidade, cuja votação foi, entretanto, adiada para Setembro. As mudanças, nos termos propostos pelo Governo, representam não apenas um “retrocesso social”, aponta, ao Afrolink, o advogado José Semedo Fernandes, assinalando o “‘ajoelhar’ do Governo diante da deriva populista que Portugal agora atravessa”.

José Semedo Fernandes

Com uma longa e extensa experiência em processos de regularização e acesso à nacionalidade – nomeadamente no Gabinete Jurídico do outrora CNAI – Centro Nacional de Apoio ao Imigrante, hoje CNAIM - Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes –, José Semedo Fernandes recorda que a estratégia do actual Executivo, de criar uma “confusão entre políticas migratórias e de nacionalidade”, repete a linha adoptada pelo XIX Governo Constitucional, liderado por Pedro Passos Coelho. “Nesse período criaram-se leis que abriram a porta à expulsão de pessoas nascidas em Portugal (filhos de estrangeiros) com base em conceitos indeterminados como a desordem pública”.

Na resposta, por escrito, a um conjunto de questões enviadas pelo Afrolink, o advogado rejeita, igualmente, a ideia de uma política migratória ‘de portas escancaradas’. “De salientar que, no momento da organização da Expo 98, construção da ponte Vasco da Gama e anos seguintes, tivemos uma entrada massiva de imigrantes em Portugal, a maioria em situação irregular, mas esses, por questões económicas, foram “acolhidos” sem qualquer dificuldade”.

O advogado chama ainda a atenção para um aspecto que tem sido ignorado: “Em relação aos filhos de estrangeiros, nascidos em Portugal, o debate tem-se centrado nas crianças que irão nascer, após a publicação da lei, olvidando os efeitos que a mesma produzirá às pessoas que nasceram desde 1981 até à data”.

Debruçando-se sobre esses casos, o especialista salienta que “esse jovens-adultos, nascidos em Portugal, têm sido tratados como estrangeiros sendo (legalmente/burocraticamente) impedidos de ter acesso à nacionalidade portuguesa”. Injustamente.

Em vez de “reparar historicamente esses jovens/adultos, tal como foi feito com os descendentes do Judeus Sefarditas”, o Governo, sob liderança de Luís Montenegro, prefere alimentar o “ódio contra a diferença”, reitera José Semedo Fernandes, peremptório na análise. “Uma das estratégias tem passado pela desumanização do imigrante criando a ideia de que a sua presença é a origem de tudo o que corre mal em Portugal”. 

As alterações à Lei da Nacionalidade, propostas pelo Governo, estão a ser apontadas como um retrocesso, e, pior do que isso, como uma inversão do sentido que Portugal vinha dando às suas políticas de acolhimento. Que mudanças destacas, e qual o seu impacto nos processos que tens acompanhado?  

As alterações à Lei da Nacionalidade, propostas pelo actual Governo, apresentam-se como um retrocesso nos direitos sociais, cívicos, políticos e até humanitários dos cidadãos imigrantes e dos seus descendentes. Apresenta-se também como um “ajoelhar” do Governo diante da deriva populista que Portugal agora atravessa. Costumo dizer que a alteração da Lei da Nacionalidade portuguesa operada em 1981 foi a pior das atrocidades que o Estado Português cometeu contra milhares de filhos de estrangeiros nascidos em Portugal (com efeitos nefastos desde 1981 até à data), impedindo-os de ter direito à nacionalidade do país onde nasceram. De salientar que os efeitos dessa lei perduram até hoje, condenando milhares desses jovens/adultos a serem estrangeiros, muitos em situação irregular, no país onde nasceram. A proposta do Governo pretende aumentar o tempo de residência legal dos pais, à data do nascimento, para três anos. Ao invés de reparar historicamente esses jovens/adultos, tal como foi feito com os descendentes do Judeus Sefarditas, prepara-se agora para publicar uma lei que prejudicará não apenas as crianças que nascerão após a publicação da Lei, mas também os milhares de jovens/adultos que nasceram desde 1981 até à data. Acresce que, muitos desses jovens, por desconhecimento, resolveram a sua situação através do pedido de nacionalidade por naturalização. Nacionalidade essa que o Governo propõe que seja retirada como pena acessória. Portanto, caso a proposta avance em relação aos filhos dos estrangeiros nascidos em Portugal, será seguramente um retrocesso social. 

De que forma tens acompanhado o debate político sobre esta nova lei, nomeadamente, a discussão parlamentar? Que distorções e omissões te saltam à vista?

Em relação aos filhos de estrangeiros, nascidos em Portugal, o debate tem-se centrado nas crianças que irão nascer, após a publicação da lei, olvidando os efeitos que a mesma produzirá às pessoas que nasceram desde 1981 até à data. De reforçar que, esse jovens-adultos, nascidos em Portugal, têm sido tratados como estrangeiros sendo (legalmente/burocraticamente) impedidos de ter acesso à nacionalidade portuguesa.

Estas mudanças legislativas têm sido vistas como uma resposta à agenda populista de extrema-direita, e não como uma resposta a necessidades/problemas existentes no país. Qual seria, na tua óptica, uma resposta adequada, em termos de política de nacionalidade e porquê?

Na minha opinião, estas mudanças, mascaradas de respostas a essa agenda populista, têm “embebido” o nosso tecido social na “solução” do ódio contra a diferença.  Uma das estratégias tem passado pela desumanização do imigrante criando a ideia de que a sua presença é a origem de tudo o que corre mal em Portugal.

Entendes que o caminho legislativo que se está a seguir resulta de uma confusão entre políticas migratórias e de nacionalidade? Uma espécie de travão a “novos portugueses” indesejados?

Sim, tenho esse entendimento, visto que não é a primeira vez que essa estratégia é implementada. No XIX Governo Constitucional (começou em 2012 e terminou em 2015), liderado por Pedro Passos Coelho, também se criou uma confusão entre políticas migratórias e de nacionalidade. Nesse período criaram-se leis que abriram a porta à expulsão de pessoas nascidas em Portugal (filhos de estrangeiros), protegidas constitucionalmente, com base em conceitos indeterminados como a desordem pública. 

Considerando a tua experiência com processos de regularização, alguma vez houve em Portugal uma política de imigração de portas escancaradas?

Tenho imensas dificuldades em aceitar essa expressão (portas escancaradas) De esclarecer que, a actual Lei da Estrangeiros foi publicada em 2007. Não obstante, essa expressão (portas escancaradas) apenas ganhou força nos últimos cinco anos com o surgimento do Chega, que passou a utilizar o tema da imigração como arma de arremesso. De salientar que, no momento da organização da Expo 98, construção da ponte Vasco da Gama e anos seguintes, tivemos uma entrada massiva de imigrantes em Portugal, a maioria em situação irregular, mas esses, por questões económicas, foram “acolhidos” sem qualquer dificuldade. Acresce que, com a entrada em vigor da Lei de Estrangeiros (em 2007), milhares de cidadãos migrantes (entre eles os cidadãos indostânicos) ajudaram a resgatar a Segurança Social com um saldo positivo de milhões de euros anuais. Também estes foram bem acolhidos até começarem a trazer, nos últimos anos, as mulheres e os filhos.

O aumento do período de permanência no país para requerer cidadania portuguesa é agravado também pela forma como esse prazo é contado: não a partir da entrega do pedido de legalização, mas apenas quando o mesmo é concedido, algo que se pode arrastar no tempo. Há quem refira a inconstitucionalidade deste preceito. Partindo do princípio que a lei passa nestes termos, há caminho legal para contestar essa exigência?

Em relação a essa questão, acredito estarmos na presença de uma diferença de tratamento perante a lei. Violando assim o princípio da igualdade. Nessa senda, só os tribunais poderiam clarificar essa situação.

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O racismo pelo olhar de uma jovem: “Tornei-me negra quando cheguei a Portugal”

Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.

Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.

Texto de Valdeth Dala

Quando eu me mudei com a minha família para Portugal em 2023, eu percebi que o racismo não só existe, como é uma questão muito séria. Percebi que a realidade é ainda mais brutal do que qualquer filme representa. Percebi que ainda vivemos num mundo em que o negro é discriminado, agredido, menosprezado, e julgado simplesmente por ser negro.

Nasci e cresci em Angola, um país com uma população maioritariamente negra, onde o racismo é arquivado em livros de História, e tido apenas como parte de um passado inconveniente.

Ao longo da minha adolescência, comecei a acompanhar filmes que abordavam, retratavam, denunciavam e contestavam o racismo no período da escravidão, no período colonial e pós-colonial, como por exemplo: “12 Anos Escravo”, “As Serviçais”, “Mandela: Longo Caminho Para Liberdade”, “O Ódio que Semeias”, “Foge”.

Mas, nenhum filme me preparou para a realidade que encontrei cá em Portugal, onde, no dia 12 de Junho, Maria Luemba, uma menina angolana de 17 anos, foi encontrada morta em sua residência, numa vila perto de Aveiro.

As autoridades apontaram para um suicídio, porém os familiares contestam essa versão. Há, inclusivamente, suspeitas de homicídio, implicando um vizinho com desavenças anteriores com a família.

Esse caso gerou grande comoção junto da comunidade negra – mas não em toda a sociedade –, e culminou num protesto realizado no último domingo, 29 de junho.

Mas o que o caso Maria Luemba tem que ver com racismo? Responderei a essa questão nos parágrafos seguintes.

A forma como a investigação à morte de Maria Luemba começou por ser conduzida levanta dúvidas sobre a atuação policial, com fortes indícios de racismo institucional.

Aliás, desde o início houve falta de informações por parte da polícia, remetida ao silêncio.

Por outro lado, a imprensa só passou a cobrir o caso após a mobilização por parte de coletivos negros e protestos organizados nas redes sociais.

Infelizmente, o caso Maria Luemba não é único. São várias as pessoas negras agredidas, oprimidas e assassinadas em Portugal.

Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição na Cova da Moura, em outubro de 2024. Cláudia Simões, mulher angolana, foi agredida violentamente por elementos da PSP na Amadora, em janeiro de 2020. Elson Sanches, conhecido como “Kuku”, era um jovem português negro de 14 anos e foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição no antigo bairro de Santa Filomena, em 2009. Luís Giovani Rodrigues, jovem cabo-verdiano de 21 anos, morreu na sequência de uma agressão racista em Bragança, ocorrida em dezembro de 2019.

É enorme a lista de pessoas cujas mortes, opressões, agressões e abusos sofridos não recebem a devida atenção por serem negras, imigrantes ou de contextos socioeconómicos desfavorecidos.

Nos últimos dias, ouvi de um amigo que o sistema já era do jeito que é mesmo antes de eu nascer, e que tentar mudá-lo ou ir contra ele é como tentar remar contra uma maré, que sempre acaba por vencer. A seguir, acrescentou: “É assim, só nos resta aceitar”.

Ele não é a primeira pessoa que eu ouço a dizer isso, e sei que não é a única pessoa a pensar assim. Na verdade, são várias as pessoas que pensam e dizem: “O racismo sempre existiu e sempre existirá”, ou então “O racismo sempre existirá na sociedade, o que nos resta é nos conformarmos com isso”.

Mas como posso me conformar com um sistema que vê a minha cor como arma?

Assim como Grada Kilomba escreveu “me tornei negra quando cheguei aos EUA”, eu também posso afirmar que me tornei negra quando cheguei a Portugal. Foi necessário sair do meu país, da minha bolha, para entender que o racismo não é passado — é presente, mas não pode ser futuro.

Não posso me conformar com um sistema que continuamente agride, oprime e mata pessoas como eu. Poderia ser eu ou a minha irmã no lugar da Maria Luemba. Poderia ser a minha mãe no lugar da Claúdia Simões. Poderia ser o meu irmão no lugar de Elson Sanches. Poderia ser o meu pai no lugar de Odair Moniz. Então, eu digo não. Não posso simplesmente aceitar a falência do sistema. Não posso simplesmente me conformar com uma sociedade racista.

O que está em causa não são apenas casos de mortes violentas, agressão, opressão de pessoas negras, mas sim a forma como o sistema reage – ou se cala – quando a vítima não se enquadra no perfil de “vítima ideal” construído pela sociedade.

Que a justiça por todas as pessoas aqui mencionadas — e também por aquelas que não foram mencionadas — seja feita. Que o sistema mude e melhore, para que as próximas gerações não tenham que lutar mais essa luta.

Faço do sonho de Martin Luther King Jr. meu sonho.

“Tenho um sonho: que os meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de pele, mas pelo seu caráter.” Martin Luther King Jr.

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Dança, canta, partilha vivência ancestral, segue para o Sacerdócio no Candomblé e dá-se a ouvir na Gulbenkian – ela é Nara Couto

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto fez carreira como bailarina antes de soltar a voz nos palcos. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes.

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna. No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco. “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”, conta ao Afrolink. Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, aventurou-se na música. Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, numa assinatura construída sob o impulso criativo de Sara Tavares, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”. Antes, gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”. Agora a caminho do Sacerdócio no Candomblé, a artista, criadora da oficina de movimento “Vivência Ancestral”, vê nesta religião uma forma de preservação da presença de África no Brasil. “O Candomblé é um lugar de resistência muito grande”. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes. Vamos!

Num barco no meio do mar, entre espectáculos por Portugal, Nara Couto encontrou em Sara Tavares o balanço que, até hoje, marca a sua identidade musical.

“Eu disse: é isso! Estou conectada. Foi a primeira vez que ouvi Balancê, e mexeu muito comigo”.

Mergulhada na voz e composição de Sara, Nara fez dela assinatura, e letra a letra, dá-nos a escutá-la no próximo sábado, 5 de Julho, às 17h, no Jardim de Verão da Gulbenkian.

A caminho do concerto, o Afrolink foi conhecer mais sobre a artista, que firmou carreira como bailarina, antes de soltar a voz como cantora.

“As pessoas achavam que eu tinha que cantar um pouco mais forte, mas eu tinha a Sara Tavares como referência. E a Sara cantava sobre amor e sobre a leveza”.

Ainda a refazer-se da dor da perda da cantautora – que teve a oportunidade de ver actuar num concerto em Cabo Verde –, Nara conta como encontrar a voz de Sara, falecida em 2023, a inspirou a querer conhecer mais.

“África chegou até mim porque eu pesquisava muito. E quando comecei nessa busca, a minha referência foi a Sara Tavares, inclusive para a capa de um disco”.

Entretanto embalada também por outras músicas de criação africana, a baiana partilha múltiplas inspirações.

“Em Cabo Verde, eu comecei a ouvir os Tubarões e o Gil Semedo”, assinala, antes de revelar uma companhia de todos os dias.

“Sou muito fã do Paulo Flores – o tio Paulo –, que eu oiço sempre, e com quem tenho contacto”.

A ligação, antecipa Nara ao Afrolink, encaminha-se para uma parceria em fase de construção: “Estamos a conversar sobre projectos futuros”.

Da Bahia para “Outras Áfricas”

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, a artista viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna.

No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco.  “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”.

Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e foi já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, que se aventurou na música.

Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”.

Antes desta produção, que se vai estender a uma curta-metragem, a baiana gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”.

“A intenção é fazer com que a gente realmente faça grandes pontes”, sublinha, depois de uma viagem pela Guiné-Bissau, onde as ligações musicais incluíram um encontro com a Secretária de Estado da Cultura, Nancy Alves Cardoso.

“Imediatamente também escrevi para o Secretário de Cultura do Estado da Bahia para falar: ‘Estou aqui em Guiné-Bissau, estamos conversando e precisamos conversar mais”.

Nara promove e aprofunda esse diálogo a partir do projecto “Outras Áfricas”, que completou uma década em 2024.

A iniciativa, que num primeiro momento foi desenvolvida no Brasil, através do encontro com músicos africanos aí radicados, volta-se agora para os PALOP.

Depois do voo guineense, que teve como anfitrião e parceiro Mû Mbana, a baiana planeia viagens a Cabo Verde e Angola, sempre com ligações de palco e de estúdio.

“Estamos organizando para que todo mês eu possa estar compartilhando uma música com um artista do continente africano”, antecipa Nara, apontando Mû Mbana como o primeiro nessa frente de gravações. 

Danças com ancestrais e Sacerdócio no Candomblé

A rota de expressão e projecção musical combina-se sempre com movimento, hoje traduzido, para além dos palcos, no projecto “Vivência Ancestral”.

A proposta, assinala-se na sinopse, recorre a “momentos práticos multireferenciais das culturas negras e da transmissão oral de conhecimento”, para “criar uma experiência significativa que contribua para o bem-estar pessoal e colectivo, bem como para a preservação das tradições ancestrais a partir da dança”.

Já apresentada em Lisboa e no Porto, a vivência, explica Nara, é sobre ela própria “ser um instrumento que transporta uma mensagem que já foi passada pelos mais velhos”. O processo, sublinha, está enraizado na sua vida.

“É dessa forma que eu também adquiro a minha sabedoria, eu sento e converso com os mais velhos, eu leio livros. Eu ouço o vento, eu ouço o silêncio para depois compartilhar”.

Desengane-se, por isso, quem vai em busca de um workshop de dança. Na “Vivência Ancestral”, Nara entrega conexão – de cada pessoa consigo própria, com as suas raízes, com a natureza, com o mundo e a humanidade.

“Estamos todos vivendo nosso céu e nosso inferno ao mesmo tempo. Então, quando eu falo alguma coisa, se for importante, aquela pessoa vai acolher e utilizar no dia-a-dia”.

Comunicadora ancestral, a artista coloca em cada mensagem que partilha a intenção “de que as pessoas fiquem bem e que vivam melhor”.

O propósito encaminha os seus passos para o Sacerdócio no Candomblé, que cultua como uma forma de preservação da presença de África no Brasil.

“A forma como a gente come, tanto as comidas, como os alimentos; a forma como nós cantamos, como nós dançamos, tudo isso que um africano que vai no Brasil vê, reconhece e diz ‘Isso é África’, foi preservado através do Candomblé”.

Muito mais do que uma religião, Nara realça que “o Candomblé é um lugar de resistência muito grande”.

Axé!

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Pais de Maria Luemba recordam a filha: “Foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará”

Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.

Ladis Baltazar e David Luemba, pais de Maria Luemba, jovem angolana de 17 anos encontrada morta em circunstâncias suspeitas no passado dia 12 de Junho, em Sever de Vouga, Aveiro, recordam a “luz própria” e “alegria contagiante” da filha, num texto em que partilham “O que Maria representava” para ambos. As memórias, lidas na manifestação do último domingo, 29 de Junho, já depois do enterro, realizado na véspera, ouviram-se entre apelos à Justiça. “A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda”, sublinham, garantindo: “Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido”. Firmes, Ladis e David, reiteram: “A justiça será o nosso acto de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços”. Sensibilizados com a solidariedade que têm recebido, os pais de Maria agradecem “todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações”, e notam que “esse calor humano tem sido um abraço invisível”, que os tem sustentado e dado forças para continuar. O Afrolink partilha a carta na íntegra.

Manifestação por Justiça para Maria Luemba, realizada no último domingo, 29, em Lisboa

O que Maria representava para nós, seus pais 

Falar da Maria é mergulhar num mar de luz, ternura e esperança. Nossa filha foi, e sempre será, um milagre em nossas vidas. Era impossível não notar a sua presença — não apenas por sua beleza exterior, mas pelo brilho que vinha de dentro, uma luz própria, rara, que iluminava tudo ao seu redor. Maria era feita de amor, de sonhos e de uma alegria contagiante que tocava todos que cruzavam seu caminho.

 Ela era mais do que nossa filha. Era nossa melhor amiga, nossa confidente, a razão de muitos dos nossos sorrisos e orgulho. Tinha o dom de transformar o ordinário em extraordinário, de fazer com que cada momento com ela fosse uma dádiva. Sempre teve um carinho especial por todos – por nós, seus pais, por seus irmãos, avós, tios, primos, amigos… Maria era dessas almas que sabiam amar e ser amadas.

Com apenas 17 anos, já demonstrava uma maturidade admirável e sonhava alto. Queria conquistar o mundo, não com arrogância, mas com gentileza, humildade e muito trabalho. Era uma jovem cheia de vida, com um futuro brilhante desenhado por Deus e impulsionado pelo seu próprio esforço. E, de forma cruel e brutal, isso tudo lhe foi tirado. Roubado. Interrompido.

Diante de tanta dor, nos faltam palavras que estejam à altura do que Maria foi para nós. Como pais, nos resta apenas o consolo de crer que ela não se foi – ela se transformou. A luz que ela era neste mundo agora brilha como estrela no céu, sentada ao lado do Pai Celestial. E mesmo na ausência, ela continua viva em nós, nas nossas memórias, nos nossos gestos, e no amor que nunca deixará de existir.

Agradecemos, de coração, todas as manifestações de carinho, solidariedade, apoio e orações que temos recebido de familiares, amigos, instituições e até de desconhecidos. Esse calor humano tem sido um abraço invisível que nos sustenta e nos dá forças para seguir. 

E agora, com o coração ferido, mas com fé inabalável, aguardamos que a justiça seja feita. Porque Maria merece. Porque todas as Marias merecem viver. E porque a luz dela nunca será esquecida. Nunca.

Maria não era apenas nossa filha, era um sopro de Deus em nossas vidas. Tinha o dom raro de transformar o ambiente com sua presença – bastava um sorriso seu para o dia parecer mais leve, bastava um abraço para todo o peso do mundo desaparecer. Ela tinha esse poder, suave e profundo, de tocar o coração das pessoas sem fazer esforço, apenas sendo quem era: doce, sincera, cheia de graça.

Era uma menina que sonhava com os olhos abertos. Sonhava em crescer, estudar, viajar, ajudar os outros… Sonhava em dar orgulho a seus pais – e como deu! Mesmo com tão pouca idade, Maria deixou um legado de amor, simplicidade, respeito e luz. Era admirada pela sua educação, pela forma como tratava os mais velhos, e pela empatia com os mais frágeis. Não havia arrogância nela, apenas uma bondade genuína e uma alegria transparente, dessas que vêm da alma. 

Ela não merecia esse fim. Nenhuma filha merece. A forma brutal como a tiraram de nós é uma ferida aberta, profunda, que clama por justiça. Não apenas por nós, seus pais, mas por tudo o que ela representava – por tudo o que ela ainda poderia ser. Lutaremos até ao fim para que a verdade apareça, para que os culpados sejam responsabilizados, e para que o nome da Maria nunca seja esquecido. A justiça será o nosso ato de amor por ela, agora que já não podemos protegê-la com os nossos braços.

E enquanto esperamos por essa justiça, abraçamos cada gesto de carinho que temos recebido. As mensagens, as orações, os abraços silenciosos, os olhos marejados de tantos que, mesmo sem conhecê-la profundamente, sentiram a dor dessa perda. Obrigado, de coração, a cada um que tem caminhado connosco nessa travessia tão difícil.

Maria agora vive em outro plano, onde não há dor, nem injustiça, nem medo. Vive em Deus. E por mais que nos faltem forças, continuaremos de pé – por ela. Porque se a vida nos tirou Maria do presente, o amor que sentimos por ela nos dará forças para honrá-la todos os dias, com coragem, com dignidade, com memória.

Nossa filha foi, é, e sempre será o melhor de nós. A luz dela nunca se apagará.  

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“Contado por Mulheres” - Carta Aberta contesta falta de pluralidade do projecto

Pela segunda temporada a caminho do pequeno ecrã, o projecto “Contado por Mulheres”, uma produção da Ukbar Filmes em parceria com a RTP, sobressai pela ausência de diversidade. “Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é negra ou racializada, uma mulher com deficiência, ou uma mulher trans”, denuncia-se numa carta aberta dirigida à Ukbar Filmes, à RTP, e às 20 realizadoras que integram esse projecto. O Afrolink divulga a carta na íntegra, subscrita por mais de 430 pessoas, e que levanta questões fundamentais. Desde logo, estará a Ukbar Filmes disponível para assumir a falha “e tomar medidas com vista a corrigir os moldes de produção da segunda temporada e subsequentes, de forma a reflectir a pluralidade das mulheres artistas em Portugal?”.

Pela segunda temporada a caminho do pequeno ecrã, o projecto “Contado por Mulheres”, uma produção da Ukbar Filmes em parceria com a RTP, sobressai pela ausência de diversidade. “Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é negra ou racializada, uma mulher com deficiência, ou uma mulher trans”, denuncia-se numa carta aberta dirigida à Ukbar Filmes, à RTP, e às 20 realizadoras que integram esse projecto. O Afrolink divulga a carta na íntegra, subscrita por mais de 430 pessoas, e que levanta questões fundamentais. Desde logo, estará a Ukbar Filmes disponível para assumir a falha “e tomar medidas com vista a corrigir os moldes de produção da segunda temporada e subsequentes, de forma a reflectir a pluralidade das mulheres artistas em Portugal?”.

Realizadoras seleccionadas para a segunda temporada de “Contado por Mulheres”

Carta aberta à Ukbar Filmes, à RTP e às mulheres escolhidas para o projecto “Contado por Mulheres”

Foi recentemente anunciada a segunda temporada do projecto "Contado por Mulheres", uma produção da Ukbar Filmes em parceria com a Rádio e Televisão de Portugal (RTP).

Nesta segunda temporada serão produzidos 20 telefilmes dirigidos por 20 mulheres realizadoras portuguesas, que abordarão questões inspiradas nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU).

Relembre-se que para a primeira temporada do projecto “Contado por Mulheres” (2022), segundo o comunicado de imprensa da altura, foram convidadas “dez realizadoras de várias gerações, que possuem um forte sentido narrativo, com uma grande experiência, ora na representação ora na publicidade”, a saber: Ana Cunha, Anabela Moreira, Cristina Carvalhal, Daniela Ruah, Diana Antunes, Fabiana Tavares, Laura Seixas, Maria João Luís, Rita Barbosa, Sofia Teixeira Gomes. 

Nesta temporada, a Ukbar Filmes e a RTP convidaram, não dez, mas vinte realizadoras. A saber: Ana Cunha, Carolina Rosendo, Cláudia Alves, Cristina Carvalhal, Fabiana Tavares, Filipa Ruiz, Francisca Alarcão, Joana Areal, Joana Barbosa, Joana Botelho, Joana Machado Madeira, Laura Andrade, Lúcia Moniz, Margarida Leitão, Margarida Vila-Nova, Maria João Bastos, Mónica Santos, Rita Barbosa, Rita Pestana, Sandra Faleiro. 

Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é negra ou racializada.

Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é uma mulher com deficiência.

Salta à vista que nem uma das mulheres escolhidas para ambas as temporadas do projecto é trans.

Salta à vista que parte das realizadoras escolhidas para a segunda temporada do projecto é repetente na experiência.

Não salta à vista, mas facilmente se encontram ao alcance do toque ou da voz, num qualquer motor de pesquisa, os 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU – os tais cujas questões inspiram as 20 narrativas cinematográficas da segunda temporada do “Contado por Mulheres” – a saber: 1. Erradicar a pobreza; 2. Erradicar a fome; 3. Saúde de qualidade; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de género; 6. Água potável e saneamento; 7. Energias renováveis e acessíveis; 8. Trabalho digno e crescimento económico; 9. Indústria, inovação e infra-estruturas; 10. Reduzir as desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Produção e Consumo Sustentáveis; 13. Acção Climática; 14. Proteger a Vida Marinha; 15. Proteger a Vida Terrestre; 16. Paz, Justiça e Instituições Eficazes; 17. Parcerias para a Implementação dos Objectivos.

Saltam à boca as perguntas:

Para a Ukbar Filmes,

– Como justificam a total exclusão em ambas as temporadas de mulheres artistas, historicamente invisibilizadas, cujos trabalhos representam um compromisso real com as questões de género e das desigualdades – muitas das quais com percursos profissionais consolidados, e que vêm contribuindo substantivamente para um sector artístico e cultural mais fecundo, plural e transformador?

– Estão disponíveis para assumir esta falha e tomar medidas com vista a corrigir os moldes de produção da segunda temporada e subsequentes, de forma a reflectir a pluralidade das mulheres artistas em Portugal?

Para a RTP,

– Como justificam a total exclusão de mulheres negras, de mulheres racializadas, de mulheres com deficiência e de mulheres trans num projecto financiado por dinheiros públicos e alinhado com os ODS da ONU?

–  Quais os mecanismos de inclusão, consulta e transparência que foram (ou não foram) accionados no processo de selecção das realizadoras em ambas as temporadas? 

Para as mulheres, as realizadoras escolhidas: Ana Cunha, Anabela Moreira, Carolina Rosendo, Cláudia Alves, Cristina Carvalhal, Daniela Ruah, Diana Antunes, Fabiana Tavares, Filipa Ruiz, Francisca Alarcão, Joana Areal, Joana Barbosa, Joana Botelho, Joana Machado Madeira, Laura Andrade, Laura Seixas, Lúcia Moniz, Margarida Leitão, Margarida Vila-Nova, Maria João Bastos, Maria João Luís, Mónica Santos, Rita Barbosa, Rita Pestana, Sandra Faleiro, Sofia Teixeira Gomes,

– Como se posicionam perante a total ausência de mulheres negras, de mulheres racializadas, de mulheres com deficiência e de mulheres trans no projecto “Contado por Mulheres”?

– Que compromissos ou acções concretas estão dispostas a assumir – enquanto mulheres, artistas e cidadãs – para que a selecção das realizadoras da segunda temporada seja revista? 

Aguardamos pelas vossas respostas. Recusamos o vosso silêncio. A decisão de não integrar mulheres negras, mulheres racializadas, mulheres com deficiência e mulheres trans, e as suas perspectivas, não é um gesto aleatório. É uma escolha estratégica, política, que perpetua uma visão estreita sobre quem pode narrar, representar, imaginar comunidades, sociedades, países, mundos.

Ser feminista é uma prática interseccional que exige representatividade, compromisso, coragem, elevação.

Lisboa, 30 de Junho de 2025

Subscrevem,

Admila Sofia Tavares Cardoso, artista

Afrolink, rede

Ágata de Pinho Lopes, cineasta, actor

Aissa seidi, artista plástica, encadernadora, conservadora de arte, professora

Alberty luiz lemos barroso, mediador sócio cultural

Alegria Gomes, artista multidisciplinar

Alexander Jorge David Cartaxo, actor e realizador

Ali Pereira, artiste

Áliffe Barbosa Santos, auxiliar de enfermagem

Alla Falieri, artista

Amaya Sumpsi, realizadora

Amina Bawa, jornalista, produtora cultural

Ana Balona de Oliveira, historiadora de arte, curadora

Ana Carolina Gonçalves Magalhães Varela , artista multidisciplinar

Ana Carolina Mariano Gonçalves, assistente de produção

Ana Catarina Teixeira Pereira, operadora de Infografismo

Ana Cravid, manager nos seguros

Ana Filipa Mendes Tavares, professora

Ana Isabel Campos Bragança, arquitecta paisagista, gestora de projectos

Ana Isabel Duarte, gerente

Ana Isabel Fernandes Miranda, professora

Ana Isabel Vieira Fernandes, animadora sociocultural

Ana Joana Pereira Amorim, produtora executiva

Ana Mafalda Almeida, psicóloga

Ana Manhique, técnica de museologia

Ana Maria, aposentada, licenciada em LLM

Ana Maria Albuquerque Medeiros, professora

Ana Oliveira, intérprete

Ana Paula Costa, investigadora

Ana Rita Costa Gomes, mediadora intercultural

Ana Rita Monteiro da Cruz, actriz

Ana Rita Monteiro dos Santos, actriz

Ana Rita Xavier, coreógrafe

Ana rod, puta

Ana Sofia Martins, actriz

Ana Sofia Rodrigues da Silva Montes Palma, administrativa

Ana Valentim, actriz

Anabela Rodrigues, coordenadora da associação Teatro do Oprimido

Anaïs Ichiban, desenhadora de moda

Anaísa Lopes, coreógrafa, bailarina, professora

Anca Usurelu, produção, edição de livro

Andreia Byda, jurista

Andreia Nunes, animadora 2D

Andreia Nunes, produtora, professora

Andreia Ruivo, artista

Andreia Vanessa Morais Araujo, auxiliar de saúde

Angela Guerreiro, artista independente

Ângela Tavares, Kyc Officer

antonio ferreira, artista

António Pedro Bollaño Romero Bernardo Godinho, actor, dançarino

Aoaní, actriz, encenadora

Ariana Helena Varela Furtado, professora

Ariel de Bigault, autora, realizadora

Arlindo Camacho, fotógrafo

Associação Cultural Nêga Filmes, promotora da Cultura Negra

Associação Teatrolobby , companhia de teatro

Atena Barbosa, criadora, intérprete, produtora

Aveiro Feminista, colectivo

Barbara Almeida, médica

Barbara Lisana Mendes Freire Lino, cozinheira

Bárbara Wahnon, cantora, empresária

Be Dias, criadora, bailarine, performer

beatriz cruz freches de sousa teodosio, actriz

Beatriz Gonçalves Maciel, estudante

Beatriz Vasconcelos, assessora de comunicação cultural

Bella Baptista da Cruz, Starving Autist & surviving, with poverty afected disabled Artist

bibiana Picado Mendes, dramturgista

Binete upa undonque, actriz

Branca Clara das Neves, escritora

Bruno Alexandre Manhiça Bento, actor

Camila Fonseca Santos Brandião, AAL

Carla Alexandra da Conceição Madeira, actriz, docente de teatro

Carla Costa Gomes, actriz

Carla Ruiz Filipe, directora de produção

Carla Sofia Fonseca Monteiro, naturopata

Carlos Pereira humorista, argumentista

Carolina Alves, estudante

Carolina Archangelo Pereira da Silva, enfermeira

Carolina Caramelo, DIT

Carolina Coimbra, doula

Catarina Borges, designer

Catarina Negrão, investigadora

Catarina Rosa branco Pereira, estudante

Catarina Simões, produtora

Catarina Sofia da Cruz Ferreira, estudante

Catarina Syder Fontinha, actriz, mediadora intercultural, comunicadora, activista

Cátia Salgueiro, professora, argumentista

Cátia Virgínia Semedo Ramos, mentora de mulheres

Célia Maria de Sousa Gonçalves Pires, produtora de audiovisuais

Celia Sofia da Silva Fechas, actriz

Celina Bermudez Vogensen, professor de inglês

César Melo, actor

Cine Contra As Paredes, Cine Clube

Cire Ndiaye, artista

Cláudia Cristina Ferreira Semedo, actriz, encenadora

Claudia Galhós, jornalista, escritora

Cláudia Marques, investigadora

Cláudia Matos, gestora cultural

Cláudia Múrias, psicóloga social

Cláudia Sofia Dores Ferreira Martins, professora de História do 3° ciclo e secundário

Claudia Sofia Sevivas Ribeiro, professora universitária

Cláudio Martins da Silva Alves, crítico de cinema, figurinista

Cleo Diára, actriz, encenadora

Cleonise Malulo Pinho, actriz

Cristina Faria, técnica de documentação e património

Cristina Maria Lopes Tavares, professora

Cristina Maria Metelo Reto Carvalhal, actriz, encenadora

Cristina Roldão, professora

Cynthia Njuguna, estratega de marketing

Daniela Rosado, economista

Danielle Pereira de Araújo, cientista política

Dejana R.F., profissional setor turístico

Denise Fernandes, realizadora, argumentista

Denise Santos, designer

Dhyra, criativa

Diana Coutinho Almeida, herbalista, cozinheira

Diana Sofia, produtora dança

Diana Vieira de Campos Almeida, tradutora

DIDI CANDIDO, artista

Diogo Soares Martins, cineasta

Domingas Monteiro Robalo, design

Efraim Teles, professor

Ekua Yankah, epidemiologista

Eleonor Mata, psicóloga

Eliana NZualo escritora, consultora

Elisa Micaela Cordeiro dos Reis, decoradora

Eloísa Ascensão Fortes Correia, artista

Elsa Ferreira, head of organizational development

Eneida Tavares, designer de produto

Estevão Soares, gerente geral de hotel

Estionefa Yamara Colombo Ferreira, gestora

Eunice Pais, artista

Fábio Monteiro, artista

Fernanda Curi, arquiteta

Fernanda Polacow, guionista

Filipa Bossuet, artista plástica, jornalista

Filipa Isabel Canhestro Barros Barriga, bibliotecária

Filipa Pissarra, jurista

Flavia Gusmao Figueira, actriz , encenadora, formadora

Francisca Mantas Pinto, bailarina, coreógrafa

Francisca Maria de Oliveira Martins, artista, estudante

Gabriela Pereira Lima,assistente de realização

Gessica Correia Borges, investigadora, artista

Gil Filipe Monteiro Pinto, actor

Gio Lourenço, actor , criardor, performer, bailarino

Gisela Casimiro, escritora e artista

Gisele Fernandes, psicóloga

Gloria García, argumentista

Grupo EducAR, educação antirracista

Hélder Ricardo Agulhas Jaques, IT - sistemas de informação

Helena Estrela Baptista Vasconcelos Barbosa, estudante

Helena Maria da Silva Marques, desempregada

Helena Vicente, transaction officer

Henda Vieira-Lopes, psicólogo clínico, terapeuta familiar sistémico

Henrique Prudêncio, realizador, editor

Hilary Owen, professora catedrática

Hoji Fortuna, actor

Hugo Henrique Ngungui Narciso, actor

Humberto Giancristofaro Carvalho, realizador

Inês Alegria, conservadora restauradora

Inês Francisco Pantaleão, actriz

Inês Margarida Pereira Ventura, técnica superior

Ines Prats Azevedo Gomes, artista plástica

Inocência Mata, professora

Isabel Branco, arquitecta

Isabel Moura Mendes, gestora cultural

Isabél Zuaa, artista multidisciplinar

Isabella Permanschlager, tradutora

Ivanova Araújo, gestora de propriedades

Izária Mario Sá, animadora sociocultural

Janielly Braz Ferreira, psicóloga

Jo Castro, artista

Joana Baptista Costa, designer

Joana Barra Vaz, cineasta, música

Joana Brito Silva, actriz

Joana Campelo Fernandes Mendes Barata, actriz

Joana da costa Teixeira, assistente social

Joana Dágua, artista

Joana Grande, técnica de relações externas

Joana Isabel Teixeira de Sousa Ribeiro, socióloga

Joana Morais, professora

Joana Peralta, produtora de cinema

Joana pereira, assistente técnico

Joana Xavier, bióloga

João Bruno Figueira Sousa Silva, professor

João Guilherme Ribeiro Delgado, professor

João Mineiro antropólogo, investigador

João Nuno Pinto, realizador

João Pedro Barriga Martins, investigador

João Salaviza, realizador

Joãozinho da Costa, actor

Joaquim Paulo Nogueira, dramaturgo

Jorge Cipriano Santos Júnior, bailarino, coreógrafo

Jorge Goncalves, diretor de som

José António de Jesus Pires, encenador

José Ramón Cárdenas Salazar, argumentista, realizador

José Rui Rosário, funcionário público

Joyce Souza, actriz, professora

Justice Nnanna, director, produtor

Karla Juliana Pinheiro Melo, professora

Katia Canton, escritora

Kátia Lorena Manuel Nobre, assistente técnica na Função Pública

Katiana Silva, consultora

Kitty Furtado, investigadora

Laís dos Anjos da Costa Andrade, realizadora, guionista

Lara Vanessa Cossa Mesquita, actriz, escritora, realizadora

Laura Brito, socióloga, mentora pedagógica

Laura Magalhães, editora audiovisual

Lee Meneres, artista

Leonardo Mouramateus, director

Leticia, fotógrafa

leve leve colectivo, associação cultural

Licinia Carvalheiro, economista

Lígia Roque, actriz, encenadora

Lisete Eunice Barroso Ornelas Da Fonseca

Lou Loução, realizadora, montadora, produtora

Lubanzadyo mpemba, cinéaste

Lucas Brasileiro, estafeta

Luciana Maruta, jornalista

Lucília Raimundo, intérprete, criadora multidisciplinar

Lucinda Loureiro, actriz

Luís Filipe Rodrigues, jornalista

Luís Gonçalo, consultor

Luísa Maciel Waddington, estudante

Luisa Maria Almeida, professora

Luísa Maria Simões da Conceição Francisco, arquivista

Luísa Rodrigues, técnica de cultura na função pública

Luísa Sol, arquitecta

Luiz Fernando Moreira, chef cozinha

Madalena Rocha, formadora, activista

Mafalda Filipa Bento Rodrigues, engª agronómica, produção executiva

Mafalda Matos, cenógrafa

Maíra Zenun, artista visual, socióloga

Maite Sobrino, consultora

Manuela Curtiss Alvarenga Vitor Foureaux, set designer

Manuela Paulo, actriz

Manuela Ribeiro Sanches, investigadora

Márcia, actriz

Márcia Alexandra Tavares Semedo, actriz

Márcia Almeida Teixeira, técnica de Produção Alimentar

Marco Mendonça, actor

Marcus Veiga, músico

Margarida Rendeiro, professora universitária, investigadora

Margarida Serrão, produtora cultural

Maria Ana Freitas, produção cultural

Maria Apolonia, consultora ambiental e social

Maria Beatriz Laschi Franco, bailarina

Maria do Livramento Andrade Reis Trovoada, técnica auxiliar de saúde

Maria Inês Araújo Amorim, assistente de comunicação

Maria Inês Castro e Silva, professora universitária

Maria João Brilhante, investigadora

Maria João Pessoa, bibliotecária

Maria José Prata pinheiro Antunes, professora

Maria Miguel Rodrigues, estudante

Maria Pinto, ilustradora, designer

Maria Ribeiro, humanitária

Maria Vieira, consultora comercial

Maria Vilma Queiroz, professora

Maria Vlachou, gestora cultural

Mariama Jaló Injai, coordenadora de projetos

Mariana Correia Gomes, actriz, técnica de produção

Mariana da Costa Viana Guarda, actriz, realizadora

Mariana de Franco Marçal, médica

Mariana Desidério Ramos, cabeleireira

Mariana Freire da Fonseca, actriz

Mariana Leão Moreira da Cunha, designer

Mariana Sá Nogueira, costureira

Mariana Silva, estudante

Mário Jorge Batista Coelho, actor, encenador

Mário Lino, comunicação

Mário Rui Martins do Souto, técnico superior de Antropologia na Câmara Municipal de

Lisboa

Marta, estudante

Marta Alexandra Arezes Mortágua, artesã têxtil

Marta Amorim, gestora de comunicação

Marta Dineia Gamito, programadora cultural

Marta Ferreira, assistente de imagem

Marta Lança Rodrigues, editora do buala

Marta Luísa Macedo Calejo, artista visual

Marta Martins, gestora cultural

Marta Morais, directora financeira

Marta Nunes, designer de comunicação

Marta Pinto Machado, investigadora, artista

Marta Sousa Ribeiro, produtora, realizadora

Martim Samora Correia Pedroso, actor, encenador, professor

Martinho Pereira Filipe, produtor

Matilde, artista

Maurícia Barreira Neves, coreógrafa

Mauro Hermínio, criador, produtor

Melissa de Barros Viana, terapeuta junguiana

Melissa Rodrigues, artista, curadora e arte-educadora

Micol brazzabeni, mediadora social

Miguel Ângelo Abreu Raposo, actor

Miguel Branco, dramaturgo

Miguel Clara Vasconcelos, cineasta

Miguel Fernandes Garcia Correia de Paiva, videógrafo

Miguel Maia, encenador, dramaturgo

Miguel Marcos José de Barros, sociólogo

milene massena coroado, cinema

Mina Andala, actriz

Monica cosas, produtora

monica de miranda, realizadora, artista visual

Mulheres Negras Escurecidas, colectivo

Nádia Yracema, actriz

Naír pereira da Costa Noronha, artista, socióloga

Namalimba Besteiro Coelho Ferreira, comunicadora cultural

Namíbia Isidoro, poeta

Nara António Correia Pacheco, art, call center

Natália Laureano, artista

Neusa Sousa, jornalista

Neusa Trovoada, artista multidisciplinar

Nicolly fierce da Silva,autónomo

Nuna, actriz (futura realizadora)

Nuno Coelho, professor universitário, investigador, curador, designer

Nuno Filipe Pessoa Sabroso, professor de dança

Nuno Norte, editor de vídeo

Octávio Fernando Rafael Coroado, tec. instalações mecânicas (AVAC) e Energias

Renováveis

Olga Morais Araújo, doméstica

Patrícia Azevedo da Silva, editora, tradutora

Patricia dos Santos Gomes, cozinheira

Patricia Ferreira, professora

Patricia Geula realizadora, argumentista

Patricia Loureiro, directora de operações

Patrícia Sofia da Silva Maio Maio, produtora

Paula Cristina da Silva Ribeiro Diogo de Carvalho, actriz, encenadora, produtora

Paula Cardoso, fundadora da rede Afrolink

Paula Duarte Lopes, professora

Paula Nascimento, curadora

Paulo Gomes, analista de TI

Paulo Guimarães, figurinista

Paulo Jorge Pinto Raposo, docente universitário

Pedro Azevedo, programador musical

Pedro Barbeitos, actor

Pedro Gomes, engº ambiente

Pedro Henrique Correia Barbosa, produtor cultural

Pedro Miguel Simões Baptista, actor, encenador

Pedro Schacht Pereira, professor universitário

Pedro Zegre Penim, actor, encenador, director artístico

Pocas Pascoal, realizadora

Quênia Ribeiro, professora

Rachel Castanheira, professora

Rafael Felipe da Cunha Francisco, bancário

Raquel Branco Rodrigues Freire, realizadora, argumentista

Raquel Da Silva, direção de casting, produtora

Raquel Lima, poeta, investigadora

Rebeca Luísa Machado Da Cunha, actriz

Rebeca Paiva, professora

Reimy Solange Chagas, psicóloga

Renata Maida Freire, empresária

Renée Nader Messora, realizadora

Ricardo Lopes Romero, trabalhador independente

Rina Golinets, estudante

Rita Cássia, antropóloga, artista-pesquisadora

Rita de Jesus Ramos da Costa, directora artística e executiva

Rita Ferreira, designer

Rita Maia, DJ, realizadora, curadora

Rita Pires dos Santos, mediadora Cultural

Rodrigo Ribeiro Saturnino, artista e Pesquisador

Rodrigo Soares Tirso dos Santos, futebolista

Roxana Ionesco, actriz, encenadora

Rui André Soares, director da Comunidade Cultura e Arte

Rui Carlos de Melo, músico

Rui Miguel Bogalho Teixeira Xavier, director de fotografia

Rui Pedro Lourenço de Paiva, professor

Rui Pinheiro, fotógrafo

Rute Rocha Ferreira, artista (actriz, intérprete musical, etc)

Sandra Gonçalves, administrativa

Sandra Rocha fotógrafa, realizadora

Sao José Correia, actriz, realizadora

Sara artista, cineasta

Sara de Castro, actriz

Sara Mendonça de Sousa Dias de Brito, arqueóloga

Sara Morais, escritora

Sara Rebello da Silva, autora

Sara Roriz Sequeira Guerra Carinhas, actriz, encenadora

Sara Simões, arqueóloga

Sara Yasmine, música

Sarah Diedro Jordão, consultora de comunicação

Selma Lúcia Tito Uamusse Gomes, música

Sérgio Magos Jorge de Sousa Vitorino, intérprete, tradutor

Silvania de Barros, gestão, finanças

Silvia Cardoso, assessora política

Sofia da Palma Rodrigues, jornalista

Sofia de Melo Gago Resende da Vitória, artista

Solange Malisa da Graça Salvaterra Pinto, administrativa

Sónia de Jesus Monteiro Barbosa Fernandes, administrativa

Soraia Mendes Tavares, actriz

SOWING_ARTS, produtora

Stela, actriz

Stella Carneiro, realizadora, argumentista

Susana Boletas, antropóloga

Susana Dias, directora manutenção

Susana Martínez, arqueóloga

Suse, PT

Tânia Cristina de Oliveira Paradela Dias, operadora de Loja

Tânia Filipa dos Santos Alves Rosa, actriz

Tânia Santos, programadora

Tatiana Lemos do Nascimento, produtora cultural

Teatro GRIOT, companhia de teatro

Telma Santos, executive assistant

Telma Silva, assistente social

Teresa Carvalho Costa, antropóloga, professora

Thiago Justino, actor

Tiago Barbosa, actor

Tiago Ganhão, profissional da cultura

Tiago Siopa, cineasta

Tita Maravilha, actriz

Tota Alves, argumentista e realizadora

Ulika Gisela da Paixão Franco dos Santos, investigadora doutoranda em História

Valdivia Medina Santos, designer de experiências, terapeuta tântrica

Vanessa Sanches, editora

Vanessa Alexandra de Jesus Lopes, artista, terapeuta, finalista do curso de Medicina

Tradicional Chinesa

Vanessa Fernandes, jurista

Vanessa Ferraz Amaral, actriz, astróloga

Vanessa Patrícia Moreira Sanches, jornalista

Vânia Cristina Tavares Andrade, educadora

Vânia Doutel Vaz, bailarina, coreógrafa

Vânia Gala, professora universitária, investigadora, coreógrafa

Vânia Maria Mourão Araújo, figurinista

Vânia Ramos, psicóloga

Vasco Branco Rodrigues Freire, médico

Vera Gomes, técnica comercial

Vera Mantero, coreógrafa

Veronica Santos, enfermeira

Vivian Avellar, jornalista

Welket Bungué, actor, artista do audiovisual

Yasmin Falcão, designer de moda sustentável

Yolanda Santos, actriz

Yonara Mateus, formadora, mentora

Zia Soares, encenadora, actriz

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Justiça, Vidas Negras Paula Cardoso Justiça, Vidas Negras Paula Cardoso

Como o ódio racial que matou Ademir Moreno está a ser reduzido a jogos de palavras

Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o caso do assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.

Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.

As demonstrações de ódio racial de Adriano Silva Pereira, acusado de assassinar Ademir Araújo Moreno num contínuo de agressões racistas, pareciam há muito fadadas para se transformarem em cadastro.

“O arguido é conhecido na comunidade e entre as pessoas da sua geração como pessoa conflituosa e que, em saídas nocturnas, se envolve facilmente em situações de confrontos físicos”, lê-se na acusação do Ministério Público, a que o Afrolink teve acesso.

O documento refere que, a 9 de Março, dias antes da fatídica madrugada do homicídio, “sem qualquer motivo que o justificasse”, Adriano provocou outro homem negro, dirigindo-lhe vários insultos.

“Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!”, disparou o açoriano de 24 anos, impassível diante dos apelos de pacificação.

“Mas tu pensas que és quem para me mandar relaxar??”, contrapunha a quem aconselhava calma, reiterando as ofensas: “Esses pretos pensam que eu tenho medo deles!! Venham!”.

A violência racista, vociferada enquanto batia “com o punho cerrado no próprio peito”, acabou por escalar na madrugada de 17 de Março de 2024, no exterior da discoteca B-Side, na ilha açoriana do Faial.

Segundo várias testemunhas ouvidas pelas autoridades, num primeiro momento o arguido atingiu Ademir com “um a três socos”, mas como este se conseguiu defender, e acabou protegido por outras pessoas que saíram em seu socorro, o agressor acabou por fugir. O assunto parecida resolvido, mas Adriano Pereira não desistiu do ataque.

“Pelas 5h51m, ao passar junto de Ademir Moreno, e sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se-lhe determinada e rapidamente, impossibilitando qualquer reacção deste, e desferiu-lhe um forte murro na cabeça na área temporal esquerda”.

Os factos, reconstituídos pela acusação, precipitaram a queda de Ademir que, “desamparado”, bateu “com a parte de trás da cabeça no chão, perdendo a consciência”.

Assistido no local pelos Bombeiros Voluntários da Horta, o cabo-verdiano naturalizado português foi transportado para o hospital, onde viria a falecer na noite do dia seguinte. Tinha 49 anos, era casado com Lurdes Ferreira, companheira há quase duas décadas e meia, e pai de Luana Moreno, de 21 anos.

O desfecho trágico aconteceu “em consequência directa da conduta” de Adriano Silva Pereira, concluiu o Ministério Público, facto reconhecido pelo próprio agressor.

“O arguido assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, reconhece o seu advogado, Elísio Lourenço, sublinhando que “a única argumentação da defesa tem a ver com uma tentativa permanente de afastar o ódio racial”.

Falando à imprensa, na passada terça-feira, 17, no final da segunda sessão do julgamento – que decorre desde 5 de Junho no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira –, o jurista reduziu o acto bárbaro do seu cliente a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”.

A tese da defesa evidencia a urgência de criminalização do racismo – conforme reivindica a iniciativa legislativa cidadã lançada no final do ano passado –, e alimenta uma revoltante sensação de injustiça.

“A própria advogada receia que a acusação de ódio racial caia por terra”, lamenta Lurdes Ferreira, viúva de Ademir e mãe da sua filha única.

“Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink, enquanto recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”, e incapaz de viver em conflito.

“Sempre que via uma discussão, tentava separar”, conta Lurdes, lembrando que os relatos sobre aquela trágica madrugada indicam que interveio para acabar com uma confusão entre duas jovens mulheres. No caso, a alegada namorada do arguido e uma amiga, de quem teria ciúmes. 

“Quis tirar a vida a Ademir, movido por ódio racial”

O retrato amistoso e conciliatório de Ademir contrasta com a violência e crueldade atribuída nos autos a Adriano Silva Pereira.

“O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, e bem sabia que, ao atingir Ademir Moreno com um soco na têmpora esquerda estando este alcoolizado e sendo apanhado de surpresa, o mesmo cairia ao chão, desamparado e viria a bater com a cabeça no solo, como veio a suceder”.

Os factos, realça a acusação, revelam que Adriano “quis tirar a vida a Ademir (…) movido por ódio racial contra o mesmo, por ser afrodescendente, sentimento negativo que expressou ao longo da noite, nos momentos prévios ao fatal desfecho”.

Sem nunca medir as ofensas, repetidas qual mantra do orgulho racista – “Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!” –, o arguido é agora apresentado pela defesa como alguém que ‘até tem amigos pretos’.

O esforço do advogado Elísio Lourenço de apagar o ódio racial evidenciado na acusação foi notório na sessão da passada terça-feira.

Segundo apurou o Afrolink, junto de uma pessoa que esteve em tribunal, a defesa do arguido tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para transformar um crime hediondo num mero infortúnio.

“Basicamente, a estratégia tem sido pôr tudo em causa. O advogado tem insistido para saber se o empurrão [a Ademir] foi antes ou depois do soco, e se ele caiu por causa de um ou de outro. Claramente, quer dizer que foi um acidente: ele empurrou e, por acaso, o Ademir morreu”.

O jogo de palavras cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos”, para determinar se o assassinato teve motivação racial.

A diferença apontada pelo jurista sugere que, na sua leitura, o racismo é medido pela quantidade. Como se agredir “estes pretos”, e não “todos os pretos”, fosse de algum modo abonatório.

Vigília por Justiça

A evidente e aviltante desvalorização do ódio racial tem sido contestada pela viúva de Ademir, que insiste no agravamento da acusação de homicídio qualificado por esse motivo.

“Irei recorrer a todas as instâncias que sejam possíveis, para que a Justiça seja feita”, sublinha Lurdes Ferreira, na vigília que se seguiu à segunda sessão do julgamento.

Presente também no arranque das audiências, a 5 de Junho, a técnica auxiliar de enfermagem lamenta o desinteresse e ausência da comunicação social, e lembra que Ademir era, para além de “trabalhador, bom pai, bom marido e bom cidadão”, o “grande amor” da sua vida.

Agora a “viver de fotografias e de lembranças”, conforme mencionou nessa intervenção nos Açores, a viúva partilhou, na conversa com o Afrolink, que encontra força para seguir em frente na filha.

“O que é que vai ser dela, quando eu não estiver por cá?”, inquieta-se, explicando que, aos 17 anos, Luana foi diagnosticada com uma encefalite autoimune. O diagnóstico, que “por milagre”, não lhe custou a vida, é acompanhado, desde então, por uma bateria quotidiana de medicamentos.

“Eu tenho uma incapacidade, a minha filha tem a incapacidade dela, e tem sido muito difícil sobreviver sem o apoio do meu marido”, nota Lurdes, explicando que as duas viagens de ambas aos Açores, para acompanhar o julgamento, foram oferecidas por uma pessoa amiga.

Com a próxima sessão marcada para 2 de Julho, a família ainda não sabe se conseguirá estar presente em tribunal. Mas, nos Açores ou à distância, só há um desfecho aceitável para este julgamento: “A pessoa que cometeu o homicídio tem de ser punida”. Sem atenuantes para o seu ódio racista. 

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Judaico-Cristão? A História apagada por trás de uma expressão conveniente

A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.

A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.

Texto de Myriam Taylor

Nos últimos anos, ouvimos cada vez mais referências à chamada “tradição judaico-cristã” nos púlpitos, nos discursos políticos e até em documentos oficiais de diálogo inter-religioso. Em Portugal, esta linguagem chega tardiamente, sem que se questione suficientemente a sua origem, o seu uso político, e as suas consequências para uma teologia fiel à verdade histórica e à justiça inter-religiosa.

Mas será que a expressão “judaico-cristã” faz parte da tradição litúrgica da Igreja? E que teologia sustenta essa linguagem? A resposta surpreende: nenhuma liturgia tradicional portuguesa, nem os documentos magisteriais anteriores ao século XX, alguma vez definiram a Igreja como “judaico-cristã”.

Pelo contrário, durante séculos, o cristianismo foi construído em oposição ao judaísmo, muitas vezes alimentando o antissemitismo. A reconciliação, quando veio, foi tardia e necessária. O Concílio Vaticano II foi um ponto de viragem, com a declaração Nostra Aetate a rejeitar formalmente a ideia de culpa coletiva do povo judeu na morte de Cristo. Foi nesse contexto de reparação que, no mundo anglo-saxónico, se começou a falar em “herança judaico-cristã” como ponte de diálogo.

Contudo, essa ponte não foi construída apenas com tijolos de reconciliação espiritual. Foi também erguida sobre interesses políticos e estratégicos. Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais — sobretudo os Estados Unidos — começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria. O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda, associando valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico”.

No campo religioso, a teologia cristã dispensacionalista, popular entre evangélicos norte-americanos, ajudou a alimentar o sionismo político, com interpretações apocalípticas que viam o retorno dos judeus à Palestina como parte do “plano divino”. A instrumentalização do sofrimento do povo judeu, transformando-o em aliado estratégico no tabuleiro global, deu ao termo “judaico-cristão” um uso não inocente.

Em Portugal, esta linguagem chegou importada, mas sem crítica. Começou a aparecer em homilias, documentos catequéticos e até em textos institucionais, como se fosse parte orgânica da nossa história. Mas Portugal foi um dos países mais violentos na repressão do povo judeu: com a expulsão dos judeus sefarditas, a imposição forçada da conversão, e os autos-de-fé da Inquisição. Falar em “tradição judaico-cristã” sem reconhecer essa história de violência é reescrever o passado com tinta ideológica.

Além disso, ao insistirmos na aliança “judaico-cristã”, silenciamos outras heranças igualmente fundadoras da experiência de fé cristã: a matriz africana da Igreja primitiva (Egito, Etiópia), o papel das comunidades árabes-cristãs, a contribuição do pensamento muçulmano para a filosofia cristã medieval, e os elos espirituais com povos indígenas que hoje ainda vivem a fé de forma encarnada.

Precisamos de uma teologia mais honesta, mais plural e mais descolonizada. Não basta repetir fórmulas novas como se fossem antigas. É necessário perguntar: a quem serve essa linguagem? O que encobre? E o que exclui?

A reconciliação entre cristãos e judeus é um imperativo moral e espiritual. Mas ela deve ser feita com verdade, não com slogans. E deve abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação.

Falar de “judaico-cristianismo” sem senso crítico é repetir a liturgia do poder. E a liturgia do poder não liberta. Apenas disfarça.

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Quem incendiou um autocarro, com o motorista dentro? Ouvimos a “verdadeira história”

Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que, a avaliar pelas notícias, quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

Pedro Quadros (à esquerda), e Wilson Mendes, em entrevista ao Afrolink

“Atacaram”, “atearam fogo” e “quase mataram”. Em diferentes notícias, na televisão e em jornais, Pedro Quadros e Wilson Mendes surgem como “criminosos” que, sem direito a presunção de inocência, são apontados como os responsáveis do acontecimento mais grave que marcou os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, às mãos da Polícia.

O caso em que estão implicados deu-se na madrugada de 24 de Outubro de 2024, quando o motorista da Carris, Tiago Cacais, foi atacado em Santo António dos Cavaleiros, dentro do autocarro que conduzia.

A agressão agravou o tom da contestação que, desde o homicídio de Odair, um par de dias antes, percorria vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, com epicentro no Zambujal, onde a vítima residia, e na Cova da Moura, onde foi mortalmente baleada por um agente da PSP.

A revolta das periferias, impulsionada a partir de uma narrativa policial de criminalização de Dá, como era carinhosamente tratado, estendeu-se por dias, e precipitou uma espécie de nova ‘época de caça’ em bairros de habitação municipal .

“Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro Quadros que, juntamente com Wilson Mendes foi preso, sob suspeitas de co-autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, e outros de incêndio, dano qualificado e omissão de auxílio.

A prisão preventiva, decretada cerca de um mês após o ataque ao motorista – mais concretamente a 28 de Novembro de 2024 – foi, desde o primeiro minuto, contestada por Pedro e Wilson, que, a 9 de Dezembro, através do seu advogado, apresentaram provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados.

Até quem vive fora de Portugal, estava a ser implicado

As fragilidades do processo, de tão gritantes, levaram o Ministério Público a pedir a libertação dos dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si.

A conversa ajuda a perceber como as diligências de investigação se assemelham a uma campanha de perseguição, onde o cadastro de ambos os transformou em presas fáceis.

 “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo [atacado o autocarro e queimado o motorista]. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”.

O relato de Wilson recua os acontecimentos à manhã de final de Novembro, em que, irrompendo pela sua casa adentro, um grupo de agentes parece ter agido sob um único comando: “É preciso deter sem olhar a quem”.

Já nos calabouços da Polícia Judiciária, de onde saiu para o Estabelecimento Prisional de Lisboa, até ser libertado no passado dia 26 de Maio, o jovem artista de 22 anos garante que ficou evidente, no interrogatório, que o seu caso estava a ser instrumentalizado.

 “[Os inspectores] acreditaram sempre em mim. Até me disseram que sabiam que não teria sido eu, só que, para me poderem ajudar, eu deveria dizer quem foi. Respondi: não sei, mas eu não fui”, conta Wilson.

Como saber mais se, na altura dos acontecimentos, estava forçado a permanecer em casa, em repouso, por ter o braço ao peito?

Condenados no espaço público, mesmo com provas em contrário

A imobilização temporária, confirmada por registos médicos, foi também corroborada por testemunhos de familiares, com quem o jovem vive, mas as diligências para analisar elementos ilibatórios terá sido repetidamente adiada.

A prioridade, tudo indica, era serenar os ânimos com detenções, que pudessem vingar o motorista, e demonstrar que haveria punição para quem destruiu património público e privado durante os protestos.

De outra forma, como entender que só quatro meses após ter sido decretada a sua prisão preventiva, Pedro, então a trabalhar como electricista, tenha conseguido que os seus registos telefónicos comprovassem o que alegou desde o início: que à hora do ataque ao motorista, estava a quilómetros do local do crime?

Mais do que nunca, importa repetir e insistir nos questionamentos, porque mesmo em liberdade, a sua condenação persiste, conforme revela uma das últimas notícias sobre o caso, embrulhada neste título: “Quase matam e são libertados”.

Inconformados com os julgamentos em praça pública, agravados pela divulgação das suas imagens, Pedro e Wilson prometem agir judicialmente contra os seus detractores.

“Estavam à procura de culpados, porque a população já estava a exigir respostas, e sentiram-se um pouco pressionados. Então, o trabalho que fizeram não foi bem pensado, não foi honesto, foi tudo muito à pressa”, reforça Pedro, de 24 anos, enquanto Wilson partilha um profundo e pesado sentimento de injustiça. “Sei que se o meu irmão estivesse em Portugal também iria dentro”.

As marcas desumanas da violência prisional

A dedução segue a lógica da contaminação por proximidade que parece guiar a investigação.  “Todos os que estamos ali no processo, já nos conhecemos há bastante tempo. Estudámos juntos desde a primária”, observa Pedro, que, à semelhança de Wilson, também sentiu o peso do julgamento de grupo no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

“Se acontecesse alguma coisa, iriam dizer que fomos nós os dois”, nota Wilson, que amargou quase duas semanas na solitária, experiência comum ao amigo, tal como ele repetidamente tratado pelos guardas como incendiário.

Além de provocações e insultos verbais, ambos relatam situações de violência física, sobre as quais preparam também acções judiciais.

“No primeiro dia em que cheguei, disseram: se um guarda não aguentar contigo, vêm dois; se dois não aguentarem, vêm três; se três não aguentarem, vêm oito. E se oito não aguentarem, podes crer que vêm muito mais”.

Das palavras, acima descritas por Wilson, aos actos, a passagem pela cadeia ficou gravada por manobras diárias de intimidação, onde se multiplicam violências.

“Lá em baixo no castigo [solitária], não tem câmaras, não têm nada. Foi aí que já estavam quatro guardas à minha espera para me agredir. Puxaram-me [até arrancar] duas rastas, que ainda tenho em casa”.

As marcas da prisão vão, contudo, muito além dos ataques.

“Estar ali não é para nenhum ser humano. Vemos ratos a sair da sanita, baratas na comida… os guardas normalmente nem querem saber de nós”, aponta Wilson, relatando um destino de desumanização.

“Eu digo mesmo, numa música que escrevi, que os direitos de um ser humano acabam ali dentro. Mas pior ainda para nós, que fomos lá parar por uma coisa que não fizemos”.

Noutra composição, Wilson, que artisticamente faz do nome Willy assinatura, reflecte sobre o fardo familiar de uma perseguição judicial.

“Os meus pais sabiam que eu estava preso por uma coisa que não fiz. Eles tinham a certeza de que eu estava em casa porque eles estavam lá comigo. Isso deixou-me mais descansado”.

Ao mesmo tempo, sublinha Pedro, a certeza da inocência torna o processo especialmente danoso.

“É um bocado difícil andar na rua, e as pessoas ficarem mesmo aqui, no local onde eu moro, a olhar-me como se fosse um bandido, como se fosse um incendiário”. 

A verdadeira história que as provas corroboram, mas ainda não se reflecte em Justiça

Empenhado, tal como Wilson, a libertar-se de toda e qualquer suspeita relacionada com a madrugada de 24 de Outubro, Pedro revela que, da mesma forma que se apressou a disponibilizar os registos telefónicos, também sugeriu que se analisassem imagens de videovigilância.

“O autocarro tem câmaras, mas disseram que não dava para ver as imagens por causa do fumo”, nota o jovem electricista, lembrando que as suspeitas que recaíram sobre si tiveram como fonte exclusiva o testemunho do condutor da Carris.

“O motorista disse que me reconhecia, que me reconheceu, e que já me conhecia há algum tempo, porque eu entrava no autocarro sem pagar bilhete. Mas não é verdade, porque eu não o conheço de lado nenhum, e, se for preciso, a última vez em que andei de autocarro ainda era menor de idade”.

Aliás, se, de facto, existissem imagens incriminatórias, alguém acredita que o Ministério Público fosse pedir a libertação?

 “Acho que não há dúvidas quanto a isso”, defende Wilson, ainda hoje às voltas com a mesma pergunta: “Porquê comigo?”.

As memórias da prisão, ainda demasiado presentes, incluem a dor de, pela primeira vez ter visto o pai chorar. “Foi na visita. Quando ele chegou, meteu a mão na cabeça e disse que não estava a acreditar”.

A incredulidade arrastou-se por seis penosos meses de prisão, que Wilson quer deixar completamente para trás.

“Porque eu sei que não estive lá, o Pedro também não esteve lá, então só pode ter sido alguém a dizer [ao motorista]: olha, aponta para este, é mais fácil para podermos resolver o caso.”

Aqui chegados, como reverter os danos de uma acusação tão cruel?

“A justiça que me podem fazer agora é: da mesma forma que se puseram a dizer que eu estava culpado, é porem-se a dizer que estou inocente”, aponta Pedro, sem compreender como é que ainda não está completamente ilibado.

A par da localização do telemóvel, que o afasta do local do crime, o jovem de 24 anos refere que as comunicações efectuadas na madrugada em que está implicado, comprovam que soube do incêndio ao autocarro através da mãe e de um amigo.

Do mesmo modo, Wilson refere que, à hora dos acontecimentos, estava a trocar mensagens, facilmente rastreáveis.

“Se descobriram os verdadeiros culpados ou não, isso, no fundo, não me interessa. Eu quero é provar a minha inocência”, diz, reforçando que esse resultado exige que se conheça “a verdadeira história”. Por isso, decidiu falar com o Afrolink.

“O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, reitera Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

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