“O que há de Negro na História da Arte?”, Alayo Akinkugbe revela

A cada imagem e texto apresentados, de publicação em revelação, Alayo Akinkugbe foi preenchendo, no Instagram, o vazio de referências que encontrou em Cambridge. “Não queria sair com um diploma em História da Arte, mas sem saber nada, ou a saber muito pouco sobre artistas negros”, conta ao Afrolink, recuando aos primórdios de criação da página @ABlackHistoryofArt. Mais de cinco anos depois, Alayo estende a sua intervenção a várias outras plataformas, com destaque para o podcast “A Shared Gaze” (Um olhar partilhado), a que juntou, já neste ano, o lançamento do seu livro de estreia, intitulado “Reframing Blackness, What's Black About History of Art” (Reenquadrando a Negritude, O que há de Negro na História da Arte).  A obra, recém-editada pela Penguin, serve de mote para uma conversa com o Afrolink, realizada em vésperas da apresentação portuguesa, marcada para as 18h30 de hoje, 7, no TBA – Teatro do Bairro Alto.  O momento, com moderação do autor, actor e curador Paulo Pascoal, dá uma dimensão profissional a uma já longa relação de Alayo com Lisboa.  “Nunca trabalhei em Portugal, mas nos últimos 10 anos tenho passado muito tempo no país”, diz, partilhando os planos de transformar a actual autorização de residência num pedido de cidadania. “Fiquei muito feliz com o convite para estar no TBA, porque me permite chegar a outro público, e também porque quero muito que o livro seja publicado em português”. Seja em que idioma for, o compromisso para romper com os cânones mantém-se, mais ainda perante o avanço da extrema-direita. “É em momentos como este, em que há muita oposição e o mundo está tão sombrio e difícil, que precisamos continuar a falar”.

Alayo Akinkugbe, fotografada por Cameron Ugbodu

Impossível de ignorar, o contraste recalibrou, precocemente, as lentes raciais de Alayo Akinkugbe. “A minha compreensão da negritude sofreu uma grande mudança, porque saí da maior nação negra, para um lugar onde a maioria das pessoas era branca”.

Na altura com 11 anos, a curadora e escritora revisita hoje, aos 25,  como a saída da Nigéria de nascimento, e a entrada num colégio privado no Reino Unido alterou, em definitivo, a sua perspectiva de “como a negritude se relaciona com a branquitude, ou com a europeidade”.

A reconfiguração, assinala Alayo em conversa com o Afrolink, marca o tom de “Reframing Blackness, What's Black About History of Art” (Reenquadrando a Negritude, O que há de Negro na História da Arte), o seu livro de estreia, e mote para a conversa desta tarde no TBA – Teatro do Bairro Alto.

Antes do encontro, marcado para as 18h30, o Afrolink entrevistou a também autora da página @ABlackHistoryofArt, criada em 2020 para preencher os vazios de uma licenciatura em Cambridge.

“Não queria sair com um diploma em História da Arte, mas sem saber nada, ou a saber muito pouco sobre artistas negros”.

Desde o primeiro ano do curso confrontada com a hegemonia branca do currículo da universidade, e então estudante encontrou, num artigo académico, o caminho para subverter essa desigualdade.

“Fiz um trabalho sobre arte contemporânea nos EUA e no Reino Unido, a partir dos anos 80 e, de repente, tive acesso às obras de artistas negros”, recorda Alayo, desde esse momento determinada a aprofundar essa exposição.

“Sabia que, depois de terminar o artigo, não teria muitas oportunidades de aprender mais, a não ser através da minha pesquisa independente.

Então, comecei a publicar no Instagram, criei a página como uma forma de me autoeducar sobre o que os artistas negros têm feito ao longo da história em diferentes partes do mundo”.

Do Instagram para a Penguin

A investigação acabou por também aguçar o interesse “pela forma como as figuras negras têm sido retratadas na História da Arte europeia; como modelos, musas e temas negros têm sido descritos; e como os artistas têm nomeado – ou não – os seus retratos”.

Desse misto de necessidade e curiosidade gerou-se a força motriz d’ @ABlackHistoryofArt, rapidamente transformada num fenómeno de popularidade, entretanto alargado ao podcast “A Shared Gaze” (Um olhar partilhado).

“Comecei em Fevereiro de 2020 e, em Junho de 2020, com o forte ressurgimento do Black Lives Matter, devido ao assassinato de George Floyd, a página explodiu. Muitas pessoas escreveram-me a dizer que tinham estudado Arte, ou História da Arte, mas nunca tinham aprendido sobre artistas negros”.

Até então convencida de que as suas inquietações eram únicas – “Nenhum dos meus colegas parecia se preocupar na universidade” –, depressa a escritora compreendeu que as suas experiências eram comuns a pessoas de diferentes gerações.

“Cerca de um ano depois de ter criado a página, fui abordada para escrever o livro”, nota, recuando a história cerca de quatro anos. “Estava prestes a terminar a minha licenciatura, quase a fazer 21 anos, e não teria tido a confiança para avançar se não fosse o convite”.

Desafiada pela Penguin, Alayo conta que o título foi uma das primeiras coisas que lhe ocorreu, acompanhada de muitos questionamentos.

“Fiquei a pensar: como vou definir a negritude? Então, no prefácio, falo muito sobre como a negritude é vivida de forma diferente em lugares diferentes. De como é uma multiplicidade e não um monólito, de como não significa uma única coisa”.

Demarcando-se de “uma definição estática e fixa”, a curadora insiste em sublinhar que escreve a partir das subjectividades, ainda que focada na História da Arte ocidental e europeia, por entender que é “nesse contexto que a negritude é marginalizada”.

Interessada em “abordar essa tensão” – inexistente, por exemplo, na História da Nigéria, por mais que existam lastros coloniais –, traz para as páginas de “Reframing Blackness” exemplos que ilustram como, ao longo do tempo, se tem produzido e reproduzido o apagamento de figuras negras na arte, e como os artistas e curadores negros estão a contribuir para iluminá-las.

“Barbara Walker é uma artista britânica caribenha que tem recriado muitas pinturas canónicas”, aponta Alayo, explicando que o seu livro apresenta uma dessas manifestações artísticas, reconstruída a partir da obra de Titian, “Diana and Actaeon”, exposta na The National Gallery de Londres.

“Bem na borda da pintura, a tentar proteger a mulher branca nua, que é Diana, a protagonista, há uma mulher negra. A forma como Titian a pintou, em frente a um tronco de árvore, faz com que mal a consigamos ver. Tem de se olhar com muita atenção para reparar nela, porque está lá apenas para contrastar com a brancura da Diana”.

A leitura, acrescenta a escritora, é desconstruída e reconstruída por Barbara Walker.  “Ela usa papel branco, gravado em relevo, de modo que toda a composição é basicamente branca. E é como se tivesse uma textura, e dá para ver o contorno de todas as figuras. Ao mesmo tempo, com lápis de grafite, Barbara pinta a figura negra no canto. Ao fazê-lo, não está a tentar apagar as outras figuras, mas sim a desviar o nosso olhar para pensar sobre essa figura, e sobre como uma mulher negra era representada no século XVI pelo mestre renascentista, relegada a um canto”.

Paulo Pascoal, fotografado por Peter Arcanjo, será o moderador da conversa no TBA

Curar a mudança, com Arte e Educação

O convite a uma mudança de perspectiva é transversal às produções de Alayo, e está bem patente em “Reframing Blackness”.

“No capítulo final do livro, há uma série de conversas com curadores e curadoras que, além de serem negros, desenvolvem um trabalho que se concentra na negritude”, realça a escritora, enumerando algumas das presenças reunidas na obra.

A galeria de notáveis inclui Koyo Kouoh, falecida precocemente, em Maio passado, já depois de ter sido anunciada como curadora da 61.ª edição da Bienal de Veneza; Ekow Eshun, curadora de “In the Black Fantastic” e “The Time Is Always Now” uma exposição de retratos negros na National Portrait Gallery, em Londres; e Denise Murrell, que curou “Posing Modernity” no Met, uma mostra que também viajou para Museu d'Orsay, sobre como os modelos e musas negros têm sido apresentados ao longo da história.

“O traço comum entre todos é que, acima de tudo, estão a fazer o que fazem por uma espécie de sentido de dever. Todos sentiam que tinham de o fazer, e não se viam a criar nada além de narrativas negras”.

O olhar partilhado, assinala Alayo, explica-se pelas vivências. “Acho que isso se deve ao facto de eles próprios terem tido experiências de marginalização, de serem postos de lado. Então, quando se tornam curadores, concentram-se nessas histórias porque sentem que é importante que sejam partilhadas. É um chamamento que eu também sinto”.

Na resposta a esse “chamamento”, autora não se limita a apontar para o reconhecimento de múltiplas exclusões, antes propõe caminhos de transformação.

“No Reino Unido, e provavelmente na maior parte da Europa, a razão pela qual as pessoas têm uma perspectiva tão eurocêntrica e branca do que é o mundo da arte ou a História da Arte é por ser isso que é ensinado nas escolas. Portanto, defendo que as escolas e universidades devem abrir os seus currículos para incluírem perspectivas mais diversificadas, não apenas em termos de vozes negras, mas também de todo o mundo, reconhecendo a História da Arte no sentido mais amplo, e não apenas na narrativa típica europeia”.

A esperança de que a proposta ganhe terreno aumenta a cada convite para estar em escolas, adianta a escritora, que ambiciona também que a mensagem se dissemine em língua portuguesa.

“Nunca trabalhei em Portugal, mas nos últimos 10 anos tenho passado muito tempo no país”, diz, partilhando os planos de transformar a actual autorização de residência num pedido de cidadania.

“Fiquei muito feliz com o convite para estar no TBA, porque me permite chegar a outro público, e também porque quero muito que o livro seja publicado em português”.

Seja em que idioma for, o compromisso para romper com os cânones mantém-se bem firme, mais ainda perante o avanço da extrema-direita. “É em momentos como este, em que há muita oposição e o mundo está tão sombrio e difícil, que precisamos continuar a falar”, salienta, sem contemplação: “Se pararmos, as nossas vozes serão abafadas”. Façamo-nos ouvir.

Paula Cardoso

Jornalista, Fundadora da rede Afrolink e Autora da série de livros infantis Força Africana.

https://paulacardoso.pt/
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