HISTÓRIAS
Conferência para fazer de Moçambique “um País Seguro para a Cidadania”
Entre greves e manifestações, violentamente reprimidas pelas forças de segurança, “um grupo de moçambicanas e moçambicanos preocupados com o rumo que o País tem tomado”, lançou o manifesto cidadão “Fazer de Moçambique um País Seguro para a Cidadania”. O Afrolink contactou um dos promotores deste repto, o jurista e académico Tomás Timbane, que, por e-mail, explicou o essencial sobre esta iniciativa.
Entre greves e manifestações, violentamente reprimidas pelas forças de segurança, “um grupo de moçambicanas e moçambicanos preocupados com o rumo que o País tem tomado”, lançou o manifesto cidadão “Fazer de Moçambique um País Seguro para a Cidadania”. O Afrolink contactou um dos promotores deste repto, o jurista e académico Tomás Timbane, que, por e-mail, explicou o essencial sobre esta iniciativa. Mas, antes de seguirmos para as questões, partilhamos algumas linhas de força desta proposta, que junta “sensibilidades políticas diversas”, unidas “pelo ideal de independência, que se traduz num compromisso forte com a paz, desenvolvimento, justiça social e igualdade de oportunidades”.
A frase “Unidos na diferença, somos Moçambique!” encerra com chave de coesão o vídeo do manifesto cidadão que, na semana passada, começou a circular pelas redes socias, com uma proposta para “Fazer de Moçambique um País Seguro para a Cidadania”.
A iniciativa junta “um grupo de moçambicanas e moçambicanos preocupados com o rumo que o País tem tomado”, inquietação expressa também em forma de texto, disponível online.
“Se para despertarmos da longa noite colonial tivemos que gritar “Independência ou Morte, Venceremos!”, hoje, para honrarmos essa determinação devemos exaltar a promoção do princípio da cidadania como garante do valor da nossa dignidade como nação soberana e independente”, lê-se nesse documento.
Formado por integrantes com “sensibilidades políticas diversas”, o grupo declara-se unido “pelo ideal de independência que se traduz num compromisso forte com a paz, desenvolvimento, justiça social e igualdade de oportunidades”.
Além de condenarem “o recente bárbaro assassinato de dois políticos da oposição” – referindo-se aos homicídios de Elvino Dias e Paulo Guambe, respectivamente advogado do candidato presidencial Venâncio Mondlane, e mandatário do PODEMOS –, os cidadãos estendem a condenação à “resposta desproporcional da polícia nacional às manifestações populares, bem como à limitação do direito de comunicação dos cidadãos”.
Ao mesmo tempo, vêem com apreensão “a erosão da confiança nas instituições do Estado e no sistema político”, e notam que Moçambique “ainda tem um longo caminho a percorrer para a realização plena do projecto de independência”.
Segundo se lê no manifesto cidadão, a soberania nacional “está profundamente ameaçada por uma insurgência armada em Cabo Delgado, mas também, em todo o País, pelas precárias condições de vida e pela desigualdade de género”.
O documento elenca uma série de riscos, incluindo “o desemprego juvenil, os índices de criminalidade nos principais centros urbanos, a extrema vulnerabilidade aos desastres naturais”, aspectos “que condicionam o exercício da soberania”.
Neste cenário, o grupo apela a uma profunda e séria reflexão nacional, identificando vários pontos-chave para esta discussão. Nomeadamente: separação de poderes; poderes presidenciais; justiça eleitoral; participação e inclusão política; descentralização e autonomia regional e local; liberdades de expressão e de imprensa; padrões e estruturas de desenvolvimento económico e social; reconciliação nacional; e papel do Estado.
“Sem prejuízo do trabalho das instituições eleitorais de direito, exortamos todos os partidos e actores políticos relevantes a convocarem uma Conferência Nacional que una todas as sensibilidades políticas do nosso tecido social, para juntos discutirmos como ultrapassar esta crise pós-eleitoral no espírito de “Fazer de Moçambique um País seguro para a Cidadania”.
Tomás Timbane
Tomás Timbane, jurista, académico, e um dos promotores deste repto, partilhou connosco mais informações sobre este manifesto.
De quem partiu a iniciativa?
A iniciativa resultou de debates, sobretudo ao longo dos últimos dois anos (2023 e 2024) dentro de diferentes grupos de interesse a que os membros do grupo estivessem individualmente associados, sobre o rumo que o País vinha tomando, sobretudo devido ao agravamento do terrorismo na Província de Cabo Delgado. Alguns dos membros do grupo cruzavam suas ideias em debates através das redes sociais, até que em 2023 surgiu a ideia de reflectirmos juntos, sobre o País. O objectivo principal era lançar um processo de debate nacional o mais alargado possível, sobre como ajudar o país a atravessar o período de crise, a partir de temas específicos associados ao sistema político do país e da governação. O grupo tem mais membros que não aparecem no vídeo. O Professor Elísio Macamo liderou a iniciativa a partir deste momento, e os integrantes do grupo contribuíram com algumas notas conceptuais sobre temas, em torno do sistema de Governo, que seriam relevantes para entender a presente crise de Estado: sistema eleitoral; poderes do Presidente da República; separação dos poderes; direitos, liberdades e cidadania; etc (video –“Fazer de Moçambique um País Seguro para a Cidadania”.) A ideia final era que, com base nas diferentes contribuições, por sua vez alvos de debates no grupo, fosse produzido um documento de orientação para a promoção desse debate nacional, o mais abrangente possível, sobre como refundar o Estado. O documento ora lançado em público –“Fazer de Moçambique um País Seguro para a Cidadania” – constitui esse resultado. Assim este documento constitui uma base para um debate nacional mais amplo, do qual se espera a produção de ideias com que a maioria da sociedade se identifique.
O que torna Moçambique um País inseguro para a cidadania?
O processo que culmina com a elaboração do documento “Fazer de Moçambique um País Seguro para a Cidadania” inicia em 2023, portanto bem antes das recentes eleições gerais e da crise que lhes seguira. Há, portanto, outras fontes de insegurança para o exercício da cidadania, devidamente indicadas no documento, tais como a insegurança derivada da insurgência militar em Cabo Delgado; altos índices de pobreza; violência política; desigualdades de género, entre outras.
Qual poderá ser o alcance da Conferência Nacional? Não será “uma vez mais” para as elites?
A conferência nacional pretende ser uma oportunidade para a sociedade moçambicana, representada nas suas diferentes orientações políticas, interesses e sensibilidades, discutir com franqueza sobre os graves problemas que enfrenta o Estado e as suas instituições e, porventura, lograr formular um roteiro rumo a um novo Pacto Social.
Como unir Moçambique nas desigualdades?
O povo moçambicano é plural, nas suas opções políticas e ou partidárias; no seu tecido étnico-linguístico, etc. Porém o que se pretende é identificar factores aglutinadores, factores que garantam que os moçambicanos possam viver juntos e em harmonia, com os seus direitos e liberdades fundamentais salvaguardados.
Um “tsunami na cidadania moçambicana” chamado Venâncio Mondlane
Se, como aponta a socióloga Sheila Khan, há um “tsunami na cidadania moçambicana” chamado Venâncio Mondlane, que marcas deixará a sua passagem? “Acho importante perceber que Venâncio Mondlane vai escrevendo uma nova página na política, e na maneira de fazer política em Moçambique”, considera a também investigadora e professora, lembrando o efeito dos resultados eleitorais na Assembleia Nacional. “É preciso pensar como é que a FRELIMO vai dialogar com o PODEMOS [partido que apoia Venâncio], e como é que o PODEMOS pode conquistar um lugar perdido pela RENAMO há muito tempo”, em concreto, “desde a morte de Afonso Dhlakama”.
Se, como aponta a socióloga Sheila Khan, há um “tsunami na cidadania moçambicana” chamado Venâncio Mondlane, que marcas deixará a sua passagem? “Acho importante perceber que Venâncio Mondlane vai escrevendo uma nova página na política, e na maneira de fazer política em Moçambique”, considera a também investigadora e professora, lembrando o efeito dos resultados eleitorais na Assembleia Nacional. “É preciso pensar como é que a FRELIMO vai dialogar com o PODEMOS [partido que apoia Venâncio], e como é que o PODEMOS pode conquistar um lugar perdido pela RENAMO há muito tempo”, em concreto, “desde a morte de Afonso Dhlakama”.
Foto de Yassmin Forte
O xadrez político em Moçambique joga-se num novo tabuleiro – que se estende das redes sociais às ruas –, e com uma mudança de regras que a liderança da Frelimo, instalada no poder desde a Independência, foi incapaz de antecipar.
“Só agora é que o Governo abriu os olhos, e se apercebeu que o povo, a democracia, a cidadania moçambicana vive nas redes sociais, e foi aí que o Venâncio Mondlane conseguiu efectivamente granjear e conquistar [apoio]”, nota a socióloga Sheila Khan.
Atenta à actualidade no país do Índico, onde nasceu, a também professora e investigadora é uma das pessoas que, em Portugal, se tem dedicado à análise do que acontece do Rovuma ao Maputo.
Ainda assim, refere que ficou “tristemente surpreendida” com as convulsões pós-eleitorais.
“Tudo apontava para uma fraude eleitoral, mas não estávamos preparados para isto. Como estamos muito próximos dos 50 anos da Independência, pensei, na minha ingenuidade, que haveria um certo respeito, algum pudor e alguma aprendizagem relativamente às últimas eleições autárquicas”, adianta Sheila, recuperando as evidências de fraude que, no ano passado, também levaram o povo a sair à rua, e conduziram mesmo à repetição da votação em alguns distritos.
Já aí, aponta a socióloga, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) revelou a sua deriva, expressa numa impopular negociação com a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), que, em troca de algumas autarquias, parece ter abdicado de ser oposição.
“Lembro-me perfeitamente de ver uma notícia, em que o título era mesmo ‘A RENAMO quer perder’”, diz a analista, defendendo que a escolha de Ossufo Momade para a corrida eleitoral foi um erro, ao que tudo indica, intencional.
“Indo ao encontro das reflexões de alguns analistas, observo que esta RENAMO é uma oposição fácil, fraca e maleável. É uma oposição que efectivamente a FRELIMO consegue manipular e dominar para alcançar os seus objectivos”.
A “imaturidade” e “irresponsabilidade” da FRELIMO
Os jogos de poder entre aquelas que têm sido as duas principais forças políticas de Moçambique pós-Independência subestimaram, contudo, os elevados níveis de insatisfação popular, capitalizados por Venâncio Mondlane.
Excluído da disputa à liderança da RENAMO, Venâncio abandonou o partido – onde militava desde 2018 e assumia crescente protagonismo –, e renunciou ao mandato parlamentar que exercia, para avançar para uma candidatura independente à Presidência da República. O PODEMOS - Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique foi a plataforma que encontrou para abrir caminho até às urnas, depois de a sua primeira opção – a CAD – Coligação Aliança Democrática – ter sido afastada, sob alegações de irregularidades no processo de inscrição.
“A ingenuidade disto tudo foi pensar que Venâncio Mondlane, não obstante todos os obstáculos que lhe foram pondo pelo caminho, não ia ter a capacidade de contorná-los e de os suplantar. Esqueceram-se de olhar não só para as características da sua personalidade, como para as novas ferramentas de comunicação”, assinala a especialista, lembrando o papel mobilizador que as redes sociais têm desempenhado nesta conjuntura.
Além da forma que escolheu para chegar ao eleitorado e amplificar a sua mensagem, Venâncio popularizou-se pelo conteúdo das intervenções, dirigido aos mais jovens e aos mais pobres.
A crescente projecção pública, assente na sedução do eleitorado moçambicano, no país e na diáspora, tem suscitado desconfianças sobre as suas ligações externas, nomeadamente à extrema-direita portuguesa, e à igreja evangélica sueca.
Para Sheila Khan, contudo, as colagens de Venâncio ao populismo não colhe. “Acho que temos que estudar bem o que é o populismo, em primeiro lugar. Em segundo lugar, temos que estudar bem o populismo e os seus contextos. Nos vários discursos de Venâncio Mondlane, uma das coisas que eu acho que ele não usa – ou que vai usando só de vez em quando – é a questão da elite. E a verdade é que os populistas são anti-elite, é uma coisa que massacram até ao cansaço: essa luta anti-elites”.
Centrando a análise na FRELIMO, a socióloga acusa o partido no poder de não parar de dar mostras de “imaturidade e irresponsabilidade”, traindo a sua própria história.
“A FRELIMO de hoje não é aquela pela qual se pugnou, pela qual tantas pessoas se entregaram. É uma FRELIMO manipuladora, é uma FRELIMO assassina”, sublinha a especialista, de crítica apontada para o controlo exercido sobre as comunicações, e para a repressão policial que ‘varre’ manifestações pacíficas à lei da bala.
Assembleia Nacional renovada
A evidente incapacidade de aceitar os desejos de mudança da população, não pode contudo, avisa Sheila, ignorar a nova configuração de forças parlamentar.
“A Assembleia Nacional de Moçambique tem uma nova oposição que é o PODEMOS, que roubou lugar à RENAMO e ao MDM [Movimento Democrático de Moçambique]. Agora é preciso pensar como é que a FRELIMO vai dialogar com o PODEMOS, e como é que o PODEMOS pode conquistar um lugar que foi perdido há muito tempo pela RENAMO”, em concreto, “desde a morte de Afonso Dhlakama”.
O que se segue? Sheila Khan antecipa novas tentativas de coaptação, à semelhança do que aconteceu após as autárquicas, mas duvida da sua eficácia.
“Há rumores de negociação nos bastidores, mas Venâncio Mondlane é um homem inteligente, arguto, e tem uma coisa que nenhum dos líderes dos outros partidos tem, que é a capacidade de, neste momento, ser um tsunami na cidadania moçambicana. Nem o Ossufo Momade, nem o Lutero Simango…ninguém conseguiu fazer isto”.
Que marcas deixará tudo “isto”?
“Estamos no momento do desespero. A população continua a dar o peito às balas, porque as pessoas percebem que já não têm nada a perder”.
Ou, como dizia um dos cartazes exibidos nos protestos em Maputo: “Roubaram-nos até os sonhos”.
Sheila Khan
Golpes de humanidade: a força do boxe contra ódios e preconceitos
De treinos abertos a quem se quiser juntar, Valter Ventura derruba, encontro após encontro, os muros que, fora do “seu” ginásio, desumanizam a sociedade, cada vez mais fechada para a diferença. Contra os discursos e as práticas políticas que impõem fronteiras entre “nós” e “os outros” – e fabricam percepções de insegurança para alimentar narrativas de medo –, o antigo pugilista faz do boxe lugar de pertença, e de novas possibilidades.
De treinos abertos a quem se quiser juntar, Valter Ventura derruba, encontro após encontro, os muros que, fora do “seu” ginásio, desumanizam a sociedade, cada vez mais fechada para a diferença. Contra os discursos e as práticas políticas que impõem fronteiras entre “nós” e “os outros” – e fabricam percepções de insegurança para alimentar narrativas de medo –, o antigo pugilista faz do boxe lugar de pertença, e de novas possibilidades. “A partir do momento em que entram aqui dentro, só há três perguntas, e são iguais para todos: Como é que se chamam, já fizeram algum desporto de combate, têm alguma lesão?”, enumera Valter, em entrevista ao Afrolink. Antes da conversa, e para além dela, acompanhámos um dos três treinos semanais que dá, gratuitamente, em Lisboa. Sempre de punhos cerrados contra exclusões, ódios e preconceitos.
Valter Ventura, num dos treinos, em Lisboa
“Como é que se diz 75 em francês?”. A pergunta interrompe uma série de exercícios, que aquecem e expandem movimentos num ginásio, no centro de Lisboa.
Mais do que demonstrar, com o próprio corpo, a posição que se segue, o treinador Valter Ventura vai calibrando, à medida que o treino de boxe avança, a intensidade e frequência de cada gesto.
“Setenta e cinco? Soixante-quinze!”. A resposta à pergunta do antigo pugilista desbloqueia a comunicação com os alunos senegaleses, e volta a acelerar o ritmo, marcado por um repetitivo – e contagiante – manear.
“Toca no ombro. Sobe com a esquerda, desce com a direita. Agora em diagonal. Dobra menos as contas. Olha os joelhos”.
As indicações do mestre Valter cumprem-se em duplas, que se vão formando no compasso das chegadas. Rita, Joana, Rodrigo, Júlia, Luca..Guadalupe…
Os nomes circulam nos cumprimentos a cada entrada, sinalizam ausências, e humanizam movimentos durante o treino, a espaços pontuado de orientações em francês.
“Attend! Espera! Espera pelo golpe para meter o ombro. Protege-te! Não arrastes os pés. Não quero ouvir os assobios dos ténis. Atenção aos olhos abertos quando o adversário está a atacar.”
As pausas corrigem posturas e enquadram novas direcções, ao mesmo tempo que evidenciam as diferenças de condição física no grupo, inicialmente formado com estudantes do ensino básico e secundário, e, nos últimos cinco meses, alargado a pessoas migrantes.
“Comecei por ir às escolas dos agrupamentos aqui à volta, falar com professores de Educação Física e dizer: estão aqui treinos de boxe gratuitos”. O passa-palavra trouxe os primeiros alunos e, mais recentemente, chegou aos ouvidos do pessoal da Cozinha Migrante dos Anjos, ponte para novas possibilidades.
“Se disser que inicialmente o meu francês era medíocre já me estou a gabar”, graceja Valter, enquanto procura uma definição melhor. “Sofrível também não é a palavra…era verdadeiramente deplorável”, diz, exemplificando: “Conseguia contar até 10, dizer umas coisas e apontar”.
Menos de seis meses depois, salta à vista o desembaraço linguístico.
“O boxe tem aqui uma coisa bonita, que é uma espécie de ritmo e de repetição. Portanto, as palavras acabam também por ser quase sempre repetidas. Então, à noite ia ao tradutor e procurava algumas palavras em francês de que ia precisar. Descobri depois que o tradutor também tinha Wolof e, já que estava a aprender, comecei assim a introduzir esta língua”.
O processo, conta o também fotógrafo e professor universitário, beneficiou ainda do apoio da turma. “Agora há palavras que eu sei dizer em Wolof, mas que não sei dizer em francês”.
Ginásio sem fronteiras
Seja qual for o idioma, todos são bem-vindos nos treinos de Valter Ventura, há pouco mais de um ano fixados entre freguesias de Lisboa. É por aqui que, três vezes por semana, o treinador não só se empenha em derrubar muros, como o faz sem cobrar um cêntimo.
“Comecei a dar treinos gratuitos há cerca de três anos”, assinala, adiantando que a escolha se impôs, diante do acentuar de clivagens sociais.
Desde logo, explica Valter, os clubes desportivos onde trabalhava sofreram com a gentrificação e turistificação de Lisboa.
“A população começou a sair, a vender as casas ou a não conseguir pagar rendas e tudo mais”, recorda, de volta à temporada em Campo de Ourique, estabelecida “junto à Maria Pia, ali, ainda a apanhar o resto daquela zona que era o antigo Casal Ventoso”.
A descaracterização levou-o a buscar uma mudança, mas a transferência para Campolide, numa geografia muito próxima, trouxe outra confrontação: a subida de preços não se ficou pelo mercado da habitação.
“Ao fim de quatro ou cinco meses, não só a mensalidade subiu, como os valores deixaram de ser praticáveis para alguns dos rapazes que tinham vindo comigo de Campo de Ourique”.
Ao mesmo tempo, lamenta o treinador, metade dos praticantes passaram a ser nómadas digitais, mais interessados em fitness do que propriamente no boxe. “Percebi que não era o sítio onde eu devia estar”.
A freguesia de Marvila, e em específico a zona de Chelas, tornou-se o destino óbvio, porque alguns dos antigos alunos tinham-se mudado para aí com as famílias.
Da intervenção resultou a confirmação da vontade de alargar o impacto, e Arroios surgiu como possibilidade.
“Perguntei se tinham um espaço para eu dar treinos, e coloquei como condições que não poderiam cobrar mensalidades, e que eu teria a liberdade de escolher a quem é que eu queria dar os treinos”.
Os termos do compromisso libertaram o processo de burocracias, facilitando uma prática de portas abertas, fundamental para aproximar “mundos”. “A partir do momento em que entram aqui dentro, só há três perguntas, e são iguais para todos: Como é que se chamam, já fizeram algum desporto de combate, têm alguma lesão?”.
A partir dessa ‘abolição de fronteiras’, sejam elas linguísticas, étnico-raciais, religiosas ou de qualquer outro tipo, deu-se o encontro com núcleos de pessoas migrantes.
“A palavra espalhou-se, e em meados de Junho deste ano, apareceu aqui o pessoal da Cozinha Migrante dos Anjos, e perguntou se os rapazes, que na altura estavam a viver em tendas à volta da Igreja dos Anjos, podiam vir treinar”.
Cooperação de possibilidades
O grupo, que até Setembro chegou a juntar 14 pessoas dos 19 aos 26 anos – das quais oito com presença constante e consistente –, animou ideias de constituição de uma equipa para competir, rapidamente desfeitas – e refeitas – pela realidade.
“Percebi que tudo isto é muito volátil. Ou seja, a situação em que estão é altamente precária, por isso, pensar em formar uma equipa seria pensar no pior cenário possível, de que iriam continuar a não ter nenhuma alternativa de vida, e a vir cá por causa disso”.
Felizmente, têm surgido opções, assinala Valter, explicando que o velho núcleo duro de partida já não existe, porque muitos conseguiram trabalho fora de Lisboa, nomeadamente em Évora, Beja, Sesimbra e Porto.
“É triste, porque de repente eles desaparecem e nem temos tempo de nos despedir. Vão de um dia para o outro, porque há circunstâncias da vida e há trajetórias que estão a ser decididas”.
Nesses fluxos migratórios, os trânsitos do Senegal e da Mauritânia têm sido os mais regulares, observa o treinador, que, a cada treino, não se limita a gerir pessoas.
“Nem toda a gente tem luvas. Há uns que estão a fazer um exercício, outros a fazer outro e, a meio do exercício, quem tem luvas troca e dá a quem não tem”.
O equilíbrio seria ainda mais difícil sem cooperação e entreajuda, valores que o antigo pugilista faz questão de consolidar.
“Fui falar com as pessoas que me tinham acolhido em Marvila, e disse: tenho um projecto novo em Arroios, e estou um pouco entalado porque tenho muita gente e ninguém tem luvas”. Na altura, o grupo encaminhado pela Cozinha Migrante dos Anjos estava nos máximos, e era urgente encontrar solução.
“Eles disseram que desde que tinha saído dali, não tinha voltado a haver treinos de boxe. Como tinham comprado algum material quando eu estava lá a dar treinos, doaram o material que tinham. Isso foi muito bom porque tornou as aulas mais possíveis”.
Com elas, percebe-se pelos movimentos, as vidas que por ali passam também são mais possíveis.
A de Samba é um bom exemplo. Alfaiate especializado na criação de peças de vestuário e acessórios de moda – onde sobressaem os panos africanos –, o senegalês assume no ringue um lugar de pertença e liderança que, fora dele, políticas e práticas anti-imigração convergem para inviabilizar.
“É um dos melhores da turma. Vem sempre, nunca falha”, elogia Valter, que encontrou no alfaiate um apoio essencial. “As pessoas novas que chegam aprendem com o Samba, que, nitidamente, tem o respeito de todos. Mesmo os rapazes que já cá estavam antes expressam essa admiração”.
Pelo contrário, lamenta o treinador, “lá fora é como se todas estas pessoas – o Aziz, o Adam, o Abdulai o Samba… – não fossem indivíduos. São tratados como um colectivo que responde por todas as coisas que esse colectivo faz. E, pior ainda, estão a responder por coisas que o colectivo não fez”.
Travar deriva desumanizadora
A recente megaoperação “Portugal sempre seguro”, que, na passada sexta-feira, 8, musculou o Martim Moniz de repressão e presença policial é reveladora disso mesmo.
“No decurso desta acção, vários imigrantes foram transportados para centros de instalação temporária ou notificados para abandonarem voluntariamente o país”, denunciou o SOS Racismo, lembrando que “nas últimas semanas, a perseguição a imigrantes intensificou-se em todo o país, com especial incidência em Lisboa”.
Através de um comunicado, o movimento anti-racista acusa o Governo de adoptar uma “política persecutória e infame de ‘caça ao imigrante ilegal’”, em linha com “o programa xenófobo e racista da extrema-direita”.
Contra o que designa de “consagração da visão securitária e xenófoba sobre os fluxos migratórios”, o SOS assinala que esta via de intervenção representa “um verdadeiro retrocesso na defesa e salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias fundamentais num estado de direito, e um ataque aos direitos humanos de imigrantes”.
Para o Governo, contudo, operações como aquela que aconteceu no Martim Moniz vieram para ficar. “Temos várias calendarizadas, demos instruções às forças de segurança para continuarem a fazer este trabalho no terreno”, anunciou o ministro da Presidência,
A partir das palavras de António Leitão Amaro, extrai-se, uma vez mais, a ideia de que imigração, ilegalidade e criminalidade são indissociáveis. “Quando detectam situações de imigração ilegal, os abusadores e os traficantes devem ser penalizados criminalmente e quem está ilegal em território nacional deve ser sujeito a uma medida de afastamento”, disparou o governante.
Com este posicionamento, o Executivo liderado por Luís Montenegro deixa à vista “a desproporcionalidade dos meios investidos na “caça ao imigrante ilegal” por oposição aos que são investidos para assegurar o dever de resposta, em tempo útil, às justas aspirações de imigrantes que procuram Portugal como país para viver”, nota o SOS.
Valter Ventura não precisou de mais este episódio para compor o retrato de uma deriva desumanizadora.
“Por causa do medo, ignorância e ódio que se coloca em cima de quem chega, ouvimos sempre o discurso de que ‘eles’ são perigosos. Existe sobre essas pessoas uma espécie de condenação prévia a qualquer crime que possa vir a acontecer, quando os factos negam essas ideias”.
Atento a essas e outras narrativas de discriminação, o treinador nota que abandonámos o domínio racional, para entrar num “mundo animal, em que a percepção pública que é criada, pela repetição das mesmas histórias, estereótipos e mentiras, tem mais validade do que a realidade”.
De punhos cerrados para combater essa desumanização, Valter faz do boxe lugar de pertença, e de novas possibilidades.
“Pode parecer que estamos a falar uma coisa de agressividade e que eu, enquanto treinador, o que devia fazer era estimular a agressividade. Mas a agressividade é uma coisa animal, e o que eu quero é que eles sejam absolutamente racionais. Eu quero que eles não fechem os olhos quando sentem que estão a ser atacados. Quero que pensem na respiração, que respirem com os golpes do adversário, que antecipem os movimentos que estão a ser feitos”.
Nesse contínuo de ensinamentos, entre noções sobre postura e detalhes de técnica, a aprendizagem faz-se sem vislumbre de atrito.
“Tudo aquilo que eu estou a fazer e outro treinador de boxe faz é substituir um lado primário, as reações primárias – como encolher-me ou bater porque me estão a bater – por reacções que são absolutamente racionais”, prossegue Valter, lembrando a ligação ao xadrez.
“É um desporto de antecipação: para cada golpe, existe um contragolpe certo, para cada movimento existe um contramovimento. E é preciso estar absolutamente calmo, presente e tranquilo perante a outra pessoa, e compreender o que está ali a acontecer: o som do outro, a respiração, os pequenos tiques que tem, e que permitem antecipar gestos. Isso é uma coisa muito humanizante, e é preciso estarmos sempre a trabalhar nisso”.
Golpe a golpe. Contra ódios e preconceitos.
O livro da vida de Ilda escreve-se com música, para virar páginas de dor
A canção "África" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.
A canção "Áfrika" marca a estreia discográfica de Ilda Vaz, que, aos 57 anos, aprofunda a assinatura musical desenvolvida a partir da fundação de um grupo de batukaderas, no bairro da Boba, na Amadora. O tema, da autoria da cabo-verdiana, está, desde o início de Setembro, disponível nas plataformas digitais, e dá expressão artística a um de muitos episódios racistas que viveu e vive desde a infância, período marcado por uma viagem no “barco da escravatura”. A experiência é recordada na conversa com o Afrolink, que, além de revisitar marcos de vida, traça planos para um “futuro de esperança”.
As letras soltam-se em momentos de confronto e adversidade. “Quando estou chateada, a única libertação é a música”, conta Ilda Vaz, desde a infância habituada a transformar os desafios da vida em melodias.
Nascida em Cabo Verde há 57 anos, a fundadora do grupo Batukaderas Bandeirinha Panafrikanista Di Lisboa, recorda, sem uma nota de hesitação, o momento em que trauteou o primeiro tema.
“Tinha três anos, e estávamos no barco que nos levou para São Tomé e Príncipe”, diz, colando flashes do que viveu a um extenso arquivo de memórias maternas.
“Cresci a ouvir esta história: de uma senhora que foi mãe durante essa viagem, morreu e foi atirada para o fundo do mar. Depois entregaram a bebé à irmã, para criar. Disseram que essa menina se chamava Ana Mafalda”.
Estávamos em 1969, Ilda era ainda muito pequena para registar o episódio com tanto detalhe, mas, garante, todas as emoções que acompanharam a saída de Cabo Verde ficaram-lhe gravadas.
Assim que entrou no barco, por exemplo, a sensação de despertença impôs-se. “Isto é estranho. Aqui não é a nossa casa”, recorda-se de ter sentido, puxando para a conversa com o Afrolink não apenas as impressões, mas também algumas descrições.
“Lembro-me da rua onde vivíamos, de um cão, de uma vaca que era preta e branca, e de um caminho estreito que fizemos até entrar num carro, que nos levou à cidade da Praia”.
Naquela altura, São Tomé e Príncipe parecia oferecer um destino melhor para a família, mas entre a promessa de uma vida digna, lavrada em contrato, e a realidade do dia-a-dia, Ilda relata um contínuo de violência.
“Percebi, depois, que aquele era um barco de escravatura”, sublinha, de volta a um capítulo de vida carregado de humilhações e abusos.
“A minha mãe trabalhava na mata do cacau, parida de um mês, com o bebé nas costas, debaixo de chuva. Trabalhava doente”, denuncia, acrescentando que se hoje mal fala português é porque nem os contratados tinham direitos laborais, nem os filhos tinham acesso à educação.
“Depois do 25 de Abril, é que começa a haver isso de ir para a escola, mas também não era para todos”, contrapõe, enquanto revisita episódios de profunda dor. “Tenho muita coisa para contar, coisa de dar nervos mesmo!”, aponta esta trabalhadora do serviço doméstico, sem nunca perder a sintonia do amor.
“Canto para ajudar o nosso povo, o povo de África a ter coragem, a lutar sem odiar, porque o nosso caminho não é de ódio”.
Áfrika, a música de todos
Com a voz projectada sobre a dor das experiências que vive individualmente e que vivemos colectivamente – nomeadamente de racismo –, Ilda vê na música um canal de conhecimento e reconhecimento.
“Como não estudei, a única forma de fazer um livro é a cantar”, nota, sem mãos a medir para o tanto que importa musicar.
Começou por “Áfrika”, o seu tema de estreia, apresentado no final do Verão, e entoado a partir de uma agressão racista sofrida há cerca de 10 anos.
“Trabalhava numa farmácia, e um dia entrou um senhor com um cão grande, todo negro. Eu estava ali a limpar, e o homem olhou para mim com um ódio tão grande, que disse assim para a minha patroa: ‘Olha, tira essa preta daí porque o meu cão não gosta de pretos’. Eu ouvi, mas fingi que não estava a entender, e fiquei em silêncio, quieta”.
Sem tempo para digerir o ataque, Ilda confrontou-se com uma nova agressão: recebeu ordens para se remeter ao piso inferior, e de só voltar a subir quando o cliente saísse, não fosse o animal ficar agitado.
“Perguntei logo: será que é o cão que não gosta de mim, ou é o dono?”.
Para a dona da farmácia não fazia diferença, porque, conforme fez questão de sublinhar, enquanto dava a ordem de clausura, não iria perder um cliente por causa dela. Que é como quem diz, por causa de “uma preta”.
Ilda explodiu em lágrimas, mas, uma a uma, todas foram secando à medida que a letra “Áfrika” se compunha dentro de si. “Dei esse nome porque é música para todos e todas. Para a gente ficar com a vista mais aberta”, explica, visibilizando e vocalizando atenções para a necessidade de um combate anti-racista.
Ao mesmo tempo, “Áfrika” sobressai como uma fonte de energia renovável. “Tenho a minha mãe, que não está bem de saúde, a viver comigo, tenho oito horas de trabalho diárias, tenho as actividades das batukaderas, tenho a casa para arrumar, comida para fazer e, cada vez que não sei como faço tudo isso, fico ainda mais forte”.
Música contra discriminações
Casada há 34 anos, recém-comemorados, e mãe de três, Ilda esbarra numa série de desafios ao seu processo criativo. A começar pela gestão do quotidiano doméstico.
“Eu passo muito mal para fazer letras aqui em casa”, exemplifica, partilhando, entre risos, uma reclamação habitual. “Dizem que sou muito barulhenta, que toda hora estou a cantar. Mas quando a gente gosta a gente não se enerva”.
Mais do que gostar de soltar a voz, a batukadera destaca o efeito catártico das letras surgem a cada trauma, como aquele que traz da infância em São Tomé e Príncipe.
Além da consciência precoce de exploração trabalhista, que massacrou a vida dos pais, a compositora percebeu muito cedo como a pele negra é tratada como “um defeito”.
“Um dia estava a brincar à porta de uma senhora branca, portuguesa, mulher do feitor da roça. Eu era moça pequenininha, a crescer, e ela saiu na janela e insultou-me. Foi tão…”, as palavras falham diante da desumana lembrança, antes de prosseguirmos com a conversa.
“Isso ainda está comigo, e vai ficar. Ela disse: ‘Sua preta, sai daí, vai para a sanzala, canalha, suja, preta do c******.”
Incapaz de entender tamanha violência, a pequena Ilda deu por si a reparar: “Mas eu não estou suja”!.
Ainda com cada um e todos aqueles insultos agarrados à pele, a cabo-verdiana fez deles música.
“O que sinto, o que vejo, o que eu passo todos os dias nas limpezas, e o que os meus irmãos passam, tudo isso está nas minhas letras”, nota, libertando, através das composições, o peso de múltiplas discriminações.
Frente feminina
Desde 1996 em PortugaI, destino de tratamentos médicos do marido – que veio para fazer hemodiálise –, Ilda não esconde o cúmulo de desencantos: “Olha, o negro nunca é bem-vindo para a raça branca. Nunca, nunca, nunca”, insiste, alertando para alguns cuidados a ter.
“A maior parte da nossa raça negra está a entrar num portão que não é nosso. Então eu digo: entra para entender, para perceber, para estudar, mas nunca esquece que, no espírito deles, você não pertence. Por isso, deixa uma fuga para sair, e para outros irmãos entrarem”.
Calejada em episódios racistas, a batucadeira reforça os alertas. “Para eles nós estamos aqui só para trabalhar. Não servimos para mostrar o país, não servimos para ser ministros, não servimos para ser presidentes, porque Portugal tem que ser branco. Nós, negros, temos de estar atentos a isso, e não deixar a cabeça cair em enganos”.
À letra das próprias recomendações, Ilda cuida da mente como quem gere uma biblioteca. Sem desmerecer o lugar “bom” do coração, a cantora defende que “a nossa cabeça é o nosso mundo, porque guarda tudo, tem ferramentas lá dentro, uma espécie de motor”.
Atenta a esse funcionamento, a cantora faz da memória um bem maior, e da saúde mental uma riqueza. Por isso, da mesma forma que encontrou na música uma via para processar vivências dolorosas, e transformá-las em mensagens, Ilda quer contribuir para que mais mulheres africanas descubram a sua força de libertação.
“Há muitas senhoras que têm muito para falar, pessoas da minha idade, com muitas histórias para contar. Mas ficam travadas, às vezes com medo e vergonha, e não mostram a capacidade que têm. Estão a adoecer com depressão. Eu quero estar com elas, e apoiar.”
Os planos passam pela criação de um espaço de mulheres, onde mais novas e mais velhas se possam encontrar, entreajudar e crescer juntas. Unidas para que até o choro que partilhamos seja “de futuro e de esperança”.
De boas intenções pode estar o Governo cheio. E as acções?
Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.
Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.
Procuro notícias sobre a morte, às mãos da polícia, de Odair Moniz. Neste exercício de pesquisa online, entre artigos de jornal e peças televisivas, encontro suspeitas de falsificação de provas que estarão a ser investigadas pela PJ; uma série de relatos de “distúrbios” e “desacatos” nos “bairros sociais”; declarações do advogado do agente que atirou a matar; descrições de velhas e novas imagens de videovigilância captadas na madrugada fatal; teorias sobre os limites da legítima defesa; e um penoso rosário de intervenções políticas.
De declarações rápidas a pronunciamentos mais longos, confirmo, a partir dessa cobertura noticiosa, que a vida de Odair, violentamente encerrada aos 43 anos, desperta menos comoção do que a destruição de autocarros, carros e caixotes de lixo.
Basta analisar como dirigentes públicos, governantes e líderes partidários não pouparam na veemência na hora de condenar os protestos que se seguiram à violência policial, mas expressaram (aqueles que o fizeram) confrangedora inibição no momento de repudiar a actuação policial que resultou na morte de Odair.
É verdade que lamentaram a tragédia, e garantiram que o caso será adequadamente investigado, mas, acima de tudo, estiveram mais entretidos a recomendar calma, moderação e tranquilidade, dando lições de ‘civismo’ aos ‘selvagens’ , e esquecendo-se que a revolta dos bairros não surgiu num vácuo.
Porque é que a nossa ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, é peremptória em classificar de “perfeitamente inadmissíveis” o que classifica de “distúrbios” mas, ao referir-se à morte de Odair, não vai além de uma reacção frouxa e conformada, classificando a perda de uma vida irreparável de “infeliz incidente”.
A diferença não é meramente semântica. De um lado temos o que se traduz num assumido e proactivo compromisso de acção: "Tudo faremos para levar aqueles que participaram nestes tumultos à justiça”, garantiu a titular do MAI. Do outro lado, encontramos a contenção do costume, porque – ao contrário do que acontece com propriedade privada incendiada – a violência que vemos acontecer nos bairros de maioria negra nunca é suficiente.
“A nossa cor é a arma que eles temem”
Exemplo disso mesmo – que me faz abrir aqui um parêntesis – é a reacção da comentadora Maria João Marques diante de um vídeo exibido na SIC Notícias, em que vemos um homem negro ser agredido por dois polícias.
Aos olhos de Maria João Marques (que felizmente se confrontaram com os de Paulo Baldaia), nada há de errado em termos agentes altamente armados a atirar para o chão uma pessoa desarmada, que, segundo se vê nas imagens, faz de tudo para mostrar – despindo-se – que não representa uma ameaça.
Talvez Maria João Marques precise, conforme sugeriu Paulo Baldaia, de viver algo semelhante para avaliar se estamos ou não perante um acto de violência.
Sabemos, contudo, que a pele branca funciona como um escudo de protecção contra esse tipo de abordagens policiais, criminosa e racialmente musculadas.
Pelo contrário, conforme nos lembrava um dos cartazes que, no último sábado, 26, povoaram a Avenida da Liberdade – na marcha de homenagem a Odair Moniz, organizada pelo movimento Vida Justa –, “é impossível estar desarmado quando a nossa cor é a arma que eles temem”.
Neste “eles” não cabem apenas os polícias, mas é sobre eles que, neste caso, importa centrar a discussão. Afinal, é às suas mãos que os nossos homens negros continuam a morrer. E, por mais que tentem normalizar e justificar a violência policial racista, inventando ameaças inexistentes, nós continuaremos a contestá-la sem reservas, algo que o Governo hesita em fazer.
Quando a ministra da Administração Interna se refere à morte de Odair como um “infeliz incidente”, não estará certamente a minimizar a tragédia, mas está, em larga medida, a desresponsabilizar o agente.
“Mandei abrir o inquérito para saber exactamente, em termos exaustivos, o que aconteceu”, anunciou Margarida Blasco na ressaca da morte, escusando-se a apontar o óbvio: mesmo que tivesse de usar a arma – e neste caso os indícios sugerem que não tinha de o fazer –, o agente nunca deveria atirar a matar.
Antes dele, muitos outros que também não o deveriam fazer, fizeram-no, sem que ficássemos a saber o que aconteceu, “em termos exaustivos”, para que, perante tantas evidências de abuso policial e racismo, tivessem sido absolvidos.
Diálogo minado de desconfianças
Como esperar, neste quadro, que haja calma e se aguarde com serenidade o resultado das investigações?
Como confiar numa Justiça que criminaliza o anti-racismo, e transforma vítimas negras em arguidas?
Como dar o benefício da dúvida a um Governo liderado por alguém que, em particular neste contexto, afirma que “não somos um país onde o ódio, as questões raciais tenham uma natureza de preocupação”?
Foi ainda sob o ruído dessa declaração do primeiro-ministro que, na passada terça-feira, 29, o Afrolink se juntou a cerca de 15 representantes de associações e colectivos da Área Metropolitana de Lisboa, numa reunião convocada pelo ministro da Presidência.
Depois de nos guiar pela visão do Executivo para “melhorar as condições da vida concreta das pessoas”, nomeadamente nas áreas da Segurança, Habitação, Saúde e Educação, António Leitão Amaro garantiu que Luís Montenegro “não disse nem quis dizer” que não há racismo em Portugal.
Das intenções às acções, o encontro, classificado de “exercício de escuta histórico”, demonstrou que não há grande distância entre o que o líder do Governo disse e o que o Executivo faz.
Percebe-se, por exemplo, pelas medidas apresentadas por Leitão Amaro, que a dimensão étnico-racial da violência policial e da exclusão social continua a ser desprezada.
Anunciar a reformulação e melhoria da formação pedagógica das forças de segurança, com ênfase nos Direitos Humanos terá a sua importância nos relatórios, mas, no dia-a-dia, não me parece que os polícias desconheçam a desumanidade de espancar pessoas nas esquadras, interpelá-las violentamente na rua, ou tratá-las à lei da bala.
A questão não se resolve com mais ou menos Direitos Humanos, porque o problema está em termos polícias que não reconhecem as vidas negras como humanas. Portanto, à luz das suas práticas racistas, os Direitos Humanos não se aplicam diante de pessoas negras.
O Governo tem a obrigação de conhecer esta realidade, quanto mais não seja porque a própria Inspecção-Geral da Administração Interna – que Margarida Blasco liderou – investiga esse e outro tipo de processos, incluindo denúncias sobre a infiltração de elementos da extrema-direita nas polícias.
O que é feito desses inquéritos?
Enquanto Leitão Amaro reitera toda a confiança nas forças de segurança, “na lógica do princípio de que actuam para cumprir a regra e o respeito pelos Direitos Humanos”, nós continuamos a morrer. E enquanto o Governo se congratula por estar a ouvir representantes da sociedade civil, nós gostaríamos de o ver a agir contra o racismo.
Sem mas, nem meio mas.
“Mataram o Dá!” – no grito de Mónica cabem 23 anos de amor: “E agora?”
A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.
A narrativa repete-se nas notícias: sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática”, e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não têm sequer o direito de gozar do estatuto de vítimas. Pelo contrário, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter. Aconteceu novamente com Odair Moniz, ou simplesmente Dá, atingido mortalmente no tórax e axila por disparos de um agente da PSP. O Afrolink falou com a viúva, Ana Patrícia Moniz, mais conhecida por Mónica, e é guiados pelo seu olhar que aqui estamos.
Altar de homenagem a Odair, na casa onde vivia
As contas embrulham-se numa matemática de vida que, a partir de agora, parece condenada a não bater certo, enredada num problema sem solução: a morte. “Tinha 13 anos quando nos conhecemos”, recorda Ana Patrícia Moniz, de seu nominho Mónica, recuando a história aos tempos do bairro 6 de Maio.
Foi aí que ela e Odair Moniz se cruzaram, apaixonaram-se, e nunca mais se largaram. “Casámos em 2008, de papel passado mesmo”, conta a viúva de Odair, ou simplesmente Dá, nome que, desde o início da semana, engrossa a já longa lista de vítimas de violência policial racista em Portugal.
“Eu conheço-o tão bem, tão bem...Cada um com o seu feitio, crescemos juntos, a cada passo, a cada momento bom ou mau”, sublinha ao Afrolink, assinalando que nos seus 36 anos de vida não encontra memórias relevantes sem o seu Dá. Não estranha, por isso, que encontremos Odair tatuado na sua pele.
Juntos construíram 23 anos de história, ligação aprofundada com o nascimento de dois filhos, um de 20 anos e outro de três, núcleo alargado à criação de uma sobrinha.
O legado de amor, visível nas fotografias que povoam o apartamento, situado no bairro do Zambujal, acompanhou Dá até à curva final.
“A senhora é que é a Mónica? Ele estava a chamá-la”. Assim, sem mais, um dos agentes policiais que, na Rua Principal da Cova da Moura, garantia a distância entre os moradores e o local onde Odair foi mortalmente baleado, despachava a conversa.
Pouco passava das seis da manhã, e, no momento dessa troca de palavras, a hair stylist ainda tinha esperança de encontrar e falar com o marido. “Foi o meu filho que me chamou: disse, ‘Mãe, levanta, há alguma coisa com o pai lá na Cova’”.
A morada da morte
De passo acelerado, aos poucos, muito longe de se imaginar viúva, Mónica começou a despertar para a tragédia. Ainda não sabia que Odair tinha sido baleado no tórax e axila, por um agente da PSP, mas, ao perceber para onde tinha sido levado, confrontou-se com o peso da morte.
“O Hospital Amadora-Sintra está ali perto, por isso pensei logo: se foi para o São Francisco Xavier é por causa da morgue”.
A rapidez do raciocínio é perturbadora, por evidenciar um contínuo de perdas.
Quantas delas aconteceram em circunstâncias que levantam suspeitas sobre a actuação policial? Como continuar a dar o benefício da dúvida às autoridades, quando os indícios de abusos se sucedem, e, com eles, a construção de narrativas que criminalizam comunidades e bairros inteiros?
“Eu não sou o dono da verdade, mas o Dá é a pessoa mais calma que eu posso apontar, a pessoa certa para apaziguar certos problemas. Mas os senhores agentes acharam que não, que estava exaltado. Não sei…”.
O testemunho chega-nos de um morador do Zambujal, e rompe um extenso muro de silêncio, erguido como protecção contra a manipulação e instrumentalização – pelos media e políticos – dos discursos que saem do bairro, enlutado desde que a chocante notícia da morte de Odair começou a circular.
“Já mataram um, querem matar outro?”
Nascido na cidade cabo-verdiana da Praia, há 43 anos, Dá veio para Portugal na adolescência. “Vivia na Achada Grande”, recorda Mónica, enquanto segura uma fotografia antiga do marido, transformada numa espécie de portal para boas memórias.
“Dizem coisas sem sentido…que encontraram o Dá com uma faca na mão. O meu marido não é um homem de faca. Ele não anda com faca. Tenho a certeza. Ele não tinha nada porque é uma pessoa pacífica, não de guerra”.
A voz de Mónica vai e vem, enrouquecida e entrecortada pelo som lancinante do choro que vem da sala, onde, horas depois desta conversa com o Afrolink, na terça-feira, 22, novos gritos da família chegam-nos por mensagem.
“A PSP invadiu a casa por volta das 20h. Arrombaram a porta, e, ao mesmo tempo, apontaram uma arma à Mónica, ao irmão e à irmã, e agrediram duas pessoas lá dentro que os confrontaram com o porquê dessa atrocidade. Só pararam com os gritos: “Já mataram um. Querem matar outro?”.
O relato de violência acentua a revolta que se instalou no Zambujal e na Cova da Moura, e que, nos últimos dias, se propagou a vários outros bairros da Área Metropolitana de Lisboa. À medida que os protestos avançam, e as distorções noticiosas se avolumam, os apelos aos registos audiovisuais aumentam.
“Ninguém gravou [o arrombamento da polícia] porque estavam todos em choque, incrédulos mesmo”, conta-nos uma amiga da família, acrescentando que cerca de uma hora depois da primeira investida, os agentes regressaram.
“Aí já estava uma advogada, que os confrontou”, assinala, enquanto insiste no poder das gravações. “Precisamos de provas de tudo”.
“Precisamos de provas de tudo”
Sem vídeos, será que a PSP teria mantido, em comunicado, as primeiras declarações feitas à comunicação social, de que Odair seguia numa viatura roubada quando foi interpelado pelos agentes?
“Precisamos de provas de tudo”, repete a amiga dos Moniz, antes de partilhar mais um episódio de indignidade policial. “A Mónica foi à Judiciária hoje [quarta-feira, 23] e trataram-na muito mal. Ela diz que se sentiu mal, pediu um copo com água, e responderam que, se quisesse, fosse à casa de banho beber, porque só havia água no piso de baixo”.
Os focos de desumanização, em que o luto por Dá é sucessivamente desrespeitado, não estão circunscritos à actuação das forças de segurança.
Pelo contrário, são disseminados por discursos políticos e narrativas noticiosas inflamadas, em que, sem direito a uma identidade humana, mas com morada “problemática” e suspeitas de actividade criminosa, os homens negros baleados pela Polícia não gozam sequer do estatuto de vítimas. Em vez disso, as suas vidas, famílias e bairros vêem-se arrastados para campanhas de desinformação, ódio e linchamentos de carácter.
Odair, que trabalhava como cozinheiro e, há cerca de sete meses, partilhava com Mónica a gestão de um café no Zambujal, foi rapidamente rotulado de “criminoso”, e a sua morte apontada como exemplo de boas práticas policiais.
“Porque é que não parou?”, “Porque é que resistiu?”, “Porque é que andava ali àquela hora?”. Em diferentes versões, entre comentários nas televisões e nos jornais, e reacções nas redes sociais, acicatadas por responsáveis políticos, o veredicto do julgamento público é profundamente incriminatório e dispensa argumentos de defesa.
Afinal, percebe-se entre ocupações de espaço mediático, se há alguém nesta história digno do benefício da dúvida, só pode mesmo ser o polícia, porventura um “português de bem”.
A última cachupa
Já Odair, esse, não passa, aos olhos de quem o condena, de um “bandido que teve o que mereceu”. Menos um negro da ‘cor da ameaça’. Mais uma pessoa violentamente arrancada dos filhos, mulher, amigos e comunidade.
“Estávamos a sair da música ao vivo, e o Dá tinha ido ao café, no Zambujal, buscar cachupa para os miúdos. Ele estava a voltar para a Cova para comerem todos juntos, quando se cruzou com a Polícia. Eles dizem que o mandaram parar, e que ele não obedeceu. Mesmo que isso seja verdade, é suficiente para matar uma pessoa? Ainda por cima desarmada? Como é que um agente treinado dispara assim, logo para a barriga, em vez de apontar para a perna?”.
As perguntas, colocadas por várias pessoas, num entrelaçado de conversas paralelas, permanecem sem respostas, agravando a desconfiança instalada entre moradores e Polícia.
“E agora?”, inquieta-se Mónica, atordoada pela dor de uma certeza tão aberrante quanto dilacerante: “Mataram o Dá!”.
Fronteiras que condenam: “Fui segregado dentro do meu país”
O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.
O passeio “Noz Stória”, conduzido por José Baessa de Pina, ou simplesmente Sinho, guia-nos por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”. Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de hordas de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência. Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência. Contra tudo e contra todos, “aqui houve felicidade”.
Sinho, o anfitrião do “Noz Stória”
Duas crianças morreram num incêndio, que escancarou a precariedade habitacional em que viviam. Nada mudou. Famílias inteiras perderam tudo com o avanço de cheias, especialmente impiedosas diante da fragilidade infra-estrutural. Nada mudou.
Só quando o negócio das construções rodoviárias se começou a movimentar em redor das Portas de Benfica, é que a realidade nos bairros de auto-construção ali à volta mudou.
O mapa da transformação – em que transacções de asfalto e betão pesaram e continuam a pesar mais do que as pessoas –, traça-se a partir dos passos de José Baessa de Pina, que seguimos durante o passeio “Noz Stória”.
Nesse percurso, construído a partir de memórias individuais e colectivas, Sinho, como o conhecemos, reconstitui caminhos de comunidades desfeitas. Vividas na sua pluralidade – de nacionalidades africanas e de etnias –, e recordadas pela sua força colectiva, bem visível no álbum de fotografias expandido à medida que a rota avança.
“Aqui houve felicidade”, aponta o outrora morador do bairro das Fontainhas, enquanto nos guia por “lugares destruídos pela imposição do imperialismo”, e aponta os seus “contributos sociais e culturais nunca reconhecidos”.
Neles cabem festas que celebram rituais e identidades que o colonialismo criminalizou e a polícia continua a reprimir, e também o acolhimento de todas as pessoas, a determinada altura da história, povoado de filhos de famílias brancas e privilegiadas, expulsos de casa entre percursos de toxicodependência.
Ao longo de três horas, o também vice-presidente da Associação Cavaleiros de São Brás, situada no Casal da Boba, na Amadora, fala-nos de “uma história não contada”, de “um espaço que existiu e resistiu”, mesmo diante de expressões quotidianas de violência.
Exclusão
“Eu fui segregado dentro do meu país. Não é nada inocente”, sublinha Sinho, que encontra nas políticas públicas várias fontes de exclusão.
Por exemplo, nota o anfitrião do “Noz Stória”, o desempenho dos alunos é fortemente influenciado pela escola em que andam, numa demarcação territorial que continua a condenar crianças ao insucesso e abandono precoce dos estudos.
O impacto dessas fronteiras está amplamente reconhecido, por isso, para garantir aos filhos uma educação melhor, há trabalhadoras domésticas que dão a morada dos patrões, explica Sinho, lembrando que a prática – longe de revelar o eventual altruísmo das chefias – acentua relações de dependência. Uma espécie de inversão da dívida histórica, instalada na Escravatura, reforçada no colonialismo, com a violência dos trabalhos forçados dos contratados de São Tomé e Príncipe, e ainda hoje evidente na exploração extractivista do capitalismo, especialmente dura sobre os corpos negros.
“Se essa facilidade [da morada] existe para essas mães trabalhadoras é porque precisam delas com estabilidade”, atira o guia da nossa história, enquanto aproveita para destacar o papel provedor das mulheres nas nossas comunidades.
Foi, por exemplo, graças à sua mãe, e em particular ao amor que sempre recebeu dela, que Sinho não se deixou correr pela raiva e revolta que acompanharam múltiplos episódios de violência racista – tantas vezes indutores de trauma.
“Às vezes, o que safava os nossos pais da intervenção bruta da polícia militar, quando eram parados para entrar no bairro, era o cartão da obra”, assinala, sem esquecer um velho temor. “E se batem na minha mãe?”.
Essas e outras memórias marcam o ritmo do passeio, iniciado nas Portas de Benfica e encerrado diante das marcas do que outrora foi o bairro Estrela D’ África.
Para trás ficaram vestígios das Fontainhas e do Bairro 6 de Maio, atravessados por recordações de rupturas tão abruptas quanto terminais.
Pertença
“Ali, a Dona Rosa e o Tio João tinham porcos, leitões, galinhas, figueiras, e estavam habituados a ir e vir do poço. Depois do realojamento, bastou 1 ano e 30 dias para os dois desaparecerem”.
A lembrança de morte é partilhada por Delson Alexandre, que, tal como Sinho, cresceu entre bairros de auto-construção, entretanto engolidos pelo asfalto.
“Costumo dizer que São Tomé e Príncipe é o meu berço, e esta é a minha casa. O lugar onde quero estar, e onde me sinto bem”, diz Delson ao Afrolink, apressando-se nas distinções. “Quando falo de casa, não estou a falar de Portugal ou de Lisboa, mas sim da Linha de Sintra, da Damaia, do Bairro do Zambujal, da Cova da Moura, da minha Reboleira, da Amadora…a minha Porcalhota”.
O sentimento de pertença e o sentido de comunidade enraizados no passado perduram até hoje, garante Delson, que conserva as antigas relações de vizinhança como quem preserva as mais valiosas ligações familiares.
Muitos, porém, como a Dona Rosa e o Tio João, acabaram por sucumbir à tristeza de uma mudança indesejada.
“Os laços de solidariedade foram quebrados”, comenta Sinho, que responsabiliza o Estado por uma política de abandono.
“Tinha de haver outra solução, outro tipo de realojamento”, defende, recordando as dificuldades de ajuste que sentiu quando, aos 22 anos, se viu obrigado a trocar a morada de toda a vida pelo Casal da Boba.
“Mesmo depois de termos a chave, preferia dormir entre os vários barulhos estranhos das Fontainhas”.
Denúncia
Desperto para cada barreira que foi encontrando, e continua a encontrar, o criador do “Noz Stória”, nascido em 1976 na Maternidade Dona Estefânia, em Lisboa, traça as suas próprias fronteiras: “Não somos pobres, somos empobrecidos”.
Filho de descendentes de cabo-verdianos emigrantes, Sinho defende igualmente que é importante “saber de onde viemos, com os pés no chão”, mas ao mesmo, “sempre almejar mais”. O líder associativo acrescenta ainda que não nos podemos “esquecer da denúncia para a elaboração de políticas de reparação”, dispositivos “de que precisamos urgentemente, para colmatar 50 anos de segregação”.
Desde logo, assinala o nosso guia, importa questionar: “Como dizem que a entrada dos imigrantes é descontrolada, se sempre foi bem controlada?”. Afinal, vemo-la abrir e fechar, à medida dos caprichos do sistema, que põe e dispõe de pessoas como quem manuseia utensílios de produção.
Aliás, as memórias recuam até episódios recorrentes de abuso da polícia municipal que, aproveitando-se de quem, nas ruas, encontrava o seu ganha-pão com a venda de pescado, resolvia ali as necessidades domésticas de peixe.
Violências somadas e multiplicadas, meio século vivido desde a Revolução dos Cravos, Sinho questiona que liberdade existe nas periferias negras, asfixiadas por programas de realojamento que são também de policiamento?
“O sistema sabota a nossa cultura”, considera, dando como exemplo os horários de celebração dos Santos Populares até às 2h, em contraponto com as restrições das festividades dentro da comunidade, silenciadas muito antes da meia-noite.
“A música é uma via de pertença que tem sido travada”, assinala o guia do “Noz Stória”, partilhando outro aspecto da sua identidade precocemente reprimido.
“Eu sinto em crioulo, respiro, penso…e até isso é bloqueado”, adianta, de volta aos bancos de escola, carregados de práticas coloniais.
É também para a Educação aí que se dirige o olhar crítico de Aleksandra Augustynowicz, uma das pessoas no encalço das direcções de Sinho. Há oito anos em Portugal, esta polaca de 29 anos, defende a “importância de consciencializar as pessoas para os factos históricos” que o ensino continua a mascarar. “O que podemos esperar se apenas aprendemos a partir de livros escritos pelos colonizadores?”.
A nossa História não é essa, perdida num labirinto de ficções romantizadas. “Noz Stória” retira-nos daí, e dá-nos caminho para andar. Aproveitemos!
“O racismo existe mesmo?”: do “alto” do seu Observatório, a branquitude ensina
Como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca. A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto. Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”. Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.
Como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca. A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto. Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”. Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.
Corpo docente da “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia", lançada pelo Observatório
Recuemos até 2021. Em Março desse ano, a CIP - Confederação Empresarial de Portugal promovia a conferência "As Mulheres e o Emprego: Um Tema do Homem", na qual propunha debater, “entre líderes masculinos”, a fraca presença feminina em posições de chefia. “Vamos discutir o que trava a ascensão de mais mulheres a cargos de gestão", lia-se na descrição do evento, rapidamente contestado pela total ausência de oradoras.
A CIP dispunha-se a conversar sobre exclusão feminina, e demonstrou, antes mesmo de iniciar a discussão, como as lideranças masculinas urdem para que assim seja. Se dúvidas houvesse, ficou evidente que as práticas machistas e misóginas – e não a falta de candidatas competentes – explicam o excesso de testosterona em lugares de poder e influência.
Dessa constatação à contestação, bastaram uns posts de indignação nas redes sociais para que a CIP recuasse: não só alterou o nome do encontro para "Desta vez: Emprego um Tema de Homens e Mulheres", como decidiu incluir palestrantes femininas – três para seis homens.
Por mais performática que a mudança tenha sido, ela aconteceu, a partir do reconhecimento – que deveria ser óbvio – de que uma discussão sobre a realidade vivida por mulheres não pode descartar a sua presença. Fazê-lo equivale a passar-lhes um atestado de incapacidade, reduzi-las à condição de seres não pensantes e sem autodeterminação.
Fácil de perceber, certo?
Onde reside, então, a dificuldade de entender que um Observatório do Racismo e Xenofobia não pode ser liderado por pessoas brancas e, pior do que isso, só por pessoas brancas, e sem especialização na área?
Como compreender que as pessoas que vivem na pele o racismo e a xenofobia estejam completamente afastadas dessa discussão e intervenção?
Já o dizemos há mais de um ano, mas continuamos a não ser ouvidos, porque as práticas racistas são aceites pela maioria da população branca.
Aliás, como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca (algumas sessões permanecem sem professor responsável).
A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto.
Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”.
Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.
A mentira que inventou o racismo
Do alto do seu observatório, a branquitude duvida, mas promete ensinar-nos sobre racismo e xenofobia, transaccionando, assim, mais uma actualização sobre a “mentira que inventou o racismo”, tema de uma TED Talk apresentada em 2020 pelo jornalista e documentarista americano John Biewen.
Escrevi sobre ela no manual KINDER “Desconstrução de estereótipos desde a infância”, onde assinei o capítulo sobre “Educação Antirracista e Antixenófoba: a importância do reconhecimento e da valorização das diferenças”.
Partilho convosco parte dessa reflexão, construída a partir das palavras de Biewen.
“Como é que isto aconteceu? Como é que chegámos a isto?”, questionava o jornalista nessa intervenção, partilhando o resultado de anos de inquietações: Quem criou o conceito de raça? Quando?
Sem qualquer expectativa de obter a identificação de uma pessoa ou uma data específica, Biewen conta, nessa palestra, como a resposta do historiador Ibram Kendi o surpreendeu.
“Disse-me que, na sua pesquisa extensiva, encontrara o que considerava ser a primeira articulação de ideias racistas. E designou o culpado: o nome dele era Gomes de Zurara, um homem português”.
Foi a partir das suas crónicas, produzidas por volta de 1450, que os povos de África começaram a ser retratados como “inferiores e animalescos”, ainda que detivessem algumas das culturas mais sofisticadas do mundo.
“Porque é que esse homem afirmaria isto?”, pergunta Biewen, aconselhando a audiência a seguir o rasto do dinheiro. “Zurara tinha sido contratado para escrever para o Rei e, apenas uns anos antes, os comerciantes de escravos vinculados à Coroa portuguesa tinham sido os pioneiros do tráfico de escravos no Atlântico. (…) Portanto, trata-se de dinheiro e poder. De súbito, era bastante útil que existisse uma história sobre a inferioridade das gentes africanas que justificasse a sua comercialização.”
“Mas o racismo existe mesmo?”, perguntam eles. Sabemos.
Nota de redacção: Após a publicação deste artigo, na sequência de diligências da agência de notícias Lusa, ficámos a saber da suspensão da pós-graduação em racismo e xenofobia, desenvolvimento que partilhámos neste artigo:
https://www.afrolink.pt/artigos/racismo-e-fragilidade-branca-duas-faces-do-mesmo-observatorio
Importa igualmente assinalar que, se em Portugal a cobertura mediática das questões raciais se faz de forma enviesada e fundamentalmente de um prisma polarizado, sem profundidade, e sem a inclusão de pessoas negras e de outros grupos étnicos, no Brasil – um dos países de onde nos acusam de “importar” a “moda do racismo” – a denúncia do racismo e o seu combate fazem parte da agenda jornalística.
Isso mesmo demonstra a atenção que a malfadada pós-graduação tem merecido dos media brasileiros. Partilhamos:
Folha de São Paulo
Jornal de Brasília
Revista Centenarium
Nexo Jornal
Deutsche Welle
https://www.dw.com/pt-br/portugal-cancelado-curso-antirracismo-docentes-s%C3%B3-brancos/a-70518525
Assinalamos ainda que, em Portugal, nenhum dos media que replicou a notícia da Lusa revelou interesse em aprofundar o tema, limitando-se a reproduzir o que a agência noticiosa divulga.
Pelo contrário, no Brasil, não só a Folha de São Paulo como a TV Globo quiseram ouvir-nos, tal como, no Reino Unido, aconteceu com o The Guardian: https://www.theguardian.com/world/2024/oct/16/university-in-lisbon-suspends-plans-for-course-on-racism-taught-by-all-white-staff
Seguimos na luta!
Uma iniciativa para “libertar Portugal do colonialismo”
“Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas”. Este foi o mote lançado pelo grupo parlamentar do BE, numa audição que no passado dia 20 de Setembro, juntou pessoas que admiro profundamente. A Belinha, que temos a sorte de nos ver representar em tantas frentes políticas, do associativismo às partidárias; o Miguel de Barros que me faz acreditar mais e mais em presentes partilhados e humanizados, e em futuros sonhados; e o Miguel Vale de Almeida, que me habituei a ler entre crónicas no Público, e a admirar por múltiplos posicionamentos fundamentais, nomeadamente anti-racistas.
“Libertar Portugal do colonialismo: reparação e políticas públicas”. Este foi o mote lançado pelo grupo parlamentar do BE, numa audição que no passado dia 20 de Setembro, juntou pessoas que admiro profundamente. A Belinha, que temos a sorte de nos ver representar em tantas frentes políticas, do associativismo às partidárias; o Miguel de Barros que me faz acreditar mais e mais em presentes partilhados e humanizados, e em futuros sonhados; e o Miguel Vale de Almeida, que me habituei a ler entre crónicas no Público, e a admirar por múltiplos posicionamentos fundamentais, nomeadamente anti-racistas. Para minha felicidade, aconteceu-me também estar ali, e ter 10 minutos para falar sobre "Políticas de Igualdade e direitos cívicos". Como não quis desperdiçar um segundo, escrevi. Convido-vos a ler!
Políticas de Igualdade e Direitos Cívicos
Começo por enquadrar a minha intervenção: falo antes de mais como pessoa negra e mulher moçambicana, porque foi a partir dessa dupla pertença que percebi, desde muito cedo, aqui em Portugal, que a minha cor de pele e o meu lugar de nascimento faziam de mim não apenas uma criança diferente da maioria que me rodeava, mas alguém visto como inferior e tratado exactamente como tal.
Por isso, antes de qualquer idealização sobre igualdade, fui confrontada com a vivência da desigualdade.
Enquanto crescia, ser igual representava parecer menos negra e menos moçambicana. Portanto, uma rejeição de mim própria.
Talvez venha daí alguma incompatibilidade que adquiri com a palavra igualdade, que sinto como sinónimo de impossibilidade de ser a pessoa que sou.
Proponho, por isso, que comecemos a falar em políticas e práticas de equidade. Uma via que permita olhar para as diferenças que temos, valorizá-las, em vez de continuar a instrumentalizá-las para dividir e excluir pessoas, a pretexto de intenções de integração.
Aliás, importa sublinhar que eu nunca senti necessidade de ser integrada, o que sempre busquei foi o direito a uma vida humanizada, que começa com a garantia de que ser quem sou – pessoa negra e mulher moçambicana – não faz de mim um alvo de ódio, e alguém privado dos mais básicos direitos de cidadania.
Mas é isso que acontece. Mesmo sem dados estatais que nos permitam conhecer estatisticamente a diversidade étnico-racial existente em Portugal, e compreender de que forma a mesma influencia as nossas condições de vida, sabemos que as escolas segregam crianças racializadas; sabemos que os próprios professores encaminham os alunos negros para trajectórias que os mantenham o mais longe possível da universidade; sabemos que a violência obstétrica é maior quando a paciente é negra; sabemos que a justiça legitima o racismo e criminaliza quem o combate; sabemos que a polícia persegue e mata pessoas negras impunemente, e ainda consegue ser louvada pela sua proactividade.
Sabemos porque vivemos esta realidade quotidianamente. Sabemos também porque tudo isto está estudado. O que falta é reparar.
Reparar, por exemplo, a injustiça de uma lei que impede o A. de ter a cidadania portuguesa. O A. é filho de cabo-verdianos, nasceu em Angola em 1973, e, no ano seguinte, a sua família foi forçada a mudar-se para Cabo Verde, tendo perdido toda a documentação quando a casa em que viviam, em Luanda, lhes foi retirada e incendiada.
Há mais de duas décadas em Portugal, o A. tenta há 16 anos obter a nacionalidade portuguesa, mas esbarra numa exigência que o simples bom senso recomenda que seja eliminada: a apresentação do registo criminal do país onde nasceu, documento que apesar de incontáveis diligências, ninguém consegue providenciar.
O mais certo, conhecendo nós a história de guerra civil que Angola viveu, é que os arquivos tenham sido destruídos.
Se tivéssemos políticas e práticas de equidade, o Adriano, e todas as pessoas na mesma situação, gozariam de um regime de excepção. Bastaria libertar da obrigação de apresentação do registo criminal quem tenha saído dos países colonizados por Portugal ainda menor de idade.
Não o fazer é assumir que nós, pessoas africanas nascemos com cadastro, que somos criminosos até prova em contrário.
Com assumpções como esta, como é que podemos falar de igualdade e de direitos iguais?
Conta-me o Adriano que já gastou milhares de euros no seu processo de cidadania, e que mesmo tendo o título de residente, continua a perder inúmeras oportunidades de trabalho, enquanto profissional freelancer do sector cultural.
Será que alguém nota? E notando, como é que se repara a subtracção de vida, e de vidas?
Falo do caso do Adriano, mas posso falar de muitas outras pessoas negras, nascidas em Portugal, com e sem nacionalidade, e diariamente diminuídas nos seus direitos.
Conheci e continuo a conhecer vários exemplos, que incluem a normalização e institucionalização de práticas racistas, como a imposição, a pessoas negras, de alisamentos ou cortes de cabelo para que possam trabalhar.
Nas escolas por onde tenho andado, procurando sensibilizar contra todas as formas de discriminação, é comum os alunos relatarem comportamentos e comentários racistas.
Trago, como exemplo, três questões que recolhi em tempos junto de alunos entre os 10 e os 13 anos.
Primeira: “Porque é que, na minha turma, são tão rudes com os estrangeiros?”.
Segunda: “Os professores podem dizer que a nossa forma de falar está errada, quando somos de um país que fala outra língua?”.
Terceira: “Por que relacionam os negros com roubo, fraude e feiura?”.
Muitas perguntas ficam sem resposta por falta de interlocutor, tornando evidente a urgência de uma educação anti-racista.
Com tudo o que sabemos, devemos e podemos fazer melhor enquanto sociedade, mas aquilo que está ao alcance dos cidadãos – por mais activos e comprometidos que sejamos – é muito diferente do que está ao alcance de um partido político, de uma Assembleia da República ou de um Governo.
Se hoje estou aqui a ocupar este lugar, a projectar a minha voz, e a partilhar a minha perspectiva, é porque antes de mim – antes de nós – muitas pessoas negras deram a vida por esta possibilidade.
Se hoje estou aqui a ocupar este lugar é porque sei que as pessoas negras continuam a morrer simplesmente por serem negras. Estou aqui também porque sei que a minha voz, não se substituindo a nenhuma outra voz, representa vozes que continuam a ser silenciadas.
Hoje estou aqui, confiante no poder do diálogo, mas consciente de que falar não basta. Importa actuar sobre os problemas.
Importa garantir não apenas hoje, mas todos os dias, a presença, o pensamento e a acção das pessoas negras nesta casa da democracia, e em todas as esferas da nossa sociedade.
Porque mais do que sermos pontualmente ouvidos, aqui e ali, e depois invariavelmente esquecidos, importa sermos vistos, reconhecidos e acolhidos como pares.
Termino a minha intervenção, saudando uma vez mais cada pessoa presente, e renovando o meu compromisso no combate a todas as formas de discriminação e opressão.
Ao mesmo tempo, desejo que haja coragem política para transformar este momento de auscultação num movimento de mobilização contra o racismo, que seja não apenas afectivo – como tem sido até agora – mas efectivo.
A luta continua, e com unidade a vitória é certa!
“Quebrar tectos” sob o impulso da inspiração negra
Idealizado pela empresária Mónica Soares, o projecto “Black Inspiration Talks” realiza na próxima quinta-feira, 3, em Lisboa, a sua conferência inaugural. Com início às 14h, encerramento às 19h, e um leque diversificado de convidados nacionais e internacionais, o evento quer pôr-nos a falar sobre inspiração negra, e – mais do que isso – a avançar sob o seu impulso.
Idealizado pela empresária Mónica Soares, o projecto “Black Inspiration Talks” realiza na próxima quinta-feira, 3, em Lisboa, a sua conferência inaugural. Com início às 14h, encerramento às 19h, e um leque diversificado de convidados nacionais e internacionais, o evento quer pôr-nos a falar sobre inspiração negra, e – mais do que isso – a avançar sob o seu impulso.
A proposta, explica Mónica Soares ao Afrolink, tem entre os objectivos, incentivar e capacitar “profissionais negros a alcançar posições de destaque e liderança máxima”, nas mais variadas áreas da sociedade, preparando-os para “alavancar outros quando chegarem lá em cima”. As metas traçadas incluem também desafiar-nos a quebrar barreiras e a criar marcas de excelência, como fez Mathew Harris, renomado designer de jóias, cujas criações já foram usados por celebridades como Rihanna e Michelle Obama.
Onde estão os profissionais negros? Em que áreas mais se destacam? Que desafios enfrentam? À falta de dados étnico-raciais que nos permitam responder a essas e outras questões, Mónica Soares contrapõe com observação e experiência. Somos “Mais que serviços e entretenimento”, sublinha a criadora do projecto “Black Inspiration Talks” (BIT), que, na próxima quinta-feira, 3 de Outubro, se prepara para inaugurar a sua primeira conferência.
O evento, a decorrer na sede da UCCLA - União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, em Belém, começa às 14h e termina às 19h, juntando ao longo da tarde de debates e palestras, uma miríade de oradores nacionais e internacionais.
A lista de presenças inclui, entre outros nomes, o de Mathew Harris, reputado designer de jóias, cujas criações já foram usados por celebridades como Rihanna e Michelle Obama.
Na ala internacional de convidados da conferência, destaca-se também a presença de Hannah Reid, globalmente reconhecida pela carreira na liderança de recursos humanos, nos últimos anos ao serviço da gigante Apple.
Cada qual com a sua abordagem, ambos prometem inspirar-nos: Mathew a falar sobre como “Criar uma marca de Excelência”, e Hannah a guiar-nos pela “Jornada profissional de uma negra”, enquadrada numa das cinco maiores empresas tecnológicas do mundo.
“Vejo nos exemplos de sucesso e nas boas práticas um bom modelo de crescimento”, nota Mónica Soares, apontando o BIT como um facilitador dessa partilha, capaz de “catalisar e potencializar o que temos de muito bom dentro das nossas comunidades”.
Quebrar tectos
Confiante no efeito multiplicador dos encontros, a co-fundadora da Chumeco e da Soares & Daia, Lda defende que “tornar palpáveis os casos de sucesso dentro da nossa comunidade, permite ganhar outra energia, acreditar que é possível”, e, com isso, “quebrar tectos”.
“Acredito que a inspiração pode mover montanhas, porque quando vemos alguém como nós chegar mais longe, isso cria em nós a mesma aspiração”.
A convicção sai reforçada pelas vivências acumuladas ao longo de 25 anos de jornada profissional.
“O BIT é também uma expressão daquilo que foram as necessidades que fui identificando ao longo desse tempo. Acho que ainda tenho muito para dar, mas também tenho muito para aprender e, por essa razão, esta plataforma poderá contribuir para esse engrandecimento e crescimento”, adianta Mónica, reafirmando o poder da união.
“É importante juntarmo-nos a outras pessoas que têm objectivos semelhantes, e com quem possamos aprender e crescer, e, acima de tudo, fortalecer.”
O programa da conferência da próxima quinta-feira está construído tendo tudo isso em consideração. Depois de uma apresentação do projecto, pela anfitriã, Sheila Khan e Luís Soares, ambos professores universitários, debruçam-se sobre a ideia de sermos “Mais que serviços e entretenimento”. Segue-se uma conversa a partir do tema “Quebrando barreiras”, que junta o orador motivacional Carlos Dias, a fundadora do Afrolink, Paula Cardoso, e a facilitadora organizacional Sofia Rodrigues. Cátia Ramos transporta-nos para uma viagem “Do Bairro para Hollywood”, enquanto Nelma Fernandes e Graziela Neves, versadas na liderança no mundo corporate, trocam ideias de CEO para CEO. A “Diversidade no luxo” é o mote para o último painel do dia, composto por Marisa Ferreira, Mónica Lafayette e Eliana Medeiros.
“Teremos painéis em português e em inglês, porque queremos ir buscar os casos e modelos de sucesso que existem aqui à nossa volta, na Europa”, explica a empresária, acrescentando que o objectivo do BIT passa por chegarmos às posições máximas em termos profissionais, algo que nos obriga a ser competitivos e, por isso mesmo, a comunicar em inglês, “mesmo que não fluentemente”.
Além da partilha de conhecimentos facilitada pela conferência, Mónica adianta que outro dos objectivos reside em incentivar e capacitar “profissionais negros a alcançar posições de destaque e liderança máxima”, nas mais variadas áreas da sociedade, preparando-os para “alavancar outros quando chegarem lá em cima”.
O caminho de ascensão passa pela multiplicação de momentos de inspiração, antecipa a empresária. “Iremos receber, ao longo do ano, e pontualmente, outros encontros, mas não em registo de conferência”, revela a empresária, que já está a planear a agenda BIT de 2025. Com planos de formação, e organização de meetings para partilha e networking.
Sem tectos de limitação.