HISTÓRIAS

Despertar Negro, Cidadania, Racismo estrutural Paula Cardoso Despertar Negro, Cidadania, Racismo estrutural Paula Cardoso

Sem nós não há justiça: Cláudia Simões continua condenada

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

O Tribunal da Relação reverteu parcialmente, no passado dia 30 de Abril, a decisão do Tribunal de Sintra relativa ao caso de violência policial contra Cláudia Simões, condenando o agente da PSP Carlos Canha por ofensas à integridade física agravadas, e os seus colegas Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder. A decisão peca, contudo, por insuficiente, assinala, em carta aberta, o Movimento Negro em Portugal (MNP), lembrando que “Cláudia Simões continua condenada e a ver negado o seu direito de legítima defesa perante as agressões de que foi vítima na paragem de autocarro”. Mais: “Embora o Tribunal da Relação tenha, em certa medida, repreendido o coletivo de juízes presidido por Catarina Pires, esta decisão não comporta quaisquer consequências para uma juíza” que, segundo sabemos, irá também julgar o caso de homicídio de Odair Moniz. “Isto não é justiça”, sublinha o MNP, num posicionamento subscrito por mais de 40 colectivos, e que o Afrolink subscreve e publica na íntegra.

Carta Aberta: Sem nós não há justiça: Cláudia Simões continua condenada

A 30 de abril, o Tribunal da Relação reverteu parcialmente a decisão do Tribunal de Sintra quanto ao caso de violência policial contra Cláudia Simões. Condenou Carlos Canha por ofensas à integridade física agravadas e os seus colegas Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder. Foi, sem dúvida, com muita emoção, mas sem ilusões, que recebemos esta decisão, apesar de tudo histórica.

Se o Tribunal de Sintra fez da vítima culpada e do agressor inocente, reproduzindo, uma vez mais, o racismo institucional no sistema de justiça português, a decisão do Tribunal da Relação acabou apenas por repartir a culpa. Ou seja, embora Carlos Canha e os colegas tenham sido finalmente responsabilizados pelas agressões durante a viagem aterrorizadora no carro da PSP, Cláudia Simões continua condenada e a ver negado o seu direito de legítima  defesa perante as agressões de que foi vítima na paragem de autocarro: isto não é justiça. Mais, o racismo continua dado como não provado e os polícias continuam no exercício das suas funções.

Pese embora o Tribunal da Relação tenha, em certa medida, repreendido o coletivo de juízes presidido por Catarina Pires, esta decisão não comporta quaisquer consequências para uma juíza que descredibilizou e humilhou continuamente Cláudia Simões no decorrer das sessões de julgamento. E, como se tudo isto não bastasse, sabemos, por ora, que será a mesma Catarina Pires a julgar o caso de homicídio de Odair Moniz.

Ainda que a decisão do Tribunal da Relação tenha restituído, em parte, a dignidade pública a Cláudia Simões e à sua filha – que tiveram a sua vida esmagada por cinco anos de violência –, o Estado não é capaz de descriminalizar uma mulher negra periférica e de se responsabilizar pela violência racista que inflige. E é por isso que a coragem e persistência de famílias como a de Cláudia Simões e do movimento social são essenciais: construamos solidariedade porque sem nós não há justiça!

Coletivos subscritores

Africandé Associação

Afrolink

Afrontosas

Associação Cavaleiros de São Brás

Associação Cultual Nêga Filmes

Associação Juvenil Esperança

Associação Mural Sonoro

Braga Fora do Armário

BUALA

Coletiva Corpos Insubmissos

Coletivo Afreketê

Coletivo Consciência Negra

Coletivo Feminista de Sintra

Comité de Solidariedade com a Palestina

Comitê Popular de Mulheres em Portugal

Dentuzona

Djass- Associação de Afrodescendentes

Feira Afro Empreededora do Porto

Femafro - Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal

Grupo de Ação Revolucionária Antifascista

GTO LX

HuBB- Humans Before Borders

Kilombo - Plataforma de Intervenção Anti-Racista

Mbongi 67

MNE - Mulheres Negras Escurecidas

Nomada Notebooks

NOSSA FONTE – Associação de Intervenção e Difusão Cultural

Núcleo Antifascista de Barcelos

OVO PT | Observatório de Violência Obstétrica em Portugal

Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia

Parents for Peace

Plataforma Geni

Refugees Welcome Portugal (On The Road - Associação Humanitária)

SaMaNe - Saúde das Mães Negras e Racializadas

SOS RACISMO

Stop Despejos

Teatro GRIOT

The Blacker The Berry Project

UNA - União Negra das Artes

Vida Justa

Vozes de Dentro

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Racismo em Portugal comprovado por assinatura: onde está a sua?

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

Anunciar duas pessoas negras como se fossem mercadoria, à semelhança de velhos leilões escravocratas, tornou-se tentador para Tânia Laranjo. “Não resisto”, escreveu em 2019 a jornalista do Correio da Manhã e da CMTV, aproveitando a febre consumista da “Black Friday” para divulgar a sua “promoção especial leve 2 e não pague nenhum”.

A parangona, exibida no Facebook com os rostos do dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba, e da então deputada Joacine Katar Moreira, viralizou entre partilhas, reacções e comentários de ódio, e, mais de cinco anos depois, permanece impune. Apesar de a Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) ter condenado Tânia Laranjo ao pagamento de uma coima de 435,76€ por “prática discriminatória em razão da cor da pele”, a decisão foi contestada pela repórter e o desfecho não se adivinha reparador.

Ainda assim, poderia ser pior: 80% dos processos instaurados pela CICDR acabam arquivados, segundo um estudo do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, que analisou denúncias nas áreas da educação, habitação/vizinhança e forças de segurança feitas entre 2006 e 2016, e encerradas até Fevereiro de 2020.

A pesquisa foi desenvolvida no âmbito do projecto “Combat - O combate ao racismo em Portugal: uma análise de políticas públicas e legislação anti-discriminação”, e demonstra a pertinência da Iniciativa Legislativa Cidadã promovida pelo Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia (GAC).

“O objectivo é fazer alterações ao Código Penal, reforçando o combate à discriminação e aos crimes praticados em razão da origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica”.

A proposta, explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram o grupo de especialistas que redigiu o texto, resulta de um processo amplamente discutido e participado.

“Houve um primeiro momento em que verificámos todas as opções jurídicas que tínhamos em cima da mesa”, reconstitui Nuno, adiantando que a ideia inicial de criar uma nova lei sobre esta matéria foi preterida pela opção de introduzir mudanças ao artigo 240.º do Código Penal, que enquadra a discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

“É mais simples alterar apenas um ou dois artigos, do que estarmos a criar um diploma novo”, reforça, sem nunca perder de vista o propósito. “A Iniciativa Legislativa Cidadã exige um mínimo de 20 mil assinaturas que, do ponto de vista dos movimentos associativos, é um objectivo muito difícil de conseguir, daí a preocupação de agregar o maior número de pessoas possível, quer entre nós, quer lá fora”.

Convencer a opinião pública

A força mobilizadora, acrescenta Anizabela, passa pela capacidade de conquistar a “aceitação da opinião pública, e da própria Assembleia” da República.

“Temos plena consciência que há muitas outras reivindicações a nível legislativo que deixámos de lado, áreas que ficam em aberto, como a protecção das vítimas, mas desta forma achámos que seria mais fácil convencer as pessoas”.

O processo ganhou expressão há um ano, a partir da manifestação “Vota contra o Racismo”, embora as primeiras conversas sobre uma concertação viessem de 2023.

“Tem sido um tema recorrente para as discussões do SOS Racismo esta questão da criminalização. Aliás, mesmo a lei que existe actualmente, e que queremos rever, já foi um trabalho muito empurrado pelos movimentos, e pelo SOS”. 

A dinâmica impulsionadora da sociedade civil volta a sobressair nesta Iniciativa Legislativa Cidadã.

“Por um lado, abrimos a proposta ao debate público”, explica Anizabela, revistando as etapas iniciais: “Criámos um QR Code que ia parar a um formulário, para recolhermos opiniões dos colectivos e de todas as pessoas que se quisessem manifestar”.

O período de auscultação acabou por se prolongar porque “as pessoas sentiram necessidade de conhecer melhor o tema, de se apropriarem mais da questão”, nota a jurista, acrescentando que esse tempo também foi essencial para se reflectir sobre a melhor abordagem jurídica.

Além de 20 mil assinaturas

“Ainda bem que o processo foi demorado, porque assim permitiu mastigarmos bem tudo e conseguirmos chegar a um consenso”, aponta Nuno, de novo voltado para as metas.

“Obviamente que o objectivo último é fazer chegar à Assembleia as 20 mil assinaturas, para dar início a um processo de discussão e obrigar o Parlamento a debater esta proposta”, assinala, identificando outros ganhos. “Isto é também um pretexto, uma ferramenta excelente para, pelo menos durante um ano, nós conseguirmos ter este assunto discutido em vários locais, em vários fóruns. Ou seja, a ideia é também que se possa reflectir sobre a questão do Direito Penal, sobre a questão do racismo, e abrir caminho mais para a frente”.

O debate está lançado, e as assinaturas podem ser recolhidas presencialmente, em papel, por acção dos mais de 80 colectivos que compõem o GAC, e online, pelo site da Assembleia da República e das petições públicas.

“Mesmo que cheguemos ao fim da Legislatura sem as 20 mil assinaturas, as que tivermos não se perdem. Podemos dar continuidade ao processo na Legislatura seguinte”, clarifica Anizabela.

“No final, vamos juntar todas as assinaturas na plataforma da Assembleia da República, já com aquela margem dos 5% que nos dizem que é para as que não correm bem. Depois, tendo as 20 mil, somos chamados a apresentar a proposta em plenário”.

Primeiro na generalidade e a seguir na especialidade, a discussão, antecipa a jurista, “vai exigir alguma negociação e capacidade de persuasão”.

Ao mesmo tempo, nota Anizabela, “algumas entidades e alguns partidos terão que se posicionar, e será muito interessante perceber quem são essas pessoas que se vão posicionar contra as práticas racistas serem crime”.

Medo da criminalização

Por enquanto, a oposição à iniciativa evidencia-se no volume ainda inexpressivo de assinaturas, justificado, aqui e ali, com receios de que a criminalização do racismo acarreta mais custos do que benefícios.

Por exemplo, há quem tema que a alteração ao artigo 240.º do Código Penal possa ser instrumentalizada contra activistas anti-racistas, e não falta quem receie a criação de um estado policial.

No entanto, Nuno Silva afasta esses e outros cenários.  “As condutas que colocamos nesta proposta de alteração, como passíveis de serem criminalizadas já constavam na lei como ilícitas. Portanto, não vai haver um extra policiamento de condutas. O que queremos é dar-lhes consequências diferentes”.

O repertório de práticas sob escrutínio inclui, entre outras, a recusa ou condicionamento de venda, arrendamento ou subarrendamento de imóveis, motivada pela origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem.

Portanto, insiste Nuno, “quando dizem, mas vocês agora vão criar uma espécie de Estado policial com uma super vigilância, respondo que não. As condutas que são ilegais são exactamente as mesmas, o que nós queremos alterar é a forma como o Estado as interpreta, e como é que nós, como sociedade, olhamos para elas”.

O jurista defende que não avançar com a alteração proposta implica continuar a equiparar um carro mal-estacionado a agressões à honra e à dignidade.

Sobre a possibilidade de a lei se virar contra activistas anti-racistas, Nuno considera uma hipótese descabida.

“Quem é racista e quem tem comportamentos racistas é que pode estar preocupado porque vai ter aqui uma consequência diferente do que uma mera coima a pagar”.

Educar para consciencializar

Além de se dar maior gravidade às condutas, criminalizando-as, Anizabela lembra que as mudanças terão de passar sempre por um “trabalho ao nível das escolas de direito, das universidades, das magistraturas, da formação dos magistrados e da formação dos advogados”.

Confiante na transformação, a jurista sublinha que hoje em dia já temos “magistrados que lamentam não poderem ir mais longe”, na aplicação da lei, e reconhecem as limitações do artigo 240.º do Código Penal. Em concreto, Anizabela nota que é fundamental retirar a exigência de que a discriminação, para ter enquadramento criminal, tem de ocorrer publicamente, ou por qualquer meio destinado a divulgação.

Actualmente, é nessas estreitas circunstâncias que os actos racistas são criminalizados, a exemplo do que aconteceu no caso que envolveu os filhos dos actores brasileiros Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank.

Agredidos por Adélia Barros, que os chamou de “pretos imundos”, as crianças, na altura com 7 e 9 anos, tiveram de ouvir vários insultos, como: “Portugal não é lugar para vocês! Voltem para África e para o Brasil."

Condenada a quatro anos de pena suspensa e ao pagamento de uma indemnização de 14.500 euros, a que acrescem 2.500 euros para o SOS Racismo, a agressora está ainda obrigada a um internamento para tratar o alcoolismo.

Este desfecho, a que não será alheio o mediatismo dos protagonistas, comprovado por intervenções dos Presidentes da República de Portugal e do Brasil, dificulta o entendimento sobre a necessidade de endurecer a lei.

Racismo não é crime - a luta continua!

“Estamos a ser acusados de desinformação, de sermos mentirosos”, lamenta Anizabela, acrescentando: “Temos pessoas que dizem: ‘Claro que o racismo é crime, porque senão, como é que o André Ventura tinha sido condenado? Portanto, as pessoas vão buscar casos de condenações por racismo para dizer que já existem, e nós vamos desconstruindo”.

Impõe-se continuar a fazê-lo, destaca Nuno, a partir das experiências já vividas em tribunal.

“Uma coisa que sempre me afligiu muito nos julgamentos que fui acompanhando é a forma como, quer procuradores, quer juízes, sentem estes temas”, diz. “Parecem demasiado despreocupados com isto e, sobretudo, parece que remetem muitas vezes estas questões para acontecimentos singulares, em que acontece um em 1000 casos, e, portanto, não lhes dão a devida atenção”.

Atento às limitações presentes em qualquer lei – “temos consciência que nós não vamos fazer nenhuma revolução só com essa alteração legislativa” –, Nuno confia no seu bom contributo.

“As práticas racistas não vão deixar de existir, nem as instituições vão mudar. Portanto, esta alteração da lei não vai resolver o problema do racismo estrutural, mas há uma diferença relativa relevante, não só do ponto de vista da autocensura, mas também da forma como nós, a partir daqui, podemos começar a construir uma sociedade um bocadinho melhor”.

A esperança vai buscar inspiração a outras frentes. “Lembro-me, por exemplo, do caso da violência doméstica, que há uns anos nem sequer era crime. Aliás, era permitido aos homens exercerem violência sobre as mulheres. Depois, começámos a ter algumas alterações legislativas para contornar isto, e foi criado um crime específico para esta matéria”, recorda o jurista, sem saltar etapas. “Ainda assim, durante muitos anos, o crime dependia de queixa. Portanto, a pessoa que tinha sido violentada teria de apresentar queixa para haver investigação e, a certa altura, alterou-se esse requisito e o crime passou a ser público”.

A alteração trouxe muitos benefícios, reconhece Nuno, lembrando que a luta continua. “Continuamos a ter decisões profundamente machistas, profundamente patriarcais, mas as mesmas são sindicáveis, ou seja, é possível mudar as decisões de um tribunal pelos tribunais superiores, e passamos a ter uma base legal para combater”.

Não dar a nossa assinatura por isto, é escolher o racismo e proteger os racistas.

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“O racismo existe mesmo?”: do “alto” do seu Observatório, a branquitude ensina

Como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca. A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto. Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”. Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.

Como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca. A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto. Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”. Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.

Corpo docente da “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia", lançada pelo Observatório

Recuemos até 2021. Em Março desse ano, a CIP - Confederação Empresarial de Portugal promovia a conferência "As Mulheres e o Emprego: Um Tema do Homem", na qual propunha debater, “entre líderes masculinos”, a fraca presença feminina em posições de chefia. “Vamos discutir o que trava a ascensão de mais mulheres a cargos de gestão", lia-se na descrição do evento, rapidamente contestado pela total ausência de oradoras.

A CIP dispunha-se a conversar sobre exclusão feminina, e demonstrou, antes mesmo de iniciar a discussão, como as lideranças masculinas urdem para que assim seja. Se dúvidas houvesse, ficou evidente que as práticas machistas e misóginas – e não a falta de candidatas competentes – explicam o excesso de testosterona em lugares de poder e influência.

Dessa constatação à contestação, bastaram uns posts de indignação nas redes sociais para que a CIP recuasse: não só alterou o nome do encontro para "Desta vez: Emprego um Tema de Homens e Mulheres", como decidiu incluir palestrantes femininas – três para seis homens.

Por mais performática que a mudança tenha sido, ela aconteceu, a partir do reconhecimento – que deveria ser óbvio – de que uma discussão sobre a realidade vivida por mulheres não pode descartar a sua presença. Fazê-lo equivale a passar-lhes um atestado de incapacidade, reduzi-las à condição de seres não pensantes e sem autodeterminação.

Fácil de perceber, certo?

Onde reside, então, a dificuldade de entender que um Observatório do Racismo e Xenofobia não pode ser liderado por pessoas brancas e, pior do que isso, só por pessoas brancas, e sem especialização na área?

Como compreender que as pessoas que vivem na pele o racismo e a xenofobia estejam completamente afastadas dessa discussão e intervenção?

Já o dizemos há mais de um ano, mas continuamos a não ser ouvidos, porque as práticas racistas são aceites pela maioria da população branca.

Aliás, como se não bastasse o absurdo de termos um observatório branco para combater uma criação branca, agora também temos o absurdo de uma “Pós-Graduação em Racismo e Xenofobia” coordenada integralmente por pessoas brancas, e, até ver, ministrada sem uma única pessoa não-branca (algumas sessões permanecem sem professor responsável).

A ausência é notória, e isso ressalta não apenas do mosaico de imagens que acompanha este texto.  

Para quem pensou essa pós-graduação, as manifestações de racismo não atravessam toda a sociedade. Só “aparentemente” é que as encontramos “em todo o lado – no local de trabalho, nas ruas, nas interacções quotidianas”.

Não estranha, por isso, que a sessão 6 da formação arranque com uma pergunta inqualificável: “Mas o racismo existe mesmo?”.

A mentira que inventou o racismo

Do alto do seu observatório, a branquitude duvida, mas promete ensinar-nos sobre racismo e xenofobia, transaccionando, assim, mais uma actualização sobre a “mentira que inventou o racismo”, tema de uma TED Talk apresentada em 2020 pelo jornalista e documentarista americano John Biewen.

Escrevi sobre ela no manual KINDER “Desconstrução de estereótipos desde a infância”, onde assinei o capítulo sobre “Educação Antirracista e Antixenófoba: a importância do reconhecimento e da valorização das diferenças”.

Partilho convosco parte dessa reflexão, construída a partir das palavras de Biewen.

“Como é que isto aconteceu? Como é que chegámos a isto?”, questionava o jornalista nessa intervenção, partilhando o resultado de anos de inquietações: Quem criou o conceito de raça? Quando?

Sem qualquer expectativa de obter a identificação de uma pessoa ou uma data específica, Biewen conta, nessa palestra, como a resposta do historiador Ibram Kendi o surpreendeu.

“Disse-me que, na sua pesquisa extensiva, encontrara o que considerava ser a primeira articulação de ideias racistas. E designou o culpado: o nome dele era Gomes de Zurara, um homem português”.

Foi a partir das suas crónicas, produzidas por volta de 1450, que os povos de África começaram a ser retratados como “inferiores e animalescos”, ainda que detivessem algumas das culturas mais sofisticadas do mundo.

“Porque é que esse homem afirmaria isto?”, pergunta Biewen, aconselhando a audiência a seguir o rasto do dinheiro. “Zurara tinha sido contratado para escrever para o Rei e, apenas uns anos antes, os comerciantes de escravos vinculados à Coroa portuguesa tinham sido os pioneiros do tráfico de escravos no Atlântico. (…) Portanto, trata-se de dinheiro e poder. De súbito, era bastante útil que existisse uma história sobre a inferioridade das gentes africanas que justificasse a sua comercialização.”

“Mas o racismo existe mesmo?”, perguntam eles. Sabemos.


Nota de redacção: Após a publicação deste artigo, na sequência de diligências da agência de notícias Lusa, ficámos a saber da suspensão da pós-graduação em racismo e xenofobia, desenvolvimento que partilhámos neste artigo:

https://www.afrolink.pt/artigos/racismo-e-fragilidade-branca-duas-faces-do-mesmo-observatorio

Importa igualmente assinalar que, se em Portugal a cobertura mediática das questões raciais se faz de forma enviesada e fundamentalmente de um prisma polarizado, sem profundidade, e sem a inclusão de pessoas negras e de outros grupos étnicos, no Brasil – um dos países de onde nos acusam de “importar” a “moda do racismo” – a denúncia do racismo e o seu combate fazem parte da agenda jornalística.

Isso mesmo demonstra a atenção que a malfadada pós-graduação tem merecido dos media brasileiros. Partilhamos:

Folha de São Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/10/universidade-em-portugal-suspende-curso-sobre-racismo-apos-escalar-apenas-professores-brancos.shtml

Jornal de Brasília

https://jornaldebrasilia.com.br/noticias/mundo/universidade-em-portugal-suspende-curso-sobre-racismo-apos-escalar-apenas-professores-brancos/

Revista Centenarium

https://revistacenarium.com.br/curso-sobre-racismo-e-suspenso-em-portugal-apos-falta-de-representatividade/

Nexo Jornal

https://www.nexojornal.com.br/extra/2024/10/17/em-portugal-curso-sobre-racismo-formado-por-brancos-e-suspenso

 Deutsche Welle

 https://www.dw.com/pt-br/portugal-cancelado-curso-antirracismo-docentes-s%C3%B3-brancos/a-70518525

 Assinalamos ainda que, em Portugal, nenhum dos media que replicou a notícia da Lusa revelou interesse em aprofundar o tema, limitando-se a reproduzir o que a agência noticiosa divulga.

Pelo contrário, no Brasil, não só a Folha de São Paulo como a TV Globo quiseram ouvir-nos, tal como, no Reino Unido, aconteceu com o The Guardian: https://www.theguardian.com/world/2024/oct/16/university-in-lisbon-suspends-plans-for-course-on-racism-taught-by-all-white-staff

Seguimos na luta!

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