HISTÓRIAS
Cartas Aos Que FicaraM, por Telma Tvon
Escritora e rapper, Telma Tvon escreve para o Afrolink sobre a violenta repressão do Governo do MPLA aos protestos e greves dos taxistas que desde meados de Julho contestam, no país, a subida dos preços dos combustíveis. Com um balanço provisório de 30 mortos e 1.515 detidos, a situação inspirou a escritora a publicar três cartas, cruzando os olhares de três figuras ímpares da História angolana: Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Deolinda Rodrigues.
Escritora e rapper, Telma Tvon escreve para o Afrolink sobre a violenta repressão do Governo do MPLA aos protestos e greves dos taxistas que desde meados de Julho contestam, no país, a subida dos preços dos combustíveis. Com um balanço provisório de 30 mortos e 1.515 detidos, a situação inspirou a escritora a publicar três cartas, cruzando os olhares de três figuras ímpares da História angolana: Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e Deolinda Rodrigues.
Telma Tvon
Texto de Telma Tvon
Não, eu não vos escrevo do além. Eu escrevo a partir do interior de cada angolana, de cada angolano, que tanto sente que já nada consegue desabafar no papel. E yah, filho continua a chorar, Mamã não enlouqueceu, morreu mesmo e desta vez nem foram para São Tomé. Jazem aqui mesmo, na Terra que os viu nascer. A Mãe fenece fisicamente por aqui e o Filho por sua vez enlouquece e fenece mentalmente, também por aqui. Destruídos pelas autoridades que era suposto protegê-los.
Não, eu não vos escrevo com piedade e compreensão porque raros não são os momentos em que me pergunto se vocês conhecem esses sentimentos. Se vocês sequer possuem o dom de ter sentimentos. Eu escrevo-vos, pois, observando o pó de estrela que todos os meus são. Hoje nada brilha. Hoje tudo é incerteza, choro e convulsões.
Não, eu não vos escrevo rogando que se transformem. Esse tempo expirou. Eu agora escrevo-vos na urgência de quem vê também para os outros o tempo expirar porque careço conspirar a vossa saída. Eu não vos teorizei assim. Eu não vos idealizei assim. Eu escrevo cansado, tentando encontrar forças fora da minha matéria para acender uma nova revolta activa. Eu escrevo com fé conseguindo encontrar inspiração nos manifestos agora proactivos que se aventam perante mim.
Não, eu continuo a não escrever pedindo mudança ou sextas oportunidades.
Eu agora escrevo torcendo freneticamente pelo vosso fim.
Com sublinhada tristeza,
Mário Pinto de Andrade - o Pai Fundador
Também eu vos quero distantes do meu povo. Sonho-vos fora. Erramos?
Não consigo tolerar mais essa Angola que chora. Errei?
Sonhadores? Irrealistas? Talvez, mas quantas mais vidas pagaremos pelos nossos sonhos deturpados pelos vossos contínuos erros? Devastação máxima ao desviver deste lado com tanto peso.
Também eu vos quero culpados por adiarem consecutivamente os dias da Humanidade. Assim eu quero-vos de todos os cargos exonerados. O justo mesmo era serem condenados a viver como estão a condenar o nosso povo a viver. Vocês chumbaram no básico, o meu coração de poeta não vos perdoa e eu já só quero descansar em paz. Eu já só manifesto, de bem longe, para o meu povo, abundância e paz e ainda assim está a doer bwe perceber que vocês não sentem, que vocês vivem tipo vos nasceram sozinhos, que vocês não aprendem nada, que vocês agora são um resumido, inaugurado, condecorado Nada.
Também eu agora vos quero sem a tentadora Certeza, sem a firme Esperança pois mediante todos os brilhos capazes que nos depenam a magia da vida também de se eclipsar das vossas vidas. Que é isso Viriato a rogar pragas? Talvez não, a prever sentenças. Eu já só vos desejo apartados das minhas gentes, das minhas terras. Com tudo o que já subtraíram construam as vossas Califórnias e Dubais no Inferno, soterrem-se nos vossos palácios de egoísmo.
Eu agora também escrevo com ansiedade, apelando à vossa partida.
Com aviltante pesar,
Viriato da Cruz - O Pai Poeta
Assim eu já só penso o quão vão foi o meu destino.
O meu país independente não era o fim. Era o sonho do começo.
Era a vida que germinava nos meus que naquela altura para uma sorte maior precisavam de sofrer. E olha só o azar em vocês personificado, pois nas vossas mãos hoje eles continuam a sofrer.
Assim eu já sem corpo, continuo a sofrer. Sabia que a liberdade não se alcançaria com sofrimento mas não seria para vocês que esperava endereçar estas palavras. Confusa com o meu corpo parido em Catete e defumado no Congo, me questiono hoje qual é a vossa ideologia? Vocês quem são? Vocês querem o quê? Sendo absurdamente sincera comigo eu acho que sei as respostas mas não me atrevo a dizê-las de forma perceptível. E ainda assim medo do quê pois se as palavras têm força e se materializam ao serem ditas em voz alta há muito que tal já aconteceu porque vocês andam aí, vaidosos, orgulhosos e não parece haver silêncio que quebre o vosso narcisismo.
Assim eu já só penso que hoje que sem razão aparente se depredam as vidas dos nada a perder, interrogo-me se o vosso M vem do quê, o vosso P juntamente com o vosso L servem para quê, e a vossa Angola é para Quem? Pois, pensem respostas caladas. Pensem em tom de monólogo porque nem diálogo queremos convosco e olhem bem, e oiçam bem, e leiam bem porque mesmo que neste exílio sem regresso eu continuo a ser a revolução. Eu continuo a orar pela libertação dos meus. Eu continuo numa luta sem forma, numa luta de pensamentos e desejos mas continuo, sim fictícios camaradas eu continuo. Continuo até sentir a vossa total retirada. Continuo até se espalhar por todos kimbos acima da terra que o meu povo é soberano.
Com colossal desgosto
Deolinda Rodrigues- a Langidila e Mãe da Revolução Angolana
Escutar a Terra através dos seus Guardiões - as vozes que tecem o futuro
“Falamos muito de “soluções climáticas” em reuniões e conferências. Mas e se as comunidades da linha da frente forem a própria solução? E se a reparação não for caridade, mas um acto de devolução – de recursos, de dignidade – a quem já cuida da vida?”. As reflexões partem de Virgílio Varela, que regressou de cinco meses de viagem pelo Brasil acompanhado das vozes que foi escutando, “das terras alagadas do Rio Grande do Sul às florestas sagradas de palmeiras no Maranhão, passando pelo solo ancestral da Bahia”. Num percurso que incluiu a visita a “20 comunidades indígenas e quilombolas”, o facilitador, formador, consultor, orador e storyteller pôde recordar que “a justiça tem ritmo (...) como um tambor que nunca deixa de bater”. A experiência é partilhada a poucos meses da COP 30 – Conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, que acontece de 10 a 21 de Novembro na Amazónia –, com a força de uma lição de vida. “A caminho da COP30, não levo apenas notas. Levo vozes. Vozes que dizem: não estamos à espera de salvação. Já estamos a tecer o futuro”. Por isso, o convite que Virgílio deixa “é simples: Não amplifiques apenas estas vozes. Segue a sua liderança”.
“Falamos muito de “soluções climáticas” em reuniões e conferências. Mas e se as comunidades da linha da frente forem a própria solução? E se a reparação não for caridade, mas um acto de devolução – de recursos, de dignidade – a quem já cuida da vida?”. As reflexões partem de Virgílio Varela, que regressou de cinco meses de viagem pelo Brasil acompanhado das vozes que foi escutando, “das terras alagadas do Rio Grande do Sul às florestas sagradas de palmeiras no Maranhão, passando pelo solo ancestral da Bahia”. Num percurso que incluiu a visita a “20 comunidades indígenas e quilombolas”, o facilitador, formador, consultor, orador e storyteller pôde recordar que “a justiça tem ritmo (...) como um tambor que nunca deixa de bater”. A experiência é partilhada a poucos meses da COP 30 – Conferência das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, que acontece de 10 a 21 de Novembro na Amazónia –, com a força de uma lição de vida. “A caminho da COP30, não levo apenas notas. Levo vozes. Vozes que dizem: não estamos à espera de salvação. Já estamos a tecer o futuro”. Por isso, o convite que Virgílio deixa “é simples: Não amplifiques apenas estas vozes. Segue a sua liderança”.
Virgílio Varela percorreu o Brasil durante cinco meses
Texto de Virgílio Varela
“Esta não foi uma jornada para ‘ajudar’ comunidades. Foi uma jornada para escutar, para desaprender — e para recordar o que a Terra já sabe.”
Durante cinco meses, percorri o Brasil — das terras alagadas do Rio Grande do Sul às florestas sagradas de palmeiras no Maranhão, passando pelo solo ancestral da Bahia — visitando 20 comunidades indígenas e quilombolas.
Não ia à procura de histórias. Ia ao encontro de territórios vivos de sabedoria.
Cada comunidade recebeu-me não com discursos ou formalidades, mas com alimento, ritmo e memória. Partilharam comigo as suas dores — grilagem, águas contaminadas, línguas silenciadas — mas também partilharam os seus sonhos.
E isso mudou tudo.
No Maranhão, sentei-me com mulheres que há gerações protegem o babaçu. Mostraram-me que resistir também pode ser plantar, cozinhar, ensinar.
Na Bahia, ouvi tambores que falam de realeza, de exílio e de regresso.
E no Sul, vi escolas destruídas pelas cheias e corações ainda em processo de cura — mas também jovens negros a replantar, regenerar e acreditar.
O que encontrei não foi apenas dor. Foi presença. Uma força ancestral que resiste a tornar-se estatística ou objecto de caridade.
Falamos muito de “soluções climáticas” em reuniões e conferências.
Mas e se as comunidades da linha da frente forem a própria solução?
E se a reparação não for caridade, mas um acto de devolução — de recursos, de dignidade — a quem já cuida da vida?
Esta jornada recordou-me que a justiça tem ritmo. Nem sempre é rápido. Nem sempre é ruidoso. Mas é constante — como um tambor que nunca deixa de bater.
A caminho da COP30, não levo apenas notas. Levo vozes.
Vozes que dizem: não estamos à espera de salvação. Já estamos a tecer o futuro.
O convite é simples:
Não amplifiques apenas estas vozes. Segue a sua liderança.
A cor que nos divide: o impacto do colorismo em países de maioria negra
“Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite”. O testemunho, escrito na primeira pessoa, é da moçambicana Shira Cátina Guambe que, a partir da experiência “como mulher negra retinta, e do contacto com diversas realidades”, propõe “uma análise crítica sobre as heranças coloniais, os padrões de beleza eurocentrados, e a invisibilidade que persiste nas relações sociais e afetivas”. O resultado lê-se no texto aqui publicado.
“Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite”. O testemunho, escrito na primeira pessoa, é da moçambicana Shira Cátina Guambe que, a partir da experiência “como mulher negra retinta, e do contacto com diversas realidades”, propõe “uma análise crítica sobre as heranças coloniais, os padrões de beleza eurocentrados, e a invisibilidade que persiste nas relações sociais e afetivas”. O resultado lê-se no texto aqui publicado.
Shira Cátina Guambe, assina esta reflexão
Texto de Shira Cátina Guambe
Falar sobre racismo estrutural é, hoje, um debate inevitável em qualquer sociedade. Mas no próprio universo negro, há uma ferida silenciosa, muitas vezes negligenciada: o colorismo. Esta forma de discriminação, baseada na tonalidade da pele no próprio grupo racial, continua a afetar profundamente como nos vemos, nos relacionamos e somos tratados mesmo em países de maioria negra. A questão que se impõe é simples, mas dolorosa: como é possível que, mesmo onde somos maioria, sejamos vítimas de uma lógica que nos hierarquiza pela proximidade à brancura?
Colorismo: definição e legado
O termo colorismo foi popularizado pela escritora e ativista norte-americana Alice Walker, que o definiu como “o preconceito ou discriminação contra indivíduos com pele mais escura, geralmente entre pessoas do mesmo grupo étnico ou racial”. Embora nascido no contexto afroamericano, o colorismo é um fenómeno global e persistente.
Não é somente uma questão de tom de pele. É um reflexo de séculos de dominação colonial, onde tudo o que se aproximava do europeu era considerado superior: desde a cor da pele, ao cabelo, ao nariz, aos lábios, à estrutura corporal. É uma herança que atravessa gerações e geografias, e que continua a moldar o modo como construímos valor, beleza e estatuto.
Por mais insano que pareça, esta lógica persiste ainda hoje, mesmo em países onde a maioria da população é negra. Em vez de desaparecer, o colorismo ganhou novas roupagens e adaptou-se às dinâmicas atuais de poder, consumo e representação.
Quando a cor da pele se torna critério: os impactos reais do colorismo
O colorismo não se limita ao campo da estética. Infiltra-se silenciosamente em todas as esferas da vida: nas oportunidades profissionais, na forma como somos atendidos nos serviços públicos, nas escolhas afetivas, na representação nos meios de comunicação e até nas nossas próprias aspirações.
Em muitos países africanos, incluindo o meu, não é raro vermos pessoas de pele mais clara em posições de maior destaque, sobretudo em áreas como a comunicação, moda, publicidade ou atendimento ao público. Em Moçambique, por exemplo, basta assistir a uma sequência de anúncios televisivos ou folhear uma revista para perceber que os rostos escolhidos para representar o “ideal” moçambicano tendem a ter tons de pele mais claros e traços mais próximos dos padrões eurocêntricos. O mesmo se observa em Angola, no Senegal, ou mesmo no Brasil, países com histórias distintas, mas atravessados pelo mesmo legado.
Isto não é coincidência. Segundo um estudo da Universidade da Cidade do Cabo, pessoas de pele mais clara, em contextos urbanos africanos, têm maior probabilidade de aceder a cargos bem remunerados e a serviços de saúde privados. Embora os dados variem consoante o país, o padrão é reconhecível: a tonalidade da pele continua a funcionar como um filtro social um privilégio invisível para uns, uma barreira camuflada para outros.
Contradições e invisibilidade: entre heranças coloniais e padrões eurocentrados
“Ela tem boa cor”, dizem, a elogiar uma mestiça. “O teu cabelo é duro, devias usar relaxante.” “Sou escuro, mas tenho hábitos de brancos.” Quem cresceu em contextos africanos ou afro-diaspóricos provavelmente já ouviu (ou disse) alguma destas frases. À primeira vista, parecem inofensivas. Mas carregam em si séculos de invisibilidade, de negação, de reconfiguração forçada da identidade negra.
São frases que mostram como a colonização deixou marcas profundas. Afinal, é um povo que foi anulado por séculos e levado a crer que os seus traços são feios e vulgares, que o seu cabelo é ridículo e pobre, que as curvas das mulheres negras são excessivas e traiçoeiras, que o nariz largo é deselegante. Tudo isso visando encaixar nos padrões da nova sociedade a colonial e afastar-se de tudo o que revelava a sua origem.
E é aqui que mora o perigo: estas ideias ainda enchem o nosso mundo e esvaziam a nossa essência. Porque muitos negros retintos, nascidos em África, sentem a necessidade de mudar a sua aparência para se tornarem socialmente mais aceites. Hoje, com míseras moedas, é possível comprar cremes que prometem “clarear” a pele. O mesmo se aplica ao cabelo: há uma infinidade de produtos para alisar, extensões e wigs, que poderiam ser usados como opção estética, mas que se tornam uma dependência disfarçada, uma exigência para “pertencer”.
O silêncio não nos serve: entre consciência e mudança
Falar sobre colorismo, especialmente dentro da nossa própria comunidade, não é confortável. Há silêncios que se tornaram regra, e feridas que aprendemos a disfarçar com humor ou resignação. Mas quanto mais ignoramos, mais normalizamos e mais longe ficamos de nos ver por inteiro.
Como mulher negra retinta, reconheço que sou privilegiada por ser consciente da minha identidade e isso devo, na maioria, à minha mãe. Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite.
Mas talvez o impacto mais profundo nem seja o externo é o que acontece por dentro. O colorismo interiorizado, aquele que fere a auto-estima, é provavelmente o mais doloroso. Já ouvi, mais de uma vez, comentários como: “Fulana tem o útero limpo, vê-se pelo facto de o filho ter nascido clarinho.” Ou: “O teu cabelo nem parece ruim” como se o facto de parecer “menos crespo” fosse um elogio. E ainda aquele clássico: “Se fosses clara, eras muito mais bonita.” São frases que se dizem com naturalidade, mas que carregam séculos de rejeição, de comparação, de desvalorização dos traços negros.
Acresce a isto o fenómeno, infelizmente frequente, de vermos homens negros que se sentem vitoriosos ou “evoluídos” quando conseguem relacionar-se com mulheres brancas ou mestiças como se o amor estivesse também submetido a um código de validação racial. Basta observar o padrão em muitos atletas, músicos ou figuras públicas negras que, ao atingirem certo estatuto social ou económico, optam por estar com mulheres de pele mais clara, como se isso simbolizasse uma espécie de ascensão. Palavras, escolhas e silêncios que vão minando a identidade, como gotas constantes numa rocha frágil.
Encerrar para começar: o desafio de reimaginar-nos
Desconstruir o colorismo é um trabalho de todos os dias e de todos nós. Não basta somente culpar o sistema ou recordar as feridas do passado. É urgente olharmos para o interior da nossa comunidade e percebermos como continuamos a reproduzir, muitas vezes sem querer, lógicas que nos dividem, que nos hierarquizam, que nos enfraquecem. Precisamos de criar espaços onde todas as tonalidades de pele negra sejam valorizadas, onde o cabelo crespo seja celebrado e não tolerado, onde as crianças negras cresçam sem precisar de se comparar ou esconder.
Talvez não consigamos mudar tudo de uma vez. Mas podemos começar com o que dizemos, com o que partilhamos, com o que calamos. Podemos começar por escutar mais, por educar-nos mutuamente, por resgatar a beleza que sempre foi nossa e que nunca deveria ter sido colocada em dúvida.
No fundo, trata-se de reimaginar o que significa ser negro num mundo que tantas vezes tentou dizer-nos o contrário. E nessa reimaginação, há espaço para orgulho, para coragem e para cura.
O racismo pelo olhar de uma jovem: “Tornei-me negra quando cheguei a Portugal”
Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.
Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.
Texto de Valdeth Dala
Quando eu me mudei com a minha família para Portugal em 2023, eu percebi que o racismo não só existe, como é uma questão muito séria. Percebi que a realidade é ainda mais brutal do que qualquer filme representa. Percebi que ainda vivemos num mundo em que o negro é discriminado, agredido, menosprezado, e julgado simplesmente por ser negro.
Nasci e cresci em Angola, um país com uma população maioritariamente negra, onde o racismo é arquivado em livros de História, e tido apenas como parte de um passado inconveniente.
Ao longo da minha adolescência, comecei a acompanhar filmes que abordavam, retratavam, denunciavam e contestavam o racismo no período da escravidão, no período colonial e pós-colonial, como por exemplo: “12 Anos Escravo”, “As Serviçais”, “Mandela: Longo Caminho Para Liberdade”, “O Ódio que Semeias”, “Foge”.
Mas, nenhum filme me preparou para a realidade que encontrei cá em Portugal, onde, no dia 12 de Junho, Maria Luemba, uma menina angolana de 17 anos, foi encontrada morta em sua residência, numa vila perto de Aveiro.
As autoridades apontaram para um suicídio, porém os familiares contestam essa versão. Há, inclusivamente, suspeitas de homicídio, implicando um vizinho com desavenças anteriores com a família.
Esse caso gerou grande comoção junto da comunidade negra – mas não em toda a sociedade –, e culminou num protesto realizado no último domingo, 29 de junho.
Mas o que o caso Maria Luemba tem que ver com racismo? Responderei a essa questão nos parágrafos seguintes.
A forma como a investigação à morte de Maria Luemba começou por ser conduzida levanta dúvidas sobre a atuação policial, com fortes indícios de racismo institucional.
Aliás, desde o início houve falta de informações por parte da polícia, remetida ao silêncio.
Por outro lado, a imprensa só passou a cobrir o caso após a mobilização por parte de coletivos negros e protestos organizados nas redes sociais.
Infelizmente, o caso Maria Luemba não é único. São várias as pessoas negras agredidas, oprimidas e assassinadas em Portugal.
Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição na Cova da Moura, em outubro de 2024. Cláudia Simões, mulher angolana, foi agredida violentamente por elementos da PSP na Amadora, em janeiro de 2020. Elson Sanches, conhecido como “Kuku”, era um jovem português negro de 14 anos e foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição no antigo bairro de Santa Filomena, em 2009. Luís Giovani Rodrigues, jovem cabo-verdiano de 21 anos, morreu na sequência de uma agressão racista em Bragança, ocorrida em dezembro de 2019.
É enorme a lista de pessoas cujas mortes, opressões, agressões e abusos sofridos não recebem a devida atenção por serem negras, imigrantes ou de contextos socioeconómicos desfavorecidos.
Nos últimos dias, ouvi de um amigo que o sistema já era do jeito que é mesmo antes de eu nascer, e que tentar mudá-lo ou ir contra ele é como tentar remar contra uma maré, que sempre acaba por vencer. A seguir, acrescentou: “É assim, só nos resta aceitar”.
Ele não é a primeira pessoa que eu ouço a dizer isso, e sei que não é a única pessoa a pensar assim. Na verdade, são várias as pessoas que pensam e dizem: “O racismo sempre existiu e sempre existirá”, ou então “O racismo sempre existirá na sociedade, o que nos resta é nos conformarmos com isso”.
Mas como posso me conformar com um sistema que vê a minha cor como arma?
Assim como Grada Kilomba escreveu “me tornei negra quando cheguei aos EUA”, eu também posso afirmar que me tornei negra quando cheguei a Portugal. Foi necessário sair do meu país, da minha bolha, para entender que o racismo não é passado — é presente, mas não pode ser futuro.
Não posso me conformar com um sistema que continuamente agride, oprime e mata pessoas como eu. Poderia ser eu ou a minha irmã no lugar da Maria Luemba. Poderia ser a minha mãe no lugar da Claúdia Simões. Poderia ser o meu irmão no lugar de Elson Sanches. Poderia ser o meu pai no lugar de Odair Moniz. Então, eu digo não. Não posso simplesmente aceitar a falência do sistema. Não posso simplesmente me conformar com uma sociedade racista.
O que está em causa não são apenas casos de mortes violentas, agressão, opressão de pessoas negras, mas sim a forma como o sistema reage – ou se cala – quando a vítima não se enquadra no perfil de “vítima ideal” construído pela sociedade.
Que a justiça por todas as pessoas aqui mencionadas — e também por aquelas que não foram mencionadas — seja feita. Que o sistema mude e melhore, para que as próximas gerações não tenham que lutar mais essa luta.
Faço do sonho de Martin Luther King Jr. meu sonho.
“Tenho um sonho: que os meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de pele, mas pelo seu caráter.” Martin Luther King Jr.
Judaico-Cristão? A História apagada por trás de uma expressão conveniente
A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.
A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.
Texto de Myriam Taylor
Nos últimos anos, ouvimos cada vez mais referências à chamada “tradição judaico-cristã” nos púlpitos, nos discursos políticos e até em documentos oficiais de diálogo inter-religioso. Em Portugal, esta linguagem chega tardiamente, sem que se questione suficientemente a sua origem, o seu uso político, e as suas consequências para uma teologia fiel à verdade histórica e à justiça inter-religiosa.
Mas será que a expressão “judaico-cristã” faz parte da tradição litúrgica da Igreja? E que teologia sustenta essa linguagem? A resposta surpreende: nenhuma liturgia tradicional portuguesa, nem os documentos magisteriais anteriores ao século XX, alguma vez definiram a Igreja como “judaico-cristã”.
Pelo contrário, durante séculos, o cristianismo foi construído em oposição ao judaísmo, muitas vezes alimentando o antissemitismo. A reconciliação, quando veio, foi tardia e necessária. O Concílio Vaticano II foi um ponto de viragem, com a declaração Nostra Aetate a rejeitar formalmente a ideia de culpa coletiva do povo judeu na morte de Cristo. Foi nesse contexto de reparação que, no mundo anglo-saxónico, se começou a falar em “herança judaico-cristã” como ponte de diálogo.
Contudo, essa ponte não foi construída apenas com tijolos de reconciliação espiritual. Foi também erguida sobre interesses políticos e estratégicos. Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais — sobretudo os Estados Unidos — começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria. O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda, associando valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico”.
No campo religioso, a teologia cristã dispensacionalista, popular entre evangélicos norte-americanos, ajudou a alimentar o sionismo político, com interpretações apocalípticas que viam o retorno dos judeus à Palestina como parte do “plano divino”. A instrumentalização do sofrimento do povo judeu, transformando-o em aliado estratégico no tabuleiro global, deu ao termo “judaico-cristão” um uso não inocente.
Em Portugal, esta linguagem chegou importada, mas sem crítica. Começou a aparecer em homilias, documentos catequéticos e até em textos institucionais, como se fosse parte orgânica da nossa história. Mas Portugal foi um dos países mais violentos na repressão do povo judeu: com a expulsão dos judeus sefarditas, a imposição forçada da conversão, e os autos-de-fé da Inquisição. Falar em “tradição judaico-cristã” sem reconhecer essa história de violência é reescrever o passado com tinta ideológica.
Além disso, ao insistirmos na aliança “judaico-cristã”, silenciamos outras heranças igualmente fundadoras da experiência de fé cristã: a matriz africana da Igreja primitiva (Egito, Etiópia), o papel das comunidades árabes-cristãs, a contribuição do pensamento muçulmano para a filosofia cristã medieval, e os elos espirituais com povos indígenas que hoje ainda vivem a fé de forma encarnada.
Precisamos de uma teologia mais honesta, mais plural e mais descolonizada. Não basta repetir fórmulas novas como se fossem antigas. É necessário perguntar: a quem serve essa linguagem? O que encobre? E o que exclui?
A reconciliação entre cristãos e judeus é um imperativo moral e espiritual. Mas ela deve ser feita com verdade, não com slogans. E deve abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação.
Falar de “judaico-cristianismo” sem senso crítico é repetir a liturgia do poder. E a liturgia do poder não liberta. Apenas disfarça.
Depois do “bom colonizador”, Portugal apresenta o “bom racista”
Especialista em negar evidências históricas, Portugal reinventa-se na arte de ver tudo o que houver para ver, desde que não tenha de enxergar o racismo que habita em si. Por isso, depois do aclamado mito do “bom colonizador”, o país oferece-nos a fantasia do “bom racista” – alguém que fala, age e vota como um racista, mas afinal apenas precisa de atenção e de compreensão. As eleições do último domingo, revelaram mais de 1 milhão e 300 mil predadores dessa espécie. E não há nada de bom nisso!
Especialista em negar evidências históricas, Portugal reinventa-se na arte de ver tudo o que houver para ver, desde que não tenha de enxergar o racismo que habita em si. Por isso, depois do aclamado mito do “bom colonizador”, o país oferece-nos a fantasia do “bom racista” – alguém que fala, age e vota como um racista, mas afinal apenas precisa de atenção e de compreensão. As eleições do último domingo revelaram mais de 1 milhão e 300 mil predadores dessa espécie. E não há nada de bom nisso!
Andei em campanha política nas últimas semanas, tal como em todos os outros dias, por aquilo que defendo sempre: Humanização, Dignificação e Valorização de toda a Humanidade. Não preciso de militância partidária para o fazer, e muito menos de calendários eleitorais, porque a consciência das desigualdades e injustiças sociais é apelo que baste para me mobilizar.
Tenho amor, saúde, tecto, trabalho, comida, alegria e literacias várias para me ir governando apesar de tantos desgovernos. Quantas pessoas podem afirmar o mesmo?
Defendo que todas, todas, todas – mesmo todas – deveriam poder fazê-lo. Por isso, enquanto houver uma que não o possa, estarei em campanha.
Não do tipo da que tivemos nas últimas semanas: marcada pela corrida às eleições do último domingo, tão recheada de bens privados quanto esvaziada de bem-comum.
A minha campanha de todos os dias constrói-se com presença nas escolas, passa pela criação de plataformas de diálogo, assume a denúncia e combate de práticas discriminatórias como um dever, promove espaços de inovação democrática, reconhece o direito de todas as pessoas a serem exactamente o que são, vive da força colectiva.
Pelo contrário, a campanha dos partidos – infelizmente, da esquerda à direita – tem-se alimentado de ausências, para reforçar influências.
Não é disso que precisamos. O que faz falta é uma política com mais pessoas e menos personas, com mais cidadãos e menos patrões, com mais fazedores de soluções e menos fazedores de opiniões. Precisamos dos que vivem no país de todos os dias – e todos os dias – e não dos que habitam numa redoma de país que, em períodos eleitorais, fingem abrir a mais do que isso.
De outro modo, como esperar outros resultados eleitorais? Como fazê-lo, se há muito impera entre nós a política do vale-tudo-desde-que-eu-possa-valer-um-pouco-mais-do-que-o-outro?
Portugal tem séculos de especialização nisso! Do velho tráfico transatlântico de seres humanos à recente perseguição de imigrantes, passando pelo colonialismo, a inferiorização do “outro” tem raízes tão profundas neste país que a relação entre o racismo, a xenofobia e o crescimento da extrema-direita continua a ser desvalorizada de tão naturalizada que está.
Ainda que se aponte o dedo aos descontentes, aos esquecidos, aos desencantados, aos desesperados, aos ignorantes, aos iludidos…aos tudo-tudo-tudo, “não convém chamar-lhes racistas”, recomendam os portugueses mais portugueses que todos.
Que é como quem diz, aqueles que sabem sempre mais do que “os outros”, e que já decidiram que não é benéfico analisar os níveis nacionais de racismo.
O que importa mesmo – explicam-me – é compreender quem expressa a sua adesão a um partido abertamente racista, posicionamento que evidencia o grande problema-que-estamos-com-ele.
Um país que está mais preocupado em acolher os agressores do que em proteger as suas vítimas está submerso em desumanização. Tão simples e tão complexo quanto isso!
E, por mais que eu saiba que analisar os resultados eleitorais faz parte do pacote Legislativas, questiono se podemos fazê-lo com as vivências de todos-todos-todos? Conseguimos reconhecer que os eleitores do Chega podem até estar a ser coagidos pelo medo e minados pelo desencanto, mas isso não os iliba de serem racistas?
Insistir em não ver o racismo presente na votação de 18 de Maio, ou aligeirar o seu impacto, é consentir na sua normalização.
Pior do que isso, revela que a luta política se mantém rasteira, incapaz de se elevar. Porque humanizar quem vota na desumanização ignorando quem está a ser desumanizado evidencia uma única preocupação: recuperar os votos perdidos.
Eu exijo mais do que isso, eu mobilizo-me por mais do que isso, porque enquanto uns lutam apenas por sobressair nas urnas, outros, como eu, lutam para não acabar numa urna. Não é mito. É facto.
Estamos a normalizar a barbárie: entre a indignação pontual e o silêncio estrutural
Num “gesto provocador”, conforme o apresenta, a empresária de impacto social, Myriam Taylor, perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta, conta-nos, foi clara: “Através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento”. Mais do que notar que é “exatamente o caminho que estamos a seguir”, neste artigo de opinião Myriam aponta soluções. “O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível”.
Num “gesto provocador”, conforme o apresenta, a empresária de impacto social, Myriam Taylor, perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta, conta-nos, foi clara: “Através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento”. Mais do que notar que é “exatamente o caminho que estamos a seguir”, neste artigo de opinião Myriam aponta soluções. “O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível”.
Myriam Taylor perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”
Texto de Myriam Taylor
Vivemos tempos de distanciamento emocional profundo. Um tempo em que o grito coletivo foi substituído por um scroll distraído. Onde a empatia deixou de ser um impulso natural para se tornar uma raridade. Onde o sucesso é medido pelo isolamento vitorioso, e não pela construção partilhada.
Estamos a educar crianças e jovens para o desempenho, não para a consciência. Ensinamos a competir, não a cooperar. A destacar-se, não a cuidar. E o resultado está à vista: uma sociedade muitas vezes incapaz de reagir com profundidade e continuidade à dor do outro.
Na semana passada, Portugal foi confrontado com um crime chocante: uma menor foi violada por três jovens que filmaram o ato e partilharam as imagens nas redes sociais. O caso foi amplamente noticiado e houve manifestações de indignação pública – por parte de cidadãos, organizações e plataformas de direitos humanos. No entanto, esta comoção, apesar de genuína, esbate-se rapidamente na espuma dos dias. Falta-nos continuidade, estruturas de proteção eficazes e um grito coletivo que dure mais do que um ciclo de notícias.
Este caso não é uma exceção. É um reflexo. O mesmo padrão repete-se em escala global. Em Gaza, mulheres e crianças são massacradas todos os dias, com o mundo a assistir. No Congo, mulheres continuam a ser vítimas de violência sexual extrema como arma de guerra, e crianças são exploradas como mão de obra escrava na extração de coltan e outros recursos que alimentam os nossos dispositivos digitais. Há indignações pontuais, sim – mas o que se impõe é um silêncio estrutural, normalizador.
A barbárie já não choca como deveria. Está a ser digerida em pequenas doses – e isso é perigosíssimo. Porque a barbárie instala-se não com gritos, mas com ausências: de cuidado, de mobilização, de responsabilização.
Quando educamos apenas para o “eu”, matamos o “nós”. E quando o “nós” desaparece, deixamos de reconhecer a dor do outro como nossa.
O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível.
Esta inquietação levou-me, num gesto provocador, a perguntar ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta foi clara: através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento. Soa familiar? Porque é exatamente o caminho que estamos a seguir.
Mas ainda há tempo. Este texto não é só um grito. É um apelo. Que sejamos vizinhos atentos, cidadãos ativos, educadores conscientes. Que não deixemos o horror passar como mais um vídeo no feed.
Estamos num ponto de viragem. Somos todos chamados a tomar uma posição. Em que lado escolhemos estar?
Eva Rapdiva - o backlash em dois países e a urgência de falarmos sobre múltipla pertença e legitimidade
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste artigo de opinião.
Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste artigo de opinião.
Texto de Myriam Taylor
A nomeação de Eva Rapdiva para a lista do Partido Socialista às eleições legislativas fez estalar um debate que ultrapassa largamente as fronteiras da política. Assistimos a uma reacção em cadeia — tanto em Portugal como em Angola — que, mais do que qualquer questão partidária, nos convida (ou obriga) a reflectir sobre pertença, identidade e legitimidade.
Eva é, ao mesmo tempo, portuguesa e angolana. Não “meio de cá e meio de lá”. É de cá e de lá, inteira. Afro-europeia, mulher, artista, com uma voz pública forjada na denúncia da injustiça social e racial. E é precisamente essa pluralidade que parece ter incomodado tantos, em dois contextos que, embora distintos, continuam a resistir à ideia de múltiplas identidades coexistirem num mesmo corpo, numa mesma história.
Em Portugal, vimos os ataques de sempre: o questionamento sobre quem tem direito a representar o país. Como se a negritude fosse um corpo estranho à identidade portuguesa, como se o simples facto de Eva existir e falar com autoridade fosse uma afronta à ordem estabelecida. Já em Angola, surgiram críticas num registo diferente, mas igualmente revelador — a ideia de que o envolvimento dela na política portuguesa significaria um afastamento das raízes ou um “esquecimento” da pátria.
Importa recordar, neste contexto, que há alguns anos a então deputada e líder do CDS, Assunção Cristas, mostrou no Parlamento o seu passaporte angolano com orgulho — e esse gesto, embora simbólico, nunca suscitou qualquer tipo de comoção social, muito menos indignação pública. Nenhum debate sobre "dupla lealdade", nenhuma exigência de explicações sobre "a quem serve". O contraste é gritante. E diz muito sobre como a cor da pele e a origem racializada continuam a definir a forma como legitimamos (ou não) a presença de alguém nos espaços de poder.
É curioso (e doloroso) constatar como, mesmo nos espaços que deviam acolher-nos, continuamos a ser desafiadas a “escolher um lado”. Como se a nossa existência tivesse de caber numa única caixa, numa só bandeira, numa só narrativa. Mas nós, filhas da diáspora, somos feitas de muitas camadas. E isso não é uma falha — é uma força.
A reacção à candidatura da Eva mostra-nos como ainda há um longo caminho a percorrer na aceitação da pluralidade identitária. Mas também revela que a sua presença incomoda porque quebra expectativas. Porque desloca o centro. Porque obriga-nos a repensar o que significa ser portuguesa, ser angolana, ser europeia — e quem tem o direito de ocupar os lugares de decisão.
Eva Rapdiva não está “a ser permitida” ocupar um espaço. Está a reclamar, com legitimidade e mérito, um lugar que também é seu. E isso é revolucionário. Não apenas para ela, mas para todas nós que crescemos a ouvir que não era para “gente como nós”.
Que este momento sirva para nos unirmos em torno de algo maior: a construção de uma sociedade que abrace a complexidade das nossas existências. Que reconheça que somos plurais, móveis, e que isso não nos torna menos, mas muito mais.
Eva representa a possibilidade de um novo tempo. E é nosso dever assegurar que essa possibilidade floresça — com coragem, com dignidade e com amor.
Quem tem medo de criminalizar o racismo? Até tu, aliado?
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com as quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Olho para os números que, no início desta semana, me diziam que desde 10 de Dezembro de 2024 – data de formalização da proposta –, cerca de 2.700 pessoas assinaram online a Iniciativa Legislativa Cidadã que prevê a alteração do Código Penal, para que se criminalize o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias.
Comparo os dados com as largas dezenas de milhares de pessoas que, no passado dia 11 de Janeiro, saíram à rua para combater o racismo e a xenofobia, sob o mote “Não nos encostem à parede”. Junto os cerca de 6.000 seguidores desta campanha no Instagram, e constato o óbvio: há uma linha demasiado ténue que separa um aliado da luta anti-racista de um apaniguado do sistema racista.
Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e, repetidamente, a vêem escapar impune.
Importa, por isso, lembrar – uma vez mais e sempre – o papel de um aliado, à luz do que definiu a afroamericana Kayla Reed, pessoa negra e queer, estratega do Movimento pelas Vidas Negras, a partir do qual co-fundou o Projecto pela Justiça Eleitoral.
Desconstruindo a palavra inglesa ally (aliado) letra a letra, a activista aponta quatro acções fundamentais para quem ocupa esse lugar.
Passo a enumerar, e a traduzir:
A - always center the impacted – focar sempre naqueles que sofrem o racismo na pele;
L - listen & learn from those who live in the oppression – ouvir e aprender com aqueles que vivem sob a opressão;
L - leverage your privilegie – colocar o próprio privilégio/poder ao serviço da luta;
Y - yield the floor – ceder o ‘palco’.
Entre “Setenta e Quatro”, “Gerador”, “DN” e “Brasil Já”, publicações onde fui e vou assinando opinião, perdi a conta ao número de vezes em que escrevi sobre pessoas que se afirmam aliadas da luta anti-racista, mas estão sempre voltadas para si próprias; não conseguem ouvir sem retorquir um ‘mas’ e perceber que, por mais empáticas que possam ser, e por muito que sofram discriminações, nomeadamente de género, nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa negra. Nunca. Da mesma forma, não preciso dos dedos das duas mãos para contar o número de pessoas brancas com quem me cruzei que usam da influência que têm para criar acessos efectivos e quebrar barreiras estruturais.
Cabe aqui fazer uma dupla ressalva: uma coisa é abrir a porta a pessoas negras, outra muito diferente é construir espaços que as acolham. Do mesmo modo, convém prestar atenção ao papel que, quando são ‘integradas’ em estruturas brancas, as pessoas negras ocupam. É-nos reconhecido o direito de pensar e de opinar, quando ele coloca em causa o pensamento e opinião brancos?
A menos que acreditem na ficção do racismo reverso, percebam que pessoas brancas nunca saberão o que é ser alvo de racismo, da mesma forma que pessoas que não menstruam nunca saberão o que são dores menstruais, e pessoas que não engravidam nunca saberão o que é passar por um aborto.
Convém, por isso, ouvir e aprender com quem vive essas realidades, e perceber algo fundamental: se as pessoas que vivem as opressões apontam o caminho para as combater, a única coisa que quem não as vive e se diz aliado tem de fazer é apoiar e seguir sob o seu comando.
É vital entender que as dúvidas e questionamentos individuais – por mais legítimos que sejam – não se podem sobrepor a lutas colectivas que combatem violações de Direitos Humanos, e legislam contra a sua impunidade.
A iniciativa cidadã para criminalizar práticas racistas parte do Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia, que reúne mais de 80 colectivos “determinados a lutar por um Portugal, uma Europa e um mundo mais inclusivos e interculturais, contra todas as opressões e formas de discriminação”.
Travar o avanço desta proposta é compactuar com o sistema de impunidade, porque sabemos que os casos de racismo raramente são punidos, e, que quando o são, poucas vezes vão além do pagamento de coimas.
Recusar assinar a Iniciativa Legislativa Cidadã de criminalização do racismo não é uma expressão de divergência, é um acto racista.
Porque, conforme explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, o que a proposta de alteração ao Código Penal permite é agravar as consequências de práticas já previstas na Lei, para que, por exemplo, agredir pessoas negras– como fez a jornaleira Tânia Laranjo em 2019 com Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba –, não seja equiparado à colocação incorrecta de um toldo numa esplanada.
Ignorar que as normas existentes promovem uma cultura de impunidade é próprio de racistas, e de quem não está a focar em quem sofre o racismo na pele. E isso não se resolve com hashtags no Instagram, frases eloquentes, nem rodadas de cachupa.
Televisão a branco e branco
Trabalhei como jornalista durante quase 20 anos, percurso iniciado na revista Visão, continuado no semanário Sol, e expandido a partir da saída para Angola, onde assumi, pela primeira vez, funções de chefia. As novas responsabilidades permitiram-me adicionar à minha assinatura profissional a única secção para a qual, até aí, nunca tinha escrito uma palavra: política. A nacional, entenda-se, porque a minha formação em Relações Internacionais acabou por me direccionar para o acompanhamento da actualidade ‘global’ – que é como quem diz do Norte Global. Faço o enquadramento para assinalar que apesar da minha experiência no jornalismo, nunca consumi tanto comentário político como no último ano e meio. Entre páginas de jornais e canais de televisão, a minha dieta informativa passou a incluir doses generosas de análise e opinião, demasiadas vezes indigestas de tão destemperadas. Cada uma à sua maneira, as diferentes posições que vou encontrando evidenciam que o pensamento que habita o espaço público até pode ter diferentes cores partidárias, mas há uma que sobressai: a da pele branca. Afinal, onde estão os comentadores negros?
Trabalhei como jornalista durante quase 20 anos, percurso iniciado na revista Visão, continuado no semanário Sol, e expandido a partir da saída para Angola, onde assumi, pela primeira vez, funções de chefia. As novas responsabilidades permitiram-me adicionar à minha assinatura profissional a única secção para a qual, até aí, nunca tinha escrito uma palavra: política. A nacional, entenda-se, porque a minha formação em Relações Internacionais acabou por me direccionar para o acompanhamento da actualidade ‘global’ – que é como quem diz do Norte Global. Faço o enquadramento para assinalar que apesar da minha experiência no jornalismo, nunca consumi tanto comentário político como no último ano e meio. Entre páginas de jornais e canais de televisão, a minha dieta informativa passou a incluir doses generosas de análise e opinião, demasiadas vezes indigestas de tão destemperadas. Cada uma à sua maneira, as diferentes posições que vou encontrando evidenciam que o pensamento que habita o espaço público até pode ter diferentes cores partidárias, mas há uma que sobressai: a da pele branca. Afinal, onde estão os comentadores negros?
Semanalmente, junto-me aos camaradas Nuno Ramos de Almeida e Pedro Tadeu n’ Os Comentadores. É um espaço integrado no AbrilAbril, também acessível via YouTube, e que parte de comentários feitos nas televisões, a que se soma um artigo publicado na imprensa escrita – não forçosamente de opinião.
Estou neste trio há mais de um ano, e, episódio após episódio, fui encontrando o meu lugar num território que, até aí, me era completamente estranho, e que sempre senti que me estava vedado.
Afinal, quantas pessoas negras assinam colunas de opinião política em revistas e jornais? Quantas têm espaço na TV portuguesa?
Vejo que a professora Luísa Semedo resiste nas páginas do Público, depois do afastamento abrupto da socióloga Cristina Roldão, mas não encontro nenhuma outra referência na imprensa escrita.
A ausência acentua-se quando ligo a televisão: à excepção dos programas desportivos, só me deparo com comentadores brancos.
Ressalva: os comentadores negros que aparecem a analisar futebol chegam à televisão já com expressão pública, pelas carreiras que tiveram nos relvados e/ou no comando técnico de equipas.
Sem essa projecção prévia seriam alguma vez considerados?
Foco na categoria “comentadores” porque, em teoria, ela tem subjacente o reconhecimento de intelectualidade, a que corresponde conhecimento, vivência e capacidade de interpretação e análise da actualidade, fundamentais para a construção de pensamento.
Sublinho “em teoria” porque, à luz da prática que tenho acompanhado nos diferentes canais de televisão – exercício que passou a integrar a minha digestão informativa diária por causa d’ Os Comentadores –, essa intelectualidade resume-se, regra geral, a sobranceria, vaidade e apelidos que acumulam privilégios, adornados, aqui e ali, por distinções curriculares que escondem longas cadeias de referenciações. Mas, apregoam eles e elas, o que vale é a meritocracia!
Uma ardilosa invenção segundo a qual, se não temos pessoas negras a comentar a actualidade política – e a ocupar outras posições de visibilidade e influência social –, é por não fazerem o suficiente para chegar lá.
E como quem decide goza do enorme privilégio de poder escolher não ver cores, continuamos a viver num mundo em que a televisão se pensa e vê a branco e branco, e em que a cobertura mediática ignora a presença negra, a menos que sirva para confirmar percepções de identidades.
Não estranha, por isso, que, a dar-se o milagre de nos chamarem para comentar a actualidade num espaço mainstream, o convite esteja invariavelmente amarrado a uma qualquer situação de racismo. O que não deixa de ser sintomático: por um lado, dizem-nos que não vêem cores, e, por outro, não nos conseguem reconhecer para além da nossa negritude.
Esta tem sido a regra, mas esta não tem de continuar a ser a regra. Da mesma forma que se abriu caminho – e bem – à opinião feminina no espaço público, é crucial que se faça o mesmo em relação às pessoas negras e a todas aquelas que continuam invisibilizadas.
Sei que a simples exposição às diferenças humanas não produz, por si só, a aceitação dessas diferenças, contudo, parece-me evidente que sem a desconstrução dos preconceitos associados a essas diferenças, continuaremos a viver numa sociedade de profunda desumanização do “outro”.
Se todos os tipos de pessoas trabalham, pagam impostos, arrendam e compram casas, consomem, constroem famílias, amam, sofrem, pensam, indignam-se, revoltam-se…porque é que na configuração do espaço público português, apenas as pessoas brancas são consideradas na multidimensionalidade humana?
O que sabemos é que a partir dessa subtracção de vidas se multiplicam os olhares de desumanização e a normalização de práticas discriminatórias, cristalizando-se percepções de subalternidade, incivilidade e criminalidade. Mas o que para tantos representa enviesamento, apagamento e silenciamento, continua a ser, aos olhos da branquitude “criadora de todas as causas e coisas”, um bom programa de fortalecimento e entretenimento de poder.
Cabe-nos, por isso, a nós, pessoas racializadas e aliadas, continuar a apresentar outros programas. Conscientes de que a revolução não será televisionada, mas precisa de ser imaginada. À imagem do que nos lembra Jonathan Horstmann, na citação que abre a newsletter desta semana: “A voz negra é forçada a ser imaginativa, caso contrário será silenciada”.
Nós por cá, reiteramos o compromisso de continuar a imaginar.