HISTÓRIAS

Justiça, Vidas Negras Paula Cardoso Justiça, Vidas Negras Paula Cardoso

Como o ódio racial que matou Ademir Moreno está a ser reduzido a jogos de palavras

Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o caso do assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.

Sem a presença de jornalistas na sala de audiências, que deixaram de acompanhar o processo ao ponto de terem ignorado o início do julgamento, o assassinato de Ademir Araújo Moreno, cruelmente agredido em Março de 2024, evidencia como as vidas negras (não) importam nesta sociedade. A desvalorização das agressões que sofremos, ardilosamente transformadas em narrativas que nos demonizam e nos responsabilizam pelos nossos próprios homicídios, tem agora no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, nos Açores, um novo palco. É aqui que a defesa de Adriano Silva Pereira, apontado por inúmeras testemunhas como o assassino de Ademir, tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para eliminar a acusação de “ódio racial”, presente desde os primeiros relatos do crime, cometido à porta de uma discoteca, na ilha do Faial. O jogo de palavras – apurou o Afrolink junto de uma pessoa que assistiu à segunda sessão do julgamento, na passada terça-feira, 17 – cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos” para determinar se o assassinato teve motivação racial. Falando à imprensa – que apesar de não se ter dado ao trabalho de acompanhar a sessão, apareceu no final para registar declarações –, o jurista confirmou que Adriano Silva Pereira “assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, mas reduziu o acto bárbaro a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”. Não é isso, contudo, que indicam vários testemunhos recolhidos pela acusação, convergentes na descrição do arguido como um racista empedernido. A próxima sessão está marcada para dia 2 de Julho, e, com ela, renasce a esperança de que a Justiça seja feita. “Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink Lurdes Ferreira, a viúva de Ademir, que recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”. Morreu por ser negro.

As demonstrações de ódio racial de Adriano Silva Pereira, acusado de assassinar Ademir Araújo Moreno num contínuo de agressões racistas, pareciam há muito fadadas para se transformarem em cadastro.

“O arguido é conhecido na comunidade e entre as pessoas da sua geração como pessoa conflituosa e que, em saídas nocturnas, se envolve facilmente em situações de confrontos físicos”, lê-se na acusação do Ministério Público, a que o Afrolink teve acesso.

O documento refere que, a 9 de Março, dias antes da fatídica madrugada do homicídio, “sem qualquer motivo que o justificasse”, Adriano provocou outro homem negro, dirigindo-lhe vários insultos.

“Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!”, disparou o açoriano de 24 anos, impassível diante dos apelos de pacificação.

“Mas tu pensas que és quem para me mandar relaxar??”, contrapunha a quem aconselhava calma, reiterando as ofensas: “Esses pretos pensam que eu tenho medo deles!! Venham!”.

A violência racista, vociferada enquanto batia “com o punho cerrado no próprio peito”, acabou por escalar na madrugada de 17 de Março de 2024, no exterior da discoteca B-Side, na ilha açoriana do Faial.

Segundo várias testemunhas ouvidas pelas autoridades, num primeiro momento o arguido atingiu Ademir com “um a três socos”, mas como este se conseguiu defender, e acabou protegido por outras pessoas que saíram em seu socorro, o agressor acabou por fugir. O assunto parecida resolvido, mas Adriano Pereira não desistiu do ataque.

“Pelas 5h51m, ao passar junto de Ademir Moreno, e sem que nada o fizesse prever, o arguido dirigiu-se-lhe determinada e rapidamente, impossibilitando qualquer reacção deste, e desferiu-lhe um forte murro na cabeça na área temporal esquerda”.

Os factos, reconstituídos pela acusação, precipitaram a queda de Ademir que, “desamparado”, bateu “com a parte de trás da cabeça no chão, perdendo a consciência”.

Assistido no local pelos Bombeiros Voluntários da Horta, o cabo-verdiano naturalizado português foi transportado para o hospital, onde viria a falecer na noite do dia seguinte. Tinha 49 anos, era casado com Lurdes Ferreira, companheira há quase duas décadas e meia, e pai de Luana Moreno, de 21 anos.

O desfecho trágico aconteceu “em consequência directa da conduta” de Adriano Silva Pereira, concluiu o Ministério Público, facto reconhecido pelo próprio agressor.

“O arguido assumiu ser o causador da morte, porque foi ele que desferiu o soco que veio a revelar-se fatídico”, reconhece o seu advogado, Elísio Lourenço, sublinhando que “a única argumentação da defesa tem a ver com uma tentativa permanente de afastar o ódio racial”.

Falando à imprensa, na passada terça-feira, 17, no final da segunda sessão do julgamento – que decorre desde 5 de Junho no Tribunal de Angra do Heroísmo, na ilha açoriana da Terceira –, o jurista reduziu o acto bárbaro do seu cliente a “uma rivalidade apenas, mais nada”, ainda que “haja componente de se tratar de brancos ou negros”.

A tese da defesa evidencia a urgência de criminalização do racismo – conforme reivindica a iniciativa legislativa cidadã lançada no final do ano passado –, e alimenta uma revoltante sensação de injustiça.

“A própria advogada receia que a acusação de ódio racial caia por terra”, lamenta Lurdes Ferreira, viúva de Ademir e mãe da sua filha única.

“Para mim, ele teria que apanhar no mínimo 20 anos”, considera ao Afrolink, enquanto recorda o marido como “uma pessoa carinhosa, amigo do amigo, sempre de bem com a vida”, e incapaz de viver em conflito.

“Sempre que via uma discussão, tentava separar”, conta Lurdes, lembrando que os relatos sobre aquela trágica madrugada indicam que interveio para acabar com uma confusão entre duas jovens mulheres. No caso, a alegada namorada do arguido e uma amiga, de quem teria ciúmes. 

“Quis tirar a vida a Ademir, movido por ódio racial”

O retrato amistoso e conciliatório de Ademir contrasta com a violência e crueldade atribuída nos autos a Adriano Silva Pereira.

“O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, e bem sabia que, ao atingir Ademir Moreno com um soco na têmpora esquerda estando este alcoolizado e sendo apanhado de surpresa, o mesmo cairia ao chão, desamparado e viria a bater com a cabeça no solo, como veio a suceder”.

Os factos, realça a acusação, revelam que Adriano “quis tirar a vida a Ademir (…) movido por ódio racial contra o mesmo, por ser afrodescendente, sentimento negativo que expressou ao longo da noite, nos momentos prévios ao fatal desfecho”.

Sem nunca medir as ofensas, repetidas qual mantra do orgulho racista – “Pretos do caralho! Vêm para aqui armar confusão! Vão para a vossa terra!” –, o arguido é agora apresentado pela defesa como alguém que ‘até tem amigos pretos’.

O esforço do advogado Elísio Lourenço de apagar o ódio racial evidenciado na acusação foi notório na sessão da passada terça-feira.

Segundo apurou o Afrolink, junto de uma pessoa que esteve em tribunal, a defesa do arguido tem recorrido a incontáveis “armadilhas” de retórica para transformar um crime hediondo num mero infortúnio.

“Basicamente, a estratégia tem sido pôr tudo em causa. O advogado tem insistido para saber se o empurrão [a Ademir] foi antes ou depois do soco, e se ele caiu por causa de um ou de outro. Claramente, quer dizer que foi um acidente: ele empurrou e, por acaso, o Ademir morreu”.

O jogo de palavras cai no absurdo de fazer de um “você” fundamento de absolvição. Para Elísio Lourenço, advogado do arguido, importa apurar se o seu cliente apregoou “Não tenho medo de pretos”, ou “Não tenho medo de vocês, pretos”, para determinar se o assassinato teve motivação racial.

A diferença apontada pelo jurista sugere que, na sua leitura, o racismo é medido pela quantidade. Como se agredir “estes pretos”, e não “todos os pretos”, fosse de algum modo abonatório.

Vigília por Justiça

A evidente e aviltante desvalorização do ódio racial tem sido contestada pela viúva de Ademir, que insiste no agravamento da acusação de homicídio qualificado por esse motivo.

“Irei recorrer a todas as instâncias que sejam possíveis, para que a Justiça seja feita”, sublinha Lurdes Ferreira, na vigília que se seguiu à segunda sessão do julgamento.

Presente também no arranque das audiências, a 5 de Junho, a técnica auxiliar de enfermagem lamenta o desinteresse e ausência da comunicação social, e lembra que Ademir era, para além de “trabalhador, bom pai, bom marido e bom cidadão”, o “grande amor” da sua vida.

Agora a “viver de fotografias e de lembranças”, conforme mencionou nessa intervenção nos Açores, a viúva partilhou, na conversa com o Afrolink, que encontra força para seguir em frente na filha.

“O que é que vai ser dela, quando eu não estiver por cá?”, inquieta-se, explicando que, aos 17 anos, Luana foi diagnosticada com uma encefalite autoimune. O diagnóstico, que “por milagre”, não lhe custou a vida, é acompanhado, desde então, por uma bateria quotidiana de medicamentos.

“Eu tenho uma incapacidade, a minha filha tem a incapacidade dela, e tem sido muito difícil sobreviver sem o apoio do meu marido”, nota Lurdes, explicando que as duas viagens de ambas aos Açores, para acompanhar o julgamento, foram oferecidas por uma pessoa amiga.

Com a próxima sessão marcada para 2 de Julho, a família ainda não sabe se conseguirá estar presente em tribunal. Mas, nos Açores ou à distância, só há um desfecho aceitável para este julgamento: “A pessoa que cometeu o homicídio tem de ser punida”. Sem atenuantes para o seu ódio racista. 

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Quem incendiou um autocarro, com o motorista dentro? Ouvimos a “verdadeira história”

Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

Retratados em noticiários televisivos e páginas de jornais como “os atacantes” do motorista da Carris que sofreu queimaduras graves durante os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, Pedro Quadros e Wilson Mendes tornaram-se “presas fáceis” de uma investigação que se assemelha a uma perseguição. Detidos preventivamente a 28 de Novembro de 2024, apresentaram, dias depois, a 9 de Dezembro, provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados. “Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro, enquanto Wilson ilustra bem as fragilidades do processo: “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”. Os dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si, foram libertados em Março e em Maio, mas continuam a ter a sua imagem presa ao ataque que, a avaliar pelas notícias, quase matou o motorista Tiago Cacais. Exigem, por isso, que se faça justiça, provando a sua inocência, e movendo uma acção contra o Estado. “O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, assinala Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

Pedro Quadros (à esquerda), e Wilson Mendes, em entrevista ao Afrolink

“Atacaram”, “atearam fogo” e “quase mataram”. Em diferentes notícias, na televisão e em jornais, Pedro Quadros e Wilson Mendes surgem como “criminosos” que, sem direito a presunção de inocência, são apontados como os responsáveis do acontecimento mais grave que marcou os protestos contra o assassinato de Odair Moniz, às mãos da Polícia.

O caso em que estão implicados deu-se na madrugada de 24 de Outubro de 2024, quando o motorista da Carris, Tiago Cacais, foi atacado em Santo António dos Cavaleiros, dentro do autocarro que conduzia.

A agressão agravou o tom da contestação que, desde o homicídio de Odair, um par de dias antes, percorria vários bairros da Área Metropolitana de Lisboa, com epicentro no Zambujal, onde a vítima residia, e na Cova da Moura, onde foi mortalmente baleada por um agente da PSP.

A revolta das periferias, impulsionada a partir de uma narrativa policial de criminalização de Dá, como era carinhosamente tratado, estendeu-se por dias, e precipitou uma espécie de nova ‘época de caça’ em bairros de habitação municipal .

“Quiseram mostrar trabalho, e acabaram por prender dois inocentes que culparam à toa”, aponta Pedro Quadros que, juntamente com Wilson Mendes foi preso, sob suspeitas de co-autoria material de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, e outros de incêndio, dano qualificado e omissão de auxílio.

A prisão preventiva, decretada cerca de um mês após o ataque ao motorista – mais concretamente a 28 de Novembro de 2024 – foi, desde o primeiro minuto, contestada por Pedro e Wilson, que, a 9 de Dezembro, através do seu advogado, apresentaram provas e testemunhas que os retiram do local do crime, para onde as autoridades decidiram que tinham de ser arrastados.

Até quem vive fora de Portugal, estava a ser implicado

As fragilidades do processo, de tão gritantes, levaram o Ministério Público a pedir a libertação dos dois amigos, com quem o Afrolink falou em momentos distintos, por estarem impedidos de comunicar entre si.

A conversa ajuda a perceber como as diligências de investigação se assemelham a uma campanha de perseguição, onde o cadastro de ambos os transformou em presas fáceis.

 “Chegaram [à minha casa] a perguntar mais pelo meu irmão, porque disseram que eu, ele, e mais uns oito indivíduos teríamos feito aquilo [atacado o autocarro e queimado o motorista]. Mas o meu irmão vive fora de Portugal há 2 anos”.

O relato de Wilson recua os acontecimentos à manhã de final de Novembro, em que, irrompendo pela sua casa adentro, um grupo de agentes parece ter agido sob um único comando: “É preciso deter sem olhar a quem”.

Já nos calabouços da Polícia Judiciária, de onde saiu para o Estabelecimento Prisional de Lisboa, até ser libertado no passado dia 26 de Maio, o jovem artista de 22 anos garante que ficou evidente, no interrogatório, que o seu caso estava a ser instrumentalizado.

 “[Os inspectores] acreditaram sempre em mim. Até me disseram que sabiam que não teria sido eu, só que, para me poderem ajudar, eu deveria dizer quem foi. Respondi: não sei, mas eu não fui”, conta Wilson.

Como saber mais se, na altura dos acontecimentos, estava forçado a permanecer em casa, em repouso, por ter o braço ao peito?

Condenados no espaço público, mesmo com provas em contrário

A imobilização temporária, confirmada por registos médicos, foi também corroborada por testemunhos de familiares, com quem o jovem vive, mas as diligências para analisar elementos ilibatórios terá sido repetidamente adiada.

A prioridade, tudo indica, era serenar os ânimos com detenções, que pudessem vingar o motorista, e demonstrar que haveria punição para quem destruiu património público e privado durante os protestos.

De outra forma, como entender que só quatro meses após ter sido decretada a sua prisão preventiva, Pedro, então a trabalhar como electricista, tenha conseguido que os seus registos telefónicos comprovassem o que alegou desde o início: que à hora do ataque ao motorista, estava a quilómetros do local do crime?

Mais do que nunca, importa repetir e insistir nos questionamentos, porque mesmo em liberdade, a sua condenação persiste, conforme revela uma das últimas notícias sobre o caso, embrulhada neste título: “Quase matam e são libertados”.

Inconformados com os julgamentos em praça pública, agravados pela divulgação das suas imagens, Pedro e Wilson prometem agir judicialmente contra os seus detractores.

“Estavam à procura de culpados, porque a população já estava a exigir respostas, e sentiram-se um pouco pressionados. Então, o trabalho que fizeram não foi bem pensado, não foi honesto, foi tudo muito à pressa”, reforça Pedro, de 24 anos, enquanto Wilson partilha um profundo e pesado sentimento de injustiça. “Sei que se o meu irmão estivesse em Portugal também iria dentro”.

As marcas desumanas da violência prisional

A dedução segue a lógica da contaminação por proximidade que parece guiar a investigação.  “Todos os que estamos ali no processo, já nos conhecemos há bastante tempo. Estudámos juntos desde a primária”, observa Pedro, que, à semelhança de Wilson, também sentiu o peso do julgamento de grupo no Estabelecimento Prisional de Lisboa.

“Se acontecesse alguma coisa, iriam dizer que fomos nós os dois”, nota Wilson, que amargou quase duas semanas na solitária, experiência comum ao amigo, tal como ele repetidamente tratado pelos guardas como incendiário.

Além de provocações e insultos verbais, ambos relatam situações de violência física, sobre as quais preparam também acções judiciais.

“No primeiro dia em que cheguei, disseram: se um guarda não aguentar contigo, vêm dois; se dois não aguentarem, vêm três; se três não aguentarem, vêm oito. E se oito não aguentarem, podes crer que vêm muito mais”.

Das palavras, acima descritas por Wilson, aos actos, a passagem pela cadeia ficou gravada por manobras diárias de intimidação, onde se multiplicam violências.

“Lá em baixo no castigo [solitária], não tem câmaras, não têm nada. Foi aí que já estavam quatro guardas à minha espera para me agredir. Puxaram-me [até arrancar] duas rastas, que ainda tenho em casa”.

As marcas da prisão vão, contudo, muito além dos ataques.

“Estar ali não é para nenhum ser humano. Vemos ratos a sair da sanita, baratas na comida… os guardas normalmente nem querem saber de nós”, aponta Wilson, relatando um destino de desumanização.

“Eu digo mesmo, numa música que escrevi, que os direitos de um ser humano acabam ali dentro. Mas pior ainda para nós, que fomos lá parar por uma coisa que não fizemos”.

Noutra composição, Wilson, que artisticamente faz do nome Willy assinatura, reflecte sobre o fardo familiar de uma perseguição judicial.

“Os meus pais sabiam que eu estava preso por uma coisa que não fiz. Eles tinham a certeza de que eu estava em casa porque eles estavam lá comigo. Isso deixou-me mais descansado”.

Ao mesmo tempo, sublinha Pedro, a certeza da inocência torna o processo especialmente danoso.

“É um bocado difícil andar na rua, e as pessoas ficarem mesmo aqui, no local onde eu moro, a olhar-me como se fosse um bandido, como se fosse um incendiário”. 

A verdadeira história que as provas corroboram, mas ainda não se reflecte em Justiça

Empenhado, tal como Wilson, a libertar-se de toda e qualquer suspeita relacionada com a madrugada de 24 de Outubro, Pedro revela que, da mesma forma que se apressou a disponibilizar os registos telefónicos, também sugeriu que se analisassem imagens de videovigilância.

“O autocarro tem câmaras, mas disseram que não dava para ver as imagens por causa do fumo”, nota o jovem electricista, lembrando que as suspeitas que recaíram sobre si tiveram como fonte exclusiva o testemunho do condutor da Carris.

“O motorista disse que me reconhecia, que me reconheceu, e que já me conhecia há algum tempo, porque eu entrava no autocarro sem pagar bilhete. Mas não é verdade, porque eu não o conheço de lado nenhum, e, se for preciso, a última vez em que andei de autocarro ainda era menor de idade”.

Aliás, se, de facto, existissem imagens incriminatórias, alguém acredita que o Ministério Público fosse pedir a libertação?

 “Acho que não há dúvidas quanto a isso”, defende Wilson, ainda hoje às voltas com a mesma pergunta: “Porquê comigo?”.

As memórias da prisão, ainda demasiado presentes, incluem a dor de, pela primeira vez ter visto o pai chorar. “Foi na visita. Quando ele chegou, meteu a mão na cabeça e disse que não estava a acreditar”.

A incredulidade arrastou-se por seis penosos meses de prisão, que Wilson quer deixar completamente para trás.

“Porque eu sei que não estive lá, o Pedro também não esteve lá, então só pode ter sido alguém a dizer [ao motorista]: olha, aponta para este, é mais fácil para podermos resolver o caso.”

Aqui chegados, como reverter os danos de uma acusação tão cruel?

“A justiça que me podem fazer agora é: da mesma forma que se puseram a dizer que eu estava culpado, é porem-se a dizer que estou inocente”, aponta Pedro, sem compreender como é que ainda não está completamente ilibado.

A par da localização do telemóvel, que o afasta do local do crime, o jovem de 24 anos refere que as comunicações efectuadas na madrugada em que está implicado, comprovam que soube do incêndio ao autocarro através da mãe e de um amigo.

Do mesmo modo, Wilson refere que, à hora dos acontecimentos, estava a trocar mensagens, facilmente rastreáveis.

“Se descobriram os verdadeiros culpados ou não, isso, no fundo, não me interessa. Eu quero é provar a minha inocência”, diz, reforçando que esse resultado exige que se conheça “a verdadeira história”. Por isso, decidiu falar com o Afrolink.

“O mundo sabe o que o motorista contou. Neste caso, acho que foi o que lhe disseram para contar, para tentar arranjar o culpado”, reitera Wilson, demonstrando uma empatia que nunca lhe foi dirigida. “Eu entendo a parte dele. Mas se realmente quer arranjar justiça, não é culpando qualquer um. Não é assim que é feita justiça”.

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Sem nós não há justiça: Cláudia Simões continua condenada

Cerca de 1 milhão e 200 mil pessoas votaram num partido abertamente racista e xenófobo nas últimas Legislativas, transformando-o na terceira força política em Portugal. Os alarmes deveriam ter soado bem alto, mas, em vez disso, várias vozes se apressaram a absolver o eleitorado racista, justificando as suas escolhas com “zangas”, “ressentimentos” e “descontentamentos”.  Como se houvesse contexto capaz de tornar aceitável e até justificável o racismo e a xenofobia. Ou como se as pessoas escolhessem propostas racistas inocentemente e sem intenção. Afinal, garante o primeiro-ministro, em Portugal "o ódio e as questões raciais não têm uma natureza de preocupação”. Facto é que a aparente facilidade com que a extrema-direita mobiliza racistas e xenófobos no país contrasta com a dificuldade que o Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e a Xenofobia (GAC) enfrenta para juntar 20 mil assinaturas em defesa da criminalização do racismo. O Afrolink deixa-lhe com o essencial desta iniciativa do GAC, percorrida a partir dos esclarecimentos dos juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, que integram a campanha.

O Tribunal da Relação reverteu parcialmente, no passado dia 30 de Abril, a decisão do Tribunal de Sintra relativa ao caso de violência policial contra Cláudia Simões, condenando o agente da PSP Carlos Canha por ofensas à integridade física agravadas, e os seus colegas Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder. A decisão peca, contudo, por insuficiente, assinala, em carta aberta, o Movimento Negro em Portugal (MNP), lembrando que “Cláudia Simões continua condenada e a ver negado o seu direito de legítima defesa perante as agressões de que foi vítima na paragem de autocarro”. Mais: “Embora o Tribunal da Relação tenha, em certa medida, repreendido o coletivo de juízes presidido por Catarina Pires, esta decisão não comporta quaisquer consequências para uma juíza” que, segundo sabemos, irá também julgar o caso de homicídio de Odair Moniz. “Isto não é justiça”, sublinha o MNP, num posicionamento subscrito por mais de 40 colectivos, e que o Afrolink subscreve e publica na íntegra.

Carta Aberta: Sem nós não há justiça: Cláudia Simões continua condenada

A 30 de abril, o Tribunal da Relação reverteu parcialmente a decisão do Tribunal de Sintra quanto ao caso de violência policial contra Cláudia Simões. Condenou Carlos Canha por ofensas à integridade física agravadas e os seus colegas Fernando Rodrigues e João Gouveia por abuso de poder. Foi, sem dúvida, com muita emoção, mas sem ilusões, que recebemos esta decisão, apesar de tudo histórica.

Se o Tribunal de Sintra fez da vítima culpada e do agressor inocente, reproduzindo, uma vez mais, o racismo institucional no sistema de justiça português, a decisão do Tribunal da Relação acabou apenas por repartir a culpa. Ou seja, embora Carlos Canha e os colegas tenham sido finalmente responsabilizados pelas agressões durante a viagem aterrorizadora no carro da PSP, Cláudia Simões continua condenada e a ver negado o seu direito de legítima  defesa perante as agressões de que foi vítima na paragem de autocarro: isto não é justiça. Mais, o racismo continua dado como não provado e os polícias continuam no exercício das suas funções.

Pese embora o Tribunal da Relação tenha, em certa medida, repreendido o coletivo de juízes presidido por Catarina Pires, esta decisão não comporta quaisquer consequências para uma juíza que descredibilizou e humilhou continuamente Cláudia Simões no decorrer das sessões de julgamento. E, como se tudo isto não bastasse, sabemos, por ora, que será a mesma Catarina Pires a julgar o caso de homicídio de Odair Moniz.

Ainda que a decisão do Tribunal da Relação tenha restituído, em parte, a dignidade pública a Cláudia Simões e à sua filha – que tiveram a sua vida esmagada por cinco anos de violência –, o Estado não é capaz de descriminalizar uma mulher negra periférica e de se responsabilizar pela violência racista que inflige. E é por isso que a coragem e persistência de famílias como a de Cláudia Simões e do movimento social são essenciais: construamos solidariedade porque sem nós não há justiça!

Coletivos subscritores

Africandé Associação

Afrolink

Afrontosas

Associação Cavaleiros de São Brás

Associação Cultual Nêga Filmes

Associação Juvenil Esperança

Associação Mural Sonoro

Braga Fora do Armário

BUALA

Coletiva Corpos Insubmissos

Coletivo Afreketê

Coletivo Consciência Negra

Coletivo Feminista de Sintra

Comité de Solidariedade com a Palestina

Comitê Popular de Mulheres em Portugal

Dentuzona

Djass- Associação de Afrodescendentes

Feira Afro Empreededora do Porto

Femafro - Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal

Grupo de Ação Revolucionária Antifascista

GTO LX

HuBB- Humans Before Borders

Kilombo - Plataforma de Intervenção Anti-Racista

Mbongi 67

MNE - Mulheres Negras Escurecidas

Nomada Notebooks

NOSSA FONTE – Associação de Intervenção e Difusão Cultural

Núcleo Antifascista de Barcelos

OVO PT | Observatório de Violência Obstétrica em Portugal

Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia

Parents for Peace

Plataforma Geni

Refugees Welcome Portugal (On The Road - Associação Humanitária)

SaMaNe - Saúde das Mães Negras e Racializadas

SOS RACISMO

Stop Despejos

Teatro GRIOT

The Blacker The Berry Project

UNA - União Negra das Artes

Vida Justa

Vozes de Dentro

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