HISTÓRIAS
Odair Moniz: depois da faca invisível, entra em cena a sua "astúcia" fatal, agravada pela 'ameaça' do crioulo
Por esta altura, há exactamente um ano, o país reagia, em sobressalto, a uma onda de protestos nas periferias da Área Metropolitana de Lisboa, motivada pelo assassinato de Odair Moniz, às mãos de Bruno Pinto, agente da PSP. O crime, prontamente justificado por narrativas racistas, assentes na criminalização da vítima e na defesa da Polícia, evidenciou, mais uma vez, a política de impunidade que grassa nas forças de segurança. Aliás, não fossem os vídeos captados pelos moradores da Cova da Moura – onde Odair Moniz foi mortalmente baleado –, e talvez ainda estivéssemos a ouvir testemunhos sobre como a vítima empunhou uma faca contra o agente, forçando-o a disparar em legítima defesa. Não uma, mas duas vezes, sublinhe-se, não fosse Odair feito à prova de bala. Assassinado a 21 de Outubro de 2024, Dá, como era carinhosamente tratado, deixou viúva, dois filhos, e uma comunidade enlutada. Todos pedem Justiça. Todos pedimos Justiça, e ela passa pelo Tribunal de Sintra, onde o homicídio começou a ser julgado, na última quarta-feira, 22 de Outubro. Amanhã, 29, há mais.
Por esta altura, há exactamente um ano, o país reagia, em sobressalto, a uma onda de protestos nas periferias da Área Metropolitana de Lisboa, motivada pelo assassinato de Odair Moniz, às mãos de Bruno Pinto, agente da PSP. O crime, prontamente justificado por narrativas racistas, assentes na criminalização da vítima e na defesa da Polícia, evidenciou, mais uma vez, a política de impunidade que grassa nas forças de segurança. Aliás, não fossem os vídeos captados pelos moradores da Cova da Moura – onde Odair Moniz foi mortalmente baleado –, e talvez ainda estivéssemos a ouvir testemunhos sobre como a vítima empunhou uma faca contra o agente, forçando-o a disparar em legítima defesa. Não uma, mas duas vezes, sublinhe-se, não fosse Odair feito à prova de bala. Assassinado a 21 de Outubro de 2024, Dá, como era carinhosamente tratado, deixou viúva, dois filhos, e uma comunidade enlutada. Todos pedem Justiça. Todos pedimos Justiça, e ela passa pelo Tribunal de Sintra, onde o homicídio começou a ser julgado, na última quarta-feira, 22 de Outubro. Amanhã, 29, há mais.
Foto do movimento Vida Justa
Não há dúvidas sobre a identidade do homicida: Bruno Pinto, agente da PSP, atingiu Odair Moniz com dois tiros, na madrugada de 21 de Outubro de 2024.
Um ano depois, na última quarta-feira, 22, o polícia começou a ser julgado no Tribunal de Sintra, e, repetindo um já estafado argumento entre as forças de segurança, optou por fazer do ataque à vítima a sua defesa.
Além de insistir na descrição de Odair como uma pessoa "astuta", que ia oscilando entre a passividade e a agressividade, o arguido sugeriu que o cabo-verdiano teria algum domínio de artes marciais, habilidade que, na sua ficção dos acontecimentos, inviabilizou os esforços para o imobilizar sem recurso à arma de fogo. “Parecia que o bastão lhe fazia cócegas", declarou.
Como se não bastasse, o agente juntou ao retrato de indomabilidade de Odair elementos que parecem retirados de um mau filme de acção: o segundo disparo é explicado pela alegada ausência de efeitos do primeiro.
Qual "duro de parar", o cabo-verdiano não só terá permanecido em pé após o tiro inicial, como, relatou o polícia, parecia disposto a avançar sobre si.
Para completar o enredo do perigoso agressor, algures no testemunho, Bruno Pinto acusou Odair de proferir ameaças contra si e o seu colega, inclusivamente em crioulo cabo-verdiano, língua que assumiu desconhecer.
Num dia em que também se ouviu Ana Patrícia, viúva da vítima, Rui Machado, o outro agente envolvido nos trágicos acontecimentos, e uma moradora da Cova da Moura, ficou evidente que a tese da legítima defesa vai ser explorada desavergonhada e despudoradamente.
De tal forma que até a faca supostamente empunhada por Odair, porém invisível nos vídeos, reaparece nas convicções do arguido, entre inúmeras contradições.
O julgamento, marcado ainda pelas perguntas absolutórias do colectivo de juízes, continua amanhã, 29.
Até lá, o Afrolink partilha oito notas extraídas do primeiro dia, onde o acesso à sala de audiências se fez sob o filtro de uma lista de ‘personas non gratas’.
Nota 1: Proibido entrar! O mistério dos nomes banidos
Levo o protocolo bem estudado: chego já com o cartão de cidadão em mãos, escancaro a mala para a devida verificação, e, acto contínuo, atravesso o detector de metais. É então que me apercebo da novidade: em vez de se limitar a confirmar a minha identidade, a equipa de segurança do tribunal verifica se o meu nome está “na lista”. Estranho o procedimento, quero questionar, mas mantenho o foco: o acesso à sala de audiências onde vai ser julgado o homicídio de Odair Moniz. Aliviada por não ter sido barrada, guardo a pergunta para um melhor momento, que chega depois de almoço. Como quem entretém o tempo, pergunto: “Olhe, esta manhã, quando apresentei o meu cartão de cidadão, reparei que consultaram umas folhas, para verificar se o meu nome estava incluído. Porquê?”. A resposta adensa a minha inquietação: “Se estivesse nessa lista, não a poderíamos deixar entrar”, explicaram-me. Cada vez mais intrigada, perguntei: o que as pessoas listadas fizeram para ser banidas? Fiquei sem resposta.
Nota 2: Conhecem o caso Elson Sanches (Kuku)?
Quinze anos separam os assassinatos de Elson Sanches (2009) e Odair Moniz (2024), ambos no município da Amadora e na sequência de perseguições policiais, encerradas com disparos fatais. Nas duas situações, envolvendo agentes da PSP, as vítimas surgem conveniente e presumidamente armadas: vale tudo para justificar o recurso à lei da bala. No caso de Elson, também conhecido por Kuku, o agente relatou ter visto um objecto metálico brilhante, e ouvido um som semelhante ao manuseio de uma arma, antes de baleá-lo à queima-roupa. O tribunal não conseguiu provar a alegação – tornando o disparo injustificado e esvaziando a tese de legítima defesa –, mas a ausência de testemunhas no momento do crime, aliada à criminalização da vítima e falta de iluminação no local, conspiraram no sentido da absolvição do polícia. Ainda que Kuku fosse apenas um miúdo de 14 anos, e do outro lado estivesse um agente treinado e de quase 40 anos, a juíza entendeu que naquelas circunstâncias a decisão policial dificilmente poderia ser outra. E nem o facto de o disparo ter sido efectuado a escassos centímetros da cabeça de Kuku, ao jeito de uma execução, levou a magistrada a reavaliar o que classificou de “infeliz evento”. Poderá a narrativa da “legítima defesa” repetir-se no caso de Odair Moniz, tendo em conta que também aqui existe uma putativa arma – no caso branca – e todo um argumentário que criminaliza a vítima? O advogado José Semedo Fernandes, que representa a família de Odair, aproveitou as alegações iniciais do julgamento para lembrar as semelhanças deste processo com o de Kuku, sublinhando a principal diferença: desta vez temos imagens da intervenção policial. Muitas foram captadas por moradores munidos de telemóveis e, não fosse a sua pronta disseminação nas redes sociais, talvez tivéssemos um comunicado sobre a avaria das câmaras de videovigilância instaladas no local, da mesma forma que tivemos um auto de notícia da PSP com uma faca que afinal não o era. “A defesa acredita que aqui a verdade vai ser encontrada, e que o arguido será condenado”. Assim seja!
Nota 3: Procurador investido em revelar os factos, colectivo de juízes parece apostado em mascará-los com teorias absolutórias
Sabemos quem matou Odair Moniz. Chama-se Bruno Pinto, é agente da PSP e está a ser julgado por homicídio. Sabemos também que, ao contrário do que a Polícia começou por alegar, a vítima não estava armada quando foi baleada. Sabemos ainda que o outro agente que se encontrava no local, Rui Machado, estava munido de uma lata de gás pimenta, que poderia ter usado para imobilizar Odair, mas optou por não o fazer. “Seis minutos é a linha de tempo que está aqui a ser analisada”, lembrou, mais do que uma vez, o procurador Pedro Lopes Pereira, colocando o foco nas decisões que determinaram os factos ocorridos entre as 5h25 e as 5h31 de 21 de Outubro de 2024. “Retrospectivando: considera proporcional que se tenha chegado a esta situação?”, questionou o representante do Ministério Público, recordando que na origem da intervenção de Bruno Pinto esteve um eventual crime de desobediência, e outro de condução perigosa. O procurador quis igualmente saber porque é que o agente disparou duas vezes contra Odair – afinal, se o objectivo era imobilizar a vítima, não estaria já imobilizada com o primeiro tiro? Pedro Lopes Pereira sublinhou ainda que a dupla de agentes já estava à espera de reforços policiais quando se deu a confrontação com Odair Moniz, e questionou-os sobre a não utilização do gás pimenta. Em separado, o arguido Bruno Pinto e a testemunha Rui Machado repetiram a mesma ficção dos acontecimentos: por um lado, naquela madrugada o vento desaconselhava o uso do gás pimenta; por outro lado, o manuseio do spray tornou-se desafiante perante a atitude da vítima. Nos antípodas da intervenção do procurador, o colectivo de juízes pareceu estar mais interessado em oferecer ao arguido argumentos para uma legítima defesa, em vez de o confrontar com a consequência das suas escolhas. Desde logo, a insistência na falta de formação da Polícia, nomeadamente em carreira de tiro, sugere que Bruno Pinto tenha sido vítima de uma impreparação estrutural. Do mesmo modo, quando se questiona “Conformou-se com este resultado?”, “Voltaria a fazer o mesmo?”, ou “Alguma vez desejou este resultado?”, parece que se está a forçar uma reparação da imagem do agente, apresentado com um profissional bem intencionado, a quem um azar bateu à porta. “Infeliz evento”, como no caso de Kuku? As manobras de absolvição incluíram mesmo uma analogia com o futebol: perante a explicação do arguido para a trajectória fatal dos seus disparos – quando os mesmos supostamente foram direccionados para os membros inferiores da vítima –, o juiz Carlos Camacho lembrou-se de sugerir que há um movimento semelhante no desporto-rei. Resumidamente: tal como o agente inclina o torso ligeiramente para trás quando dispara, também futebolista o faz para ganhar impulso quando remata.
Nota 4: Odair culpado por ser uma pessoa negra...perdão, astuta!
Armado ou desarmado, encorpado ou franzino, alcoolizado ou sóbrio, com ou sem cadastro, aparentemente pouco importa. Se de um lado estiver um elemento das forças de segurança e, do outro, um homem negro, este transforma-se automaticamente num alvo a abater. A presunção da culpa negra está de tal forma instituída nas polícias que, à falta de provas, aposta-se tudo na construção de uma história de criminalidade que transforme a vítima em agressor. O caso de Odair não é excepção. Repetidamente descrito pelo agente que o assassinou como uma “pessoa astuta”, o cabo-verdiano foi apresentado em tribunal como um perigo ambulante, que ia atropelando uma série de pessoas, e chegou mesmo a ameaçar de morte a dupla da PSP. Para a narrativa soar mais credível, Bruno Pinto, que assume não saber crioulo, expressa o que terá ouvido de Odair: “Mi ta mata”, ou qualquer coisa do género. “Ele alterava de personagem: passivo-agressivo, passivo-agressivo”, apontou o agente que o matou, estendendo o juízo incriminatório à generalidade da Cova da Moura. “O bairro oferece protecção”, observou Bruno Pinto no seu depoimento, garantindo que na madrugada fatídica efectuou os primeiros disparos para o ar em resposta a um avanço popular, alegadamente instigado pelos pedidos de ajuda de Odair. “O que é que fiz, o que é que se passa?”, terá sido um dos ‘alertas’ a soar rua acima, ao encontro de um grupo que, segundo o arguido, está ligado à “criminalidade organizada e violenta”. Noutra referência aos perigos da Cova da Moura, o agente adiantou: “Quando passamos por eles não cometem nenhum crime, assobiam”. Já Odair, além da atitude astuta, ficou ‘marcado’ por um suposto domínio de artes marciais. “Ele mantém sempre uma boa postura”, notou o arguido, atribuindo o equilíbrio à prática desportiva.
Nota 5: Dúvidas razoáveis - faca na imaginação, tiro à queima-roupa
“Num primeiro momento, o arguido é peremptório a dizer que Odair Moniz estava munido de uma faca. Depois refere que não sabe dizer a 100% se havia uma faca ou uma lâmina”. A incoerência, apontada ao agente da PSP, é assinalada pelo procurador que, já depois de visionadas as imagens de videovigilância em tribunal, confronta Bruno Pinto: afinal, havia ou não havia uma faca? Hesitante, o arguido devolve afirmativamente: “Eu agora tenho a certeza”. Questiono-me: na altura, não teve a mesma convicção? Então porque é que disparou contra uma pessoa desarmada? Mais: se, de facto, em algum momento suspeitou da existência de uma faca, não seria lógico assumir que, logo após os disparos, procurasse localizar e neutralizar a arma? “Deveria tê-lo feito, mas não era a minha preocupação”, afirmou, igualmente titubeante perante uma hipótese colocada pelo advogado José Semedo Fernandes. “Garante que o tiro à queima-roupa não foi disparado no momento em que estava debruçado, em cima de Odair?”. Antes da resposta do arguido, o contexto: apesar da insistência na tese da indomabilidade da vítima, há pelo menos um momento em que a intervenção policial consegue conter Odair, que fica de bruços sobre um carro e de costas para Bruno Pinto, permitindo a este ganhar alguma vantagem física. Terá sido nesta situação, já com o cabo-verdiano manietado, que o agente disparou o primeiro tiro? “Acredito que não”, atira o homicida, insistindo na superior capacidade de Odair para resistir. “Tanto no primeiro como no segundo tiro, ele encontrava-se a vir para cima de mim, e eu protejo-me”. Facto: aquando do primeiro tiro, não se vê, nas imagens, nenhum clarão. Como é que com um disparo à queima-roupa, o agente avança para um segundo, sob a alegação de que não tinha a certeza de ter acertado o primeiro? Afinal, queria matar ou manietar?
Nota 6: Mais dúvidas razoáveis – arma no coldre, rádio no chão
Na noite do homicídio de Odair Moniz, Bruno Pinto fazia a patrulha com Rui Machado, agente que está a ser acusado de falso testemunho por, juntamente com outro PSP, ter afirmado que viu um punhal por baixo do corpo de Odair, algo que se comprovou ser mentira. Por causa deste processo, a presença de Rui Machado no julgamento de Bruno Pinto ficou circunscrita a questões não relacionadas com a arma branca. Feito este enquadramento, há a destacar dois momentos do seu testemunho. O primeiro prende-se com as armas que usou, o segundo tem que ver com os tiros que mataram Odair. Vamos por partes: assim que saiu da viatura, empunhou a arma de fogo em direcção a Odair, para o intimidar, mas acabou por recolhê-la, quando entendeu que não era necessário manter essa abordagem. “Não achou necessário porquê?”, questionou o procurador, baralhando o agente. “Pode repetir a pergunta?”. Na resposta, Rui Machado secundou a leitura do autor dos disparos: “Inicialmente [Odair] sai do carro com um comportamento passivo. Embora não esteja a colaborar connosco, não partiu logo para a agressão”. Prosseguindo com os pedidos de esclarecimento, o procurador indagou: em vez da arma de fogo, o agente optou pelo bastão extensível, e nem tocou no gás pimenta que transportava, será que não lhe passou pela cabeça usar o spray, ou entendeu que as condições não eram favoráveis à sua utilização? “Ambas as duas”, respondeu, escancarando mais uma incongruência. Avancemos para os tiros: ao mesmo tempo que Rui Machado relatou a agressividade de Odair e dificuldade em manietá-lo, ficámos a saber que desperdiçou uma oportunidade para o conter – em prol de um objecto que poderia recuperar depois. Ficámos igualmente a saber que o que lhe ocorreu fazer numa situação de confronto físico entre a vítima e Bruno Pinto, foi dar costas à altercação. “Estou com o bastão, dou um empurrão, e ele [Odair] embate contra a parte traseira de uma viatura, desfiro uma bastonada, quando vou para desferir a segunda levo o meu braço atrás, o meu rádio saltou e caiu atrás de mim, cerca de um metro e pouco. Virei-me de costas para os dois. O meu colega continuava na altercação, digamos assim, com Odair”. Conta o agente que foi nesse instante, em que estava de costas, que ouviu mais um tiro, o terceiro da noite – dois tinham sido para o ar, e este foi primeiro a acertar na vítima. “Não sabia quem tinha sido atingido, nem quem tinha efectuado o disparo: se tinha sido o meu colega, o Odair, ou um disparo para o ar. Viro-me para os dois, primeira imagem que tenho é o Odair com a mão esticada na cabeça do meu colega numa posição de agressão. O meu colega meio que recuava, com a arma apontada na direcção das pernas do Odair. Dirijo-me na direcção dos dois, e quando estou a chegar há mais um disparo, e o Odair caído no chão. Naquele momento não me apercebi do sucedido, estava completamente sob o efeito túnel”. Foi aí que Rui Machado ainda carregou sobre a vítima com uma bastonada, porque, garante, não conseguiu travar o impulso que já levava. O testemunho torna bastante plausível a hipótese aventada por José Semedo Fernandes, de que o primeiro tiro a atingir Odair aconteceu quando o mesmo estava imobilizado, encostado a um carro. É, contudo, ao segundo tiro que o cabo-verdiano cai sobre o asfalto, de barriga para baixo, embora tenha aparecido posteriormente de barriga para cima, circunstância que levou a juíza presidente do colectivo a questionar: “Foi por via da sua acção que [a vítima] acabou por ficar de barriga para cima?”. “Não lhe consigo dizer.”
Nota 7: O grito de Odair – “Sou doente” – e a mão ferida que as algemas policiais queriam ignorar
Os agentes da PSP Bruno Pinto e Rui Machado coincidem no retrato da resistência oferecida por Odair Moniz. “Sou doente, sou doente. Arma não, bastão não”, terá vociferado a vítima, que começou por levantar os braços, tornando assim visível a ligadura que lhe cobria uma das mãos. “Chegou a explicar que tinha um ferimento?”, perguntou o advogado José Semedo Fernandes, numa alusão a uma queimadura que, desde Maio, mantinha Odair de baixa médica. Não tendo a vítima explicado, questiono-me se não seria lógico assumir que a referência a uma doença pudesse estar relacionada com a mão que a vítima fez questão de elevar. Estaria Odair a recusar ser algemado por ser “uma pessoa astuta”, como tantas vezes repetiu o agente que o matou, ou por estar a recuperar de um ferimento que as algemas iriam agravar? A ausência de diálogo entre os agentes e a vítima parece ter marcado os seis minutos de interacção que tiveram, dominados, no testemunho dos PSP, por ameaças. “Vou-vos matar filhos da p***”, terá avisado Odair que, mesmo com a mão ligada e sob o efeito de álcool e estupefacientes, permanecia, aos olhos dos agentes, incapaz de manietar. (os exames toxicológicos indicaram que tinha no sangue de 1,98 gramas de álcool por litro, e uma concentração de canabinóides de 1 nanogramas por mililitro).“A adrenalina dele estava muito alta devido à perseguição, à fuga e por ter embatido”, numa série de carros antes de parar, considerou Rui Machado, insistido na ficção –“Tentámos de tudo”–, mas assumindo que ignoraram o ferimento de Odair. Afinal, conforme declarou em tribunal, estavam a tentar algemá-lo “na mão que desse”. Já Bruno Pinto aproveitou todas as oportunidades para salientar o quão perigosa é a Cova da Moura. “Ali optei pela minha vida e pela do meu colega”. Para Odair restou a morte.
Nota 8: Regressar da morte – o pesadelo de uma família destroçada
“A vida mudou muito?”. Diante da juíza que preside ao colectivo de juízes, Ana Patrícia Moniz, viúva de Odair, não hesitou um segundo antes de responder: mudou “bastante”, mudou “tudo”. Incapaz de pregar olho desde o assassinato do seu “Dá”, a ajudante de cozinha, lembra que ele era “o pilar da casa”, que “nunca deixava faltar nada”. Como se não bastasse o pesadelo que representa a perda irreparável do companheiro de 23 dos seus 37 anos de vida, ‘Mónica’, como também é conhecida, recordou em tribunal que a violência policial contra a sua família não acabou com o homicídio. “Rebentaram-me a porta, ponho um armário [atrás da porta] para tentar dormir”, relatou a viúva, e mãe dos dois filhos de Odair. A receber tratamento psiquiátrico desde Novembro do ano passado, a ajudante de cozinha partilha os danos emocionais que observa também nos filhos, de 21 e quatro anos. “O mais velho está com depressão, não sai do quarto”, lamenta, enquanto descreve como o mais novo corre para o comando da televisão, desligando-a, de cada vez que surge uma notícia sobre o pai. “Ainda hoje pergunto-me o que aconteceu com o meu marido”, sublinha a viúva, que passou a andar movida por uma bateria de medicamentos: anti-depressivos, calmantes, SOS para ansiedade. Perdas somadas, a família reclama 200 mil euros de indemnização. Pague-se! Faça-se Justiça.
Junte-se à Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros na Educação
“Por uma Educação com Justiça, Representatividade e Compromisso Ético”, a Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros propõe-se “mapear e chegar a todas as professoras, professores, educadoras e educadores negros que actuam em Portugal — no continente e nas ilhas — criando um espaço de conexão, escuta e acção colectiva”. O propósito ganha vida online, a partir de um repto à participação, que o Afrolink divulga.
“Por uma Educação com Justiça, Representatividade e Compromisso Ético”, a Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros propõe-se “mapear e chegar a todas as professoras, professores, educadoras e educadores negros que actuam em Portugal — no continente e nas ilhas — criando um espaço de conexão, escuta e acção colectiva”. O propósito ganha vida online, a partir de um repto à participação, que o Afrolink divulga.
“Se és uma educadora, educador, professora ou professor negra/o a actuar em Portugal, preenche o formulário de mapeamento e junta-te a esta rede nacional”, apela a educadora, formadora e consultora Georgina Angélica, promotora da iniciativa, e criadora do projeto Educar com Amor e Consciência.
Além de “mapear e conectar docentes negras e negros em Portugal, em todos os níveis de ensino”, a Rede pretende “valorizar saberes, experiências e trajectórias de profissionais negras e negros no campo educativo”, bem como “partilhar desafios e construir soluções práticas e colaborativas para uma educação anti-racista, plural e representativa”.
As ambições do projecto passam ainda por “influenciar políticas públicas, apresentando ideias e propostas concretas que promovam a justiça racial na educação”; meta que se articula com a necessidade de “sensibilizar decisores políticos e instituições para a urgência de garantir equidade na formação, contratação e progressão de profissionais negras e negros”.
A missão da Rede inclui ainda criar as condições para a sua integração “como um órgão consultivo permanente, que contribua activamente para o desenvolvimento de políticas educativas mais justas, inclusivas e coerentes com a diversidade da sociedade portuguesa”.
Mais informações Rede Nacional de Profissionais Negras e Negros na Educação-Mapeamento e Colaboração - Google Forms
O racismo pelo olhar de uma jovem: “Tornei-me negra quando cheguei a Portugal”
Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.
Valdeth Dala nasceu e cresceu em Angola, onde viveu até 2023, quando se mudou com a família para Portugal. A experiência confrontou-a com a brutalidade do racismo, realidade sobre a qual a jovem de 19 anos reflecte neste texto, inspirada no caso de Maria Luemba.
Texto de Valdeth Dala
Quando eu me mudei com a minha família para Portugal em 2023, eu percebi que o racismo não só existe, como é uma questão muito séria. Percebi que a realidade é ainda mais brutal do que qualquer filme representa. Percebi que ainda vivemos num mundo em que o negro é discriminado, agredido, menosprezado, e julgado simplesmente por ser negro.
Nasci e cresci em Angola, um país com uma população maioritariamente negra, onde o racismo é arquivado em livros de História, e tido apenas como parte de um passado inconveniente.
Ao longo da minha adolescência, comecei a acompanhar filmes que abordavam, retratavam, denunciavam e contestavam o racismo no período da escravidão, no período colonial e pós-colonial, como por exemplo: “12 Anos Escravo”, “As Serviçais”, “Mandela: Longo Caminho Para Liberdade”, “O Ódio que Semeias”, “Foge”.
Mas, nenhum filme me preparou para a realidade que encontrei cá em Portugal, onde, no dia 12 de Junho, Maria Luemba, uma menina angolana de 17 anos, foi encontrada morta em sua residência, numa vila perto de Aveiro.
As autoridades apontaram para um suicídio, porém os familiares contestam essa versão. Há, inclusivamente, suspeitas de homicídio, implicando um vizinho com desavenças anteriores com a família.
Esse caso gerou grande comoção junto da comunidade negra – mas não em toda a sociedade –, e culminou num protesto realizado no último domingo, 29 de junho.
Mas o que o caso Maria Luemba tem que ver com racismo? Responderei a essa questão nos parágrafos seguintes.
A forma como a investigação à morte de Maria Luemba começou por ser conduzida levanta dúvidas sobre a atuação policial, com fortes indícios de racismo institucional.
Aliás, desde o início houve falta de informações por parte da polícia, remetida ao silêncio.
Por outro lado, a imprensa só passou a cobrir o caso após a mobilização por parte de coletivos negros e protestos organizados nas redes sociais.
Infelizmente, o caso Maria Luemba não é único. São várias as pessoas negras agredidas, oprimidas e assassinadas em Portugal.
Odair Moniz, cabo-verdiano de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição na Cova da Moura, em outubro de 2024. Cláudia Simões, mulher angolana, foi agredida violentamente por elementos da PSP na Amadora, em janeiro de 2020. Elson Sanches, conhecido como “Kuku”, era um jovem português negro de 14 anos e foi morto a tiro por um agente da PSP durante uma perseguição no antigo bairro de Santa Filomena, em 2009. Luís Giovani Rodrigues, jovem cabo-verdiano de 21 anos, morreu na sequência de uma agressão racista em Bragança, ocorrida em dezembro de 2019.
É enorme a lista de pessoas cujas mortes, opressões, agressões e abusos sofridos não recebem a devida atenção por serem negras, imigrantes ou de contextos socioeconómicos desfavorecidos.
Nos últimos dias, ouvi de um amigo que o sistema já era do jeito que é mesmo antes de eu nascer, e que tentar mudá-lo ou ir contra ele é como tentar remar contra uma maré, que sempre acaba por vencer. A seguir, acrescentou: “É assim, só nos resta aceitar”.
Ele não é a primeira pessoa que eu ouço a dizer isso, e sei que não é a única pessoa a pensar assim. Na verdade, são várias as pessoas que pensam e dizem: “O racismo sempre existiu e sempre existirá”, ou então “O racismo sempre existirá na sociedade, o que nos resta é nos conformarmos com isso”.
Mas como posso me conformar com um sistema que vê a minha cor como arma?
Assim como Grada Kilomba escreveu “me tornei negra quando cheguei aos EUA”, eu também posso afirmar que me tornei negra quando cheguei a Portugal. Foi necessário sair do meu país, da minha bolha, para entender que o racismo não é passado — é presente, mas não pode ser futuro.
Não posso me conformar com um sistema que continuamente agride, oprime e mata pessoas como eu. Poderia ser eu ou a minha irmã no lugar da Maria Luemba. Poderia ser a minha mãe no lugar da Claúdia Simões. Poderia ser o meu irmão no lugar de Elson Sanches. Poderia ser o meu pai no lugar de Odair Moniz. Então, eu digo não. Não posso simplesmente aceitar a falência do sistema. Não posso simplesmente me conformar com uma sociedade racista.
O que está em causa não são apenas casos de mortes violentas, agressão, opressão de pessoas negras, mas sim a forma como o sistema reage – ou se cala – quando a vítima não se enquadra no perfil de “vítima ideal” construído pela sociedade.
Que a justiça por todas as pessoas aqui mencionadas — e também por aquelas que não foram mencionadas — seja feita. Que o sistema mude e melhore, para que as próximas gerações não tenham que lutar mais essa luta.
Faço do sonho de Martin Luther King Jr. meu sonho.
“Tenho um sonho: que os meus quatro filhos um dia viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de pele, mas pelo seu caráter.” Martin Luther King Jr.
Quem tem medo de criminalizar o racismo? Até tu, aliado?
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Protestam nas ruas, sempre com o hashtag do momento a tiracolo para poses instagramáveis. Ocupam o espaço mediático com tiradas de eloquência, demasiadas vezes confundidas com originalidades de pensamento. Não perdem uma ocasião para falar de como se integram na vida dos “bairros” – apadrinhados por cachupa e amadrinhados por batukadeiras –, nem se coíbem de usar as vidas negras que observam para teorizar sobre o que (lhes) faz falta. Dizem-se aliados da luta anti-racista, mas revelam-se uns apaniguados do sistema, quando as pessoas pelas quais dizem marchar, e com as quais se orgulham de ‘misturar’, ousam pensar e expressar entendimentos diversos – e até contrários – dos seus. Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e a vêem escapar impune. Como quem sabe sempre mais. Só que não!
Olho para os números que, no início desta semana, me diziam que desde 10 de Dezembro de 2024 – data de formalização da proposta –, cerca de 2.700 pessoas assinaram online a Iniciativa Legislativa Cidadã que prevê a alteração do Código Penal, para que se criminalize o racismo, a xenofobia e de todas as práticas discriminatórias.
Comparo os dados com as largas dezenas de milhares de pessoas que, no passado dia 11 de Janeiro, saíram à rua para combater o racismo e a xenofobia, sob o mote “Não nos encostem à parede”. Junto os cerca de 6.000 seguidores desta campanha no Instagram, e constato o óbvio: há uma linha demasiado ténue que separa um aliado da luta anti-racista de um apaniguado do sistema racista.
Só assim se explica que, em vez de apoiarem a Iniciativa Legislativa Cidadã para criminalizar o racismo, os pretensos aliados prefiram invocar objecções, colocando-se acima das pessoas que sofrem a violência racista e, repetidamente, a vêem escapar impune.
Importa, por isso, lembrar – uma vez mais e sempre – o papel de um aliado, à luz do que definiu a afroamericana Kayla Reed, pessoa negra e queer, estratega do Movimento pelas Vidas Negras, a partir do qual co-fundou o Projecto pela Justiça Eleitoral.
Desconstruindo a palavra inglesa ally (aliado) letra a letra, a activista aponta quatro acções fundamentais para quem ocupa esse lugar.
Passo a enumerar, e a traduzir:
A - always center the impacted – focar sempre naqueles que sofrem o racismo na pele;
L - listen & learn from those who live in the oppression – ouvir e aprender com aqueles que vivem sob a opressão;
L - leverage your privilegie – colocar o próprio privilégio/poder ao serviço da luta;
Y - yield the floor – ceder o ‘palco’.
Entre “Setenta e Quatro”, “Gerador”, “DN” e “Brasil Já”, publicações onde fui e vou assinando opinião, perdi a conta ao número de vezes em que escrevi sobre pessoas que se afirmam aliadas da luta anti-racista, mas estão sempre voltadas para si próprias; não conseguem ouvir sem retorquir um ‘mas’ e perceber que, por mais empáticas que possam ser, e por muito que sofram discriminações, nomeadamente de género, nunca vão saber o que é estar na pele de uma pessoa negra. Nunca. Da mesma forma, não preciso dos dedos das duas mãos para contar o número de pessoas brancas com quem me cruzei que usam da influência que têm para criar acessos efectivos e quebrar barreiras estruturais.
Cabe aqui fazer uma dupla ressalva: uma coisa é abrir a porta a pessoas negras, outra muito diferente é construir espaços que as acolham. Do mesmo modo, convém prestar atenção ao papel que, quando são ‘integradas’ em estruturas brancas, as pessoas negras ocupam. É-nos reconhecido o direito de pensar e de opinar, quando ele coloca em causa o pensamento e opinião brancos?
A menos que acreditem na ficção do racismo reverso, percebam que pessoas brancas nunca saberão o que é ser alvo de racismo, da mesma forma que pessoas que não menstruam nunca saberão o que são dores menstruais, e pessoas que não engravidam nunca saberão o que é passar por um aborto.
Convém, por isso, ouvir e aprender com quem vive essas realidades, e perceber algo fundamental: se as pessoas que vivem as opressões apontam o caminho para as combater, a única coisa que quem não as vive e se diz aliado tem de fazer é apoiar e seguir sob o seu comando.
É vital entender que as dúvidas e questionamentos individuais – por mais legítimos que sejam – não se podem sobrepor a lutas colectivas que combatem violações de Direitos Humanos, e legislam contra a sua impunidade.
A iniciativa cidadã para criminalizar práticas racistas parte do Grupo de Ação Conjunta Contra o Racismo e a Xenofobia, que reúne mais de 80 colectivos “determinados a lutar por um Portugal, uma Europa e um mundo mais inclusivos e interculturais, contra todas as opressões e formas de discriminação”.
Travar o avanço desta proposta é compactuar com o sistema de impunidade, porque sabemos que os casos de racismo raramente são punidos, e, que quando o são, poucas vezes vão além do pagamento de coimas.
Recusar assinar a Iniciativa Legislativa Cidadã de criminalização do racismo não é uma expressão de divergência, é um acto racista.
Porque, conforme explicam ao Afrolink os juristas Anizabela Amaral e Nuno Silva, o que a proposta de alteração ao Código Penal permite é agravar as consequências de práticas já previstas na Lei, para que, por exemplo, agredir pessoas negras– como fez a jornaleira Tânia Laranjo em 2019 com Joacine Katar Moreira e Mamadou Ba –, não seja equiparado à colocação incorrecta de um toldo numa esplanada.
Ignorar que as normas existentes promovem uma cultura de impunidade é próprio de racistas, e de quem não está a focar em quem sofre o racismo na pele. E isso não se resolve com hashtags no Instagram, frases eloquentes, nem rodadas de cachupa.
“Um Passado Presente” – para imaginar um futuro mais consciente e anti-racista
Há uma parede estrutural – feita de efabulações, omissões, manipulações e distorções históricas –, que mantém o edifício colonial português de pé. Mas hoje sabemos o suficiente do caderno de encargos da obra imperial para reconhecermos que assenta sobre fracturas invididuais, familiares e colectivas, que tornam visível a necessidade de um projecto de reparação. Apesar disso, Portugal-o construtor prefere cobrir-se de tapumes de silêncio, manter a fachada de ‘bom colonizador’, e ignorar o lastro de destruição que, 50 anos após a queda do estado novo, continua a infiltrar vidas. Com que resultados? “Um Passado Presente” abre caminho para encontramos respostas.
Há uma parede estrutural – feita de efabulações, omissões, manipulações e distorções históricas –, que mantém o edifício colonial português de pé. Mas hoje sabemos o suficiente do caderno de encargos da obra imperial para reconhecermos que assenta sobre fracturas invididuais, familiares e colectivas, que tornam visível a necessidade de um projecto de reparação. Apesar disso, “Portugal-o construtor” prefere cobrir-se de tapumes de silêncio, manter a fachada de ‘bom colonizador’, e ignorar o lastro de destruição que, 50 anos após a queda do estado novo, continua a infiltrar vidas. Com que resultados? “Um Passado Presente” abre caminho para encontramos respostas. Carlota Matos, artista e autora da proposta, explica de que forma: procurando “criar um espaço de diálogo”, em que se reflecte “sobre o impacto do colonialismo e do processo de descolonização, tanto no passado como nos dias de hoje”. Acompanhada da mãe, Fátima Matos, que chegou a Portugal como “retornada”, em 1976; e do artista MoYah, que deixou Moçambique durante a guerra civil, terminada em 1992; Carlota sublinha o carácter agregador deste projecto. “Num contexto em que ainda há muito branqueamento da história, este trabalho oferece uma oportunidade para confrontar essas realidades, trazer novas perspectivas e imaginar um futuro mais consciente e activamente anti-racista”. O Afrolink conta-lhe tudo.
Texto escrito a partir da recolha de depoimentos de Janeth Tavares, que assina as fotografias
Registo da apresentação informal ao público, no âmbito do Programa de Residências d’O Rumo do Fumo
Fechado na gaveta, encurralado entre “o transtorno e o desconforto” que sempre lhe causou, o passado fez-se finalmente presente na história de Carlota Matos.
Herdeira da ‘marca’ dos “retornados”, a artista portuense cresceu a ouvir a mãe falar sobre a infância em Moçambique, e sobre “o choque cultural que sentiu na vinda para Portugal, aos 12 anos”.
Mais do que a “nostalgia”, Carlota sempre identificou os silêncios que se colavam a essas memórias. “Eu sabia que ainda existia muito por contar”. Mas, como ultrapassar “o transtorno e o desconforto” que o tema sempre lhe causou, e procurar saber mais?
“Sabia também que, ao criar um projecto sobre isto, queria fazê-lo com um artista moçambicano e incluir a sua perspetiva”.
O momento surgiu há cerca de um ano, no Reino Unido, destino de migração e expansão profissional. “Conheci o MoYah em Bristol. Depois de uma conversa inicial, apercebemo-nos de que temos muitos pontos em comum no nosso trabalho e na relação com a arte: ambos trabalhamos bastante em projectos sociais, e temos interesse em abordar questões de família, identidade e descolonização”.
Dessa aproximação de experiências, olhares e leituras históricas, nasceu a vontade de construir uma colaboração, para já concretizada no projecto “Um Passado Presente”.
“Termos sido seleccionados para o Programa de Residências d’O Rumo do Fumo deu-nos a oportunidade de iniciarmos este processo juntos”, nota Carlota, que abriu a criação a um terceiro elemento: a própria mãe.
“Projecto de performance… o que é isso, como se faz, filhota?”, era esta a minha dúvida inicial”, introduz Fátima Matos, destacando o repertório de aprendizagens.
“A história, com entrevistas de outros retornados, e ainda as pesquisas, os livros com interesse nestes temas, incluindo romances de autores moçambicanos; bibliografia em documentários, filmes, reportagens, textos, arquivos históricos; as videochamadas com a minha filha, foi tudo muito importante para o desenrolar do processo e continuidade desejados”.
Nascida em Moçambique, Fátima recorda como a mudança para Portugal, aos 13 anos, foi marcada por “dificuldades na integração”, revisitadas agora n’ “Um Passado Presente”.
Além das próprias lembranças, que passam pela “bondade, generosidade e educação” transmitidas pela mãe, a hoje reformada de uma carreira na banca, destaca a importância de ter conhecido a história do artista moçambicano MoYah, que apresenta como “protagonista e cúmplice” de uma “grande aventura”.
Filho de um Moçambique já liberto do jugo colonial português, demarcador de fronteiras na vida de Fátima Matos, MoYah reside actualmente em Inglaterra, depois de na juventude se ter fixado em Lisboa. A mudança chegou com o estatuto de refugiado político, vivência que o criativo procura visibilizar a partir da arte, que desenvolve como “uma óptima ferramenta para aproximar as pessoas e nutrir a empatia”, a seu ver “uma das bases para uma sociedade frutífera.”
Histórias por contar, aprendizagens por fazer
Inteiramente dedicado à carreira artística, o moçambicano encontrou na música, e em particular no Rap, uma via “poderosa de autoconhecimento e expressão social”, através da qual alerta para várias injustiças sociais.
“Os temas da migração, da identidade, do lar e da diáspora africana são realmente interessantes para mim, pois fui forçado a fugir do meu país natal, Moçambique, ainda criança, durante a guerra civil”, conta MoYah, defendendo que precisamos saber mais sobre esse capítulo da nossa História.
“Não creio que exista arte contemporânea suficiente que explore e reflita a experiência dos moçambicanos que migraram para Portugal naquela época e as complexidades que rodearam a sua migração”.
Disposto a contribuir para um maior conhecimento, MoYah partilha que, “como artista full-timer” – agora também voltado para a prática teatral – encontra constantemente novas maneiras de se conectar com as pessoas “e fornecer diferentes perspectivas para experiências humanas que nem sempre são representadas, especialmente a experiência vivida por refugiados”.
Assumido apologista da “representatividade artística de pessoas do Sul Global”, o moçambicano considera que “Um Passado Presente” oferece “uma boa oportunidade para retratar e transmitir histórias que não são frequentemente ouvidas nos espaços convencionais”.
Aliás, muitas dessas vivências nem sequer foram contadas, porque ainda precisam de ser reconhecidas. E também aí, a arte pode facilitar despertares de consciência, como aconteceu com Fátima, durante os ensaios no estúdio.
“Fez-me enfrentar as dificuldades, praticar a auto-reflexão, aceitar as emoções difíceis, descobrir e partilhar curiosidades sobre mim mesma, fortalecer momentos sensíveis com sinais de humanidade”.
Já a filha Carlota sublinha o efeito desbloqueador do que estava por contar. “Comecei também a ter com a minha mãe as conversas que nunca tivemos, usando o livro ‘Caderno de Memórias Coloniais’ de Isabela Figueiredo como ponto de partida”.
Além do impacto particular do projecto, a autora de “Um Presente Passado” reflecte sobre o seu efeito estrutural.
“Dialoguei com o MoYah e outras pessoas moçambicanas, e passei muito tempo a refletir sobre o meu lugar de fala e de privilégio, o porquê deste projeto e o meu papel nele. Percebi também que ao procurar entender a história da minha mãe, da minha família e do meu país, estou a procurar entender-me a mim mesma”.
Sustentar o futuro com honestidade
O processo de criação artística teve como foco de partida a pesquisa, na primeira de quatro semanas de residência centrada no contexto político que se vivia em Moçambique nos anos 70 e 80, atravessando a luta e a conquista da Independência, as movimentações dos “Retornados” e a Guerra Civil, encerrada em 1992, após 16 anos de confrontos.
“Pretendemos com Um Passado Presente investigar como tornar possível o diálogo entre diferentes gerações, aumentar a compreensão e escuta entre pessoas que cresceram em mundos tão diferentes”.
A proposta conta já com uma apresentação informal, realizada no final do Verão passado, em Lisboa, no âmbito da residência artística d´O Rumo do Fumo, que beneficiou de um workshop de escrita criativa de Sukina Noor, e dos registos fotográficos de Janeth Tavares.
“Foi basicamente um ensaio aberto com público. Foi muito bom, abordámos vários temas – alguns difíceis –, recebemos a opinião e a partilha de todos os presentes, e tudo foi evoluindo com naturalidade”, recorda Fátima, surpresa com a “recepção tão entusiasta do público”.
O bom acolhimento da plateia, onde outros herdeiros de “retornados” também quebraram silêncios pesados, é igualmente destacado por Carlota.
“A oportunidade de abrir as portas do nosso estúdio foi fundamental. As intervenções positivas dos presentes reforçaram para nós a importância deste projecto, e o feedback que recebemos vai enriquecer o nosso trabalho e ajudar-nos a pensar e planear o futuro”.
O caminho deverá incluir novos voos, antecipa a autora d’ “Um Passado Presente”. “Estamos no início desta viagem, à procura de mais residências artísticas que nos permitam continuar a criar e a explorar o cariz multidisciplinar do projecto”.
Já com algumas das próximas paragens identificadas, Carlota Matos mantém o propósito de tirar da gaveta o tema dos “retornados”.
“A presença de famílias portuguesas brancas em países colonizados e todo o contexto político que a engloba foram, para e por muitos, enterrados”.
Mas a caminho do 50.º aniversário das Independências de quatro dos cinco países ocupados por Portugal (excepção feita para a Guiné-Bissau), a artista quer desenterrar o que precisamos de ver e reconhecer.
“Um Passado Presente procura criar um espaço de diálogo, reflectindo sobre o impacto do colonialismo e do processo de descolonização, tanto no passado como nos dias de hoje. É um projecto sobre encontros e desencontros entre diferentes perspectivas e gerações, que abre um espaço onde estas complexidades possam ser discutidas de forma honesta”.
A proposta torna-se ainda mais relevante, “num contexto em que ainda há muito branqueamento da História”, conforme reconhece a sua autora.
“Este trabalho oferece uma oportunidade para confrontar essas realidades, trazer novas perspectivas e imaginar um futuro mais consciente e activamente anti-racista”. Livre da podridão do edifício colonial.
Carlota Matos, com o livro que ajudou a “desbloquear” conversas com a mãe, Fátima Matos
De boas intenções pode estar o Governo cheio. E as acções?
Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.
Sem apresentar medidas concretas para combater o racismo, e em particular a violência policial contra corpos negros, o Governo recebeu, na passada terça-feira, 29, representantes de colectivos da Área Metropolitana de Lisboa que actuam em bairros municipais. O encontro, no qual o Afrolink esteve presente, evidenciou a necessidade de uma articulação entre as instituições públicas e a sociedade civil, apenas pontualmente – e em situações críticas – chamadas a intervir. Os dias que se seguiram à morte de Odair Moniz, às mãos da polícia, tornam igualmente óbvio que a o compromisso e consciência colectivos sobre questões raciais, continua restrito a planos de intenções.
Procuro notícias sobre a morte, às mãos da polícia, de Odair Moniz. Neste exercício de pesquisa online, entre artigos de jornal e peças televisivas, encontro suspeitas de falsificação de provas que estarão a ser investigadas pela PJ; uma série de relatos de “distúrbios” e “desacatos” nos “bairros sociais”; declarações do advogado do agente que atirou a matar; descrições de velhas e novas imagens de videovigilância captadas na madrugada fatal; teorias sobre os limites da legítima defesa; e um penoso rosário de intervenções políticas.
De declarações rápidas a pronunciamentos mais longos, confirmo, a partir dessa cobertura noticiosa, que a vida de Odair, violentamente encerrada aos 43 anos, desperta menos comoção do que a destruição de autocarros, carros e caixotes de lixo.
Basta analisar como dirigentes públicos, governantes e líderes partidários não pouparam na veemência na hora de condenar os protestos que se seguiram à violência policial, mas expressaram (aqueles que o fizeram) confrangedora inibição no momento de repudiar a actuação policial que resultou na morte de Odair.
É verdade que lamentaram a tragédia, e garantiram que o caso será adequadamente investigado, mas, acima de tudo, estiveram mais entretidos a recomendar calma, moderação e tranquilidade, dando lições de ‘civismo’ aos ‘selvagens’ , e esquecendo-se que a revolta dos bairros não surgiu num vácuo.
Porque é que a nossa ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, é peremptória em classificar de “perfeitamente inadmissíveis” o que classifica de “distúrbios” mas, ao referir-se à morte de Odair, não vai além de uma reacção frouxa e conformada, classificando a perda de uma vida irreparável de “infeliz incidente”.
A diferença não é meramente semântica. De um lado temos o que se traduz num assumido e proactivo compromisso de acção: "Tudo faremos para levar aqueles que participaram nestes tumultos à justiça”, garantiu a titular do MAI. Do outro lado, encontramos a contenção do costume, porque – ao contrário do que acontece com propriedade privada incendiada – a violência que vemos acontecer nos bairros de maioria negra nunca é suficiente.
“A nossa cor é a arma que eles temem”
Exemplo disso mesmo – que me faz abrir aqui um parêntesis – é a reacção da comentadora Maria João Marques diante de um vídeo exibido na SIC Notícias, em que vemos um homem negro ser agredido por dois polícias.
Aos olhos de Maria João Marques (que felizmente se confrontaram com os de Paulo Baldaia), nada há de errado em termos agentes altamente armados a atirar para o chão uma pessoa desarmada, que, segundo se vê nas imagens, faz de tudo para mostrar – despindo-se – que não representa uma ameaça.
Talvez Maria João Marques precise, conforme sugeriu Paulo Baldaia, de viver algo semelhante para avaliar se estamos ou não perante um acto de violência.
Sabemos, contudo, que a pele branca funciona como um escudo de protecção contra esse tipo de abordagens policiais, criminosa e racialmente musculadas.
Pelo contrário, conforme nos lembrava um dos cartazes que, no último sábado, 26, povoaram a Avenida da Liberdade – na marcha de homenagem a Odair Moniz, organizada pelo movimento Vida Justa –, “é impossível estar desarmado quando a nossa cor é a arma que eles temem”.
Neste “eles” não cabem apenas os polícias, mas é sobre eles que, neste caso, importa centrar a discussão. Afinal, é às suas mãos que os nossos homens negros continuam a morrer. E, por mais que tentem normalizar e justificar a violência policial racista, inventando ameaças inexistentes, nós continuaremos a contestá-la sem reservas, algo que o Governo hesita em fazer.
Quando a ministra da Administração Interna se refere à morte de Odair como um “infeliz incidente”, não estará certamente a minimizar a tragédia, mas está, em larga medida, a desresponsabilizar o agente.
“Mandei abrir o inquérito para saber exactamente, em termos exaustivos, o que aconteceu”, anunciou Margarida Blasco na ressaca da morte, escusando-se a apontar o óbvio: mesmo que tivesse de usar a arma – e neste caso os indícios sugerem que não tinha de o fazer –, o agente nunca deveria atirar a matar.
Antes dele, muitos outros que também não o deveriam fazer, fizeram-no, sem que ficássemos a saber o que aconteceu, “em termos exaustivos”, para que, perante tantas evidências de abuso policial e racismo, tivessem sido absolvidos.
Diálogo minado de desconfianças
Como esperar, neste quadro, que haja calma e se aguarde com serenidade o resultado das investigações?
Como confiar numa Justiça que criminaliza o anti-racismo, e transforma vítimas negras em arguidas?
Como dar o benefício da dúvida a um Governo liderado por alguém que, em particular neste contexto, afirma que “não somos um país onde o ódio, as questões raciais tenham uma natureza de preocupação”?
Foi ainda sob o ruído dessa declaração do primeiro-ministro que, na passada terça-feira, 29, o Afrolink se juntou a cerca de 15 representantes de associações e colectivos da Área Metropolitana de Lisboa, numa reunião convocada pelo ministro da Presidência.
Depois de nos guiar pela visão do Executivo para “melhorar as condições da vida concreta das pessoas”, nomeadamente nas áreas da Segurança, Habitação, Saúde e Educação, António Leitão Amaro garantiu que Luís Montenegro “não disse nem quis dizer” que não há racismo em Portugal.
Das intenções às acções, o encontro, classificado de “exercício de escuta histórico”, demonstrou que não há grande distância entre o que o líder do Governo disse e o que o Executivo faz.
Percebe-se, por exemplo, pelas medidas apresentadas por Leitão Amaro, que a dimensão étnico-racial da violência policial e da exclusão social continua a ser desprezada.
Anunciar a reformulação e melhoria da formação pedagógica das forças de segurança, com ênfase nos Direitos Humanos terá a sua importância nos relatórios, mas, no dia-a-dia, não me parece que os polícias desconheçam a desumanidade de espancar pessoas nas esquadras, interpelá-las violentamente na rua, ou tratá-las à lei da bala.
A questão não se resolve com mais ou menos Direitos Humanos, porque o problema está em termos polícias que não reconhecem as vidas negras como humanas. Portanto, à luz das suas práticas racistas, os Direitos Humanos não se aplicam diante de pessoas negras.
O Governo tem a obrigação de conhecer esta realidade, quanto mais não seja porque a própria Inspecção-Geral da Administração Interna – que Margarida Blasco liderou – investiga esse e outro tipo de processos, incluindo denúncias sobre a infiltração de elementos da extrema-direita nas polícias.
O que é feito desses inquéritos?
Enquanto Leitão Amaro reitera toda a confiança nas forças de segurança, “na lógica do princípio de que actuam para cumprir a regra e o respeito pelos Direitos Humanos”, nós continuamos a morrer. E enquanto o Governo se congratula por estar a ouvir representantes da sociedade civil, nós gostaríamos de o ver a agir contra o racismo.
Sem mas, nem meio mas.