HISTÓRIAS

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Abrir caminho para cumprir Abril, com Marlete e José Carlos na nossa História

Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com e como eles. Colectivamente.

Amplamente reproduzida em outdoors gigantes, cartazes de várias dimensões, sites e redes sociais, a imagem aqui em destaque tornou-se, no ano passado, uma bandeira de exaltação do 25 de Abril. “Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”, legenda Victor Correia que, numa habitual viagem pelo IC19, reconheceu nessa fotografia a sua própria história. O Afrolink foi ouvi-la, e encontrou Marlete Henriques e José Carlos Correia a abrir caminho para a nossa Democracia e Liberdade. Vamos com, e como eles. Colectivamente.

Marlete Henriques com o irmão Victor Correia, junto da imagem que se tornou bandeira da Revolução

Seguia de carro pelo IC19 quando o impacto se deu. “Eh, pá! Aquelas pessoas parecem os meus irmãos”, lembra-se de pensar, ao avistar um enorme outdoor do lado direito da estrada.

As dúvidas acompanharam a viagem de Victor Correia em direcção a Lisboa, até se desfazerem por completo no regresso.

“Passei pelo mesmo sítio, voltei a olhar e disse: só pode ser. Mas foi mais à frente, a caminho do supermercado, que tirei a prova dos nove, ao encontrar a mesma imagem, embora mais pequena, presa a um poste”.

Já estacionado, e diante do cartaz, Victor confirmou a identidade de um dos dois casais da fotografia: Marlete Duarte Lopes Correia Henriques e José Carlos Duarte Lopes Correia.  Nada mais nada menos do que os seus irmãos.

“Foi uma grande surpresa”, conta ao Afrolink, enquanto remexe memórias de resistência. “Eu tenho a foto original, e sei que quem a tirou fez várias”, acrescenta, assumindo-se como o guardião natural do espólio da família.

“Acabei por ficar com os álbuns porque fui o único a permanecer em Portugal”, explica, de volta às movimentações que marcaram o pré e pós 25 de Abril de 1974.

“Digamos que todos nós, na nossa família, éramos activos na política, em defesa das Independências. Mas a Marlete e o José Carlos eram ainda mais, e especialmente ela. Os dois estavam sempre nas manifestações”.

Desde afixar cartazes por todo o lado, para divulgar protestos, e apelar à mobilização, até ‘acampar’ noite e dia à porta da prisão de Caxias para exigir a libertação de presos políticos, o envolvimento dos irmãos Correia construía-se também a partir de sólidas raízes familiares.

“O meu pai tinha um rádio, e ouvíamos a BBC para ficarmos a par do que estava a acontecer. Lembro-me que quando assassinaram Amílcar Cabral [20 de Janeiro de 1973], disseram que o chefe dos terroristas tinha sido morto. Foi assim que anunciaram”.

Já depois da Revolução, e reconhecidas as Independências dos países ocupados por Portugal, a família Correia – que era originária de Cabo Verde, e tinha chegado ao país em 1969 –, começou a fazer o caminho de regresso.

Símbolo da Revolução de Abril, conquista de africanos e portugueses

José Carlos acabou por se fixar em Cabo Verde, depois de uma temporada por Angola, e Marlete seguiu para a Guiné-Bissau, embora tenha, mais tarde, voltado para Portugal, onde vive actualmente.

Mas é pelas memórias do irmão Victor que prefere que a sua fotografia seja legendada.

“Essa imagem passou a ser um símbolo da Revolução de 25 de Abril de 1974, em que a Marlete e o José Carlos aparecem como representantes das ex-colónias, do fim da guerra colonial”, aponta o empresário, que, entre avanços e recuos cronológicos, recupera outra circunstância do passado.

“Morávamos em plena cidade de Lisboa, ali na Estefânia, mais propriamente na Rua General Farinha Beirão, em que as traseiras dão para a Polícia Judiciária”, recorda, adiantando que, pela proximidade com os calabouços, antes de 1974 era comum os prisioneiros tentarem fugir a partir das suas casas. “Depois os polícias cercavam aquilo tudo e resolvia-se”.

Victor sublinha ainda que, mesmo após o derrube do fascismo e conquista da Democracia, foi fundamental continuar a mobilizar pessoas em defesa do pleno reconhecimento dos países africanos que foram ocupados por Portugal.

“Havia manifestações em Lisboa, organizadas por nós, com milhares de pessoas. E nesses milhares de pessoas estamos a falar de muitos africanos, porque nessa altura tínhamos os movimentos de libertação de Angola, Moçambique, São Tomé, Cabo Verde, Guiné….havia o PAIGC, MLSTP, MPLA, Frelimo, e todos se batiam pela Independência. Estávamos unidos, a bater o pé nesse sentido”.

Fica assim evidente que o contributo africano para o 25 de Abril – do qual se tem falado por causa da resistência que Portugal encontrou nos territórios colonizados –, se fez também de forma expressiva a partir de Lisboa, onde as Casas representantes dos diferentes países concertaram esforços de luta.

“Uma dessas Casas ainda existe no mesmo sítio, ali na Rua Duque de Palmela, mas hoje tem o nome de Associação Cabo-Verdiana”, nota Victor, revelando que, para além de fóruns de estrategização, esses espaços eram igualmente importantes vias de confraternização.

Insistindo na ideia de que importa mostrar que o 25 de Abril foi uma conquista de todos, portugueses e africanos, o irmão de Marlete e José Carlos destaca o quanto a fotografia na génese desta conversa é mais uma prova disso mesmo.

“Foi muito bem tirada. Olhamos para ela e vemos força, poder, todo o vigor da juventude, da luta, e das pessoas da altura”.

Reparemos em todas elas.

A luta por direitos continua a mobilizar Marlete

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Plantar vida humana, colher regeneração e celebrar, ou, numa palavra: Úlulu

Entre viagens a São Tomé e Príncipe, destino que marcou a sua rota durante cerca de três anos, a artista transdisciplinar Raquel Lima encontrou raízes que desconhecia, e, a partir delas, começou a ‘escavar’ memórias e rituais que cultivam outros saberes e fazeres, terreno fértil para plantar futuros alternativos. A performance “Úlulu” floresce dessa sementeira, e estreia-se hoje, 3, às 19h30, no TBA – Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, pretexto para o Afrolink conversar com a criadora. Em palco acompanhada da mãe, Maria Palmira Joaquim, e do músico Okan Kayma, Raquel desafia-nos a sentir. Sem “querer fechar uma interpretação daquilo que está em cena, queremos que o público se questione”.

Entre viagens a São Tomé e Príncipe, destino que marcou a sua rota durante cerca de três anos, a artista transdisciplinar Raquel Lima encontrou raízes que desconhecia, e, a partir delas, começou a ‘escavar’ memórias e rituais que cultivam outros saberes e fazeres, terreno fértil para plantar futuros alternativos. A performance “Úlulu” floresce dessa sementeira, e estreia-se hoje, 3, às 19h30, no TBA – Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, pretexto para o Afrolink conversar com a criadora. Em palco acompanhada da mãe, Maria Palmira Joaquim, e do músico Okan Kayma, Raquel desafia-nos a sentir. Sem “querer fechar uma interpretação daquilo que está em cena, queremos que o público se questione”.

De cima: Okan Kayma, Raquel Lima e Maria Palmira Joaquim, fotografados por Pedro Jafuno

Num vai-e-vem que se tornou rotina, entre a morada em Portugal e uma investigação académica em São Tomé e Príncipe, Raquel Lima aterrou numa palavra: Úlulu. “Significa placenta”, traduz a poeta e artista transdisciplinar, enquanto busca entendimentos que vão muito além de dicionários, e da expressão em língua em forro.

“As pessoas referem-se a úlulu como um ritual. Falaram-me dessa prática antiga, de enterrar, nos quintais de casa, a placenta e o cordão umbilical dos recém-nascidos, para que, mais tarde, por mais que cresçam e viajem, saibam sempre como voltar ao lugar de origem”.

Fascinada com essa ideia de “retorno simbólico”, a também investigadora relaciona-a com as suas próprias viagens.

“O meu pai é de São Tomé, mas fui educada pela minha mãe, que é angolana. Então, não cresci com a cultura são-tomense próxima. Toda essa parte fui conquistar, de certa forma, já adulta, depois dos 30 anos”.

Ainda a ligar os pontos da própria história, Raquel encontra no úlulu não apenas identificação individual, mas também conexão colectiva.  “Acho que toda a diáspora negra, em parte, passa por esse percurso, que é este lugar de Sankofa, de olhar para trás”.

Nesse “retorno”, a artista calibra perspectivas: “Passei a dizer plantação da placenta, em vez de enterro, porque tem essa ideia de germinar uma ligação inequívoca, e para sempre, com a pessoa que nasce”.

O movimento de leitura e releitura, fincado em São Tomé e Príncipe, permitiu deslindar novas ‘sementes’. “Ao longo da minha pesquisa, fui percebendo que há outros países com rituais semelhantes”, indica Raquel, explicando que no Brasil, por exemplo, há relatos de oferenda da placenta ao mar – em reverência a Iemanjá –, como forma de protecção contra infortúnios de afogamentos, e atracção de prosperidade e abundância. Já na Colômbia, para prevenir eventuais derivas criminosas, coloca-se o cordão umbilical dentro de uma pequena caixa, para que os ratos não o apanhem, “porque se algum o comer, a criança pode tornar-se ratera, ou seja, ladra”.

Unidos pelo momento da nascença, os diferentes rituais cruzam-se na performance “Úlulu”, que se estreia hoje, 3, às 19h30, no TBA – Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, e pode ser vista até sábado, 5.

“A certa altura, vamos ouvir uma senhora na Colômbia, num quilombo de São Basílio de Palenque [considerada a primeira cidade negra livre de toda a América]”, aponta a criadora do espectáculo, antecipando outras participações. “Também vamos escutar uma senhora de Olinda, que fica em Recife, no Brasil, e outra que está em São Tomé, a falar em forro”.

Interessada em contrastar as múltiplas versões desse ritual, Raquel faz do palco um espaço de expressão documental, desde o primeiro momento alargado aos espectadores.

Ritualizar a ida ao teatro

“Não queremos que seja um espectáculo em que as pessoas entram, assistem, aplaudem e vão embora. O público está connosco, acompanha os nossos rituais, tenta ganhar consciência dos seus próprios rituais individuais…do que é fazer um gesto ritualístico e colectivo. E, se tudo correr bem, depois continua esse exercício em casa”.

A proposta, antecipa a artista transdisciplinar, é de “tirar um bocadinho o teatro do lugar de consumo. Ou seja, se a ida ao teatro também for um ritual, como é que essa prática pode acontecer?”.

Desde logo, aponta a criadora de “Úlulu”, “há uma procura de gerar um certo desconforto no público”, a partir da noção de que existe alguma ansiedade à chegada para um espectáculo, de “começar a atribuir significados, a tentar perceber para onde é que as personagens vão”.

Sem nos darmos conta, cena após cena, dia após dia, desabituamo-nos de apenas estar e ficar em silêncio. Aliás, questiona Raquel, em que medida chegamos ao lugar que ocupamos numa plateia? Estamos inteiros e disponíveis para a experiência, ou cheios de ausências que tornam o corpo visível, mas não presente?

Entre questionamentos, a poeta continua a ensaiar respostas. Reconhece, por exemplo, que “o texto não pode ser tão importante”, porque “o silêncio tem de prevalecer, tal como o gesto, e o movimento”.

Além do desafio de despir “Úlulu” de ‘demasiados’ palavras – “tinha um texto muito maior, e tive de o lapidar” –, a artista propõe-se vestir a performance de um certo breu.

“O que se faz no escuro? Pretendo contrariar a ideia de iluminismo e da projecção de luz como um lugar de revelação, porque na penumbra também se revela muita coisa”.

É disso exemplo o mito de Nanã, pontua Raquel, que traz a referência do Candomblé. “Nanã foi buscar terra ao fundo da lagoa, lugar de escuridão, para Oxalá criar a Humanidade. Então, interessa-me trabalhar a obscuridade e o tempo para respirar, que também é o tempo de gestação, embora não necessariamente de gestar, mas de virmos desse silêncio, desse úlulu, dessa placenta no escuro”.

Aqui, de novo, encontramos uma ideia de retorno às origens, agora externalizada na relação com a audiência.

No ciclo de vida

Sem “querer fechar uma interpretação daquilo que está em cena, queremos que o público se questione sobre os seus gestos quotidianos, sobre os seus lugares de pertencimento, que compreenda que pertencemos acima de tudo, ao nosso corpo, e que reflicta sobre como é que esse corpo gera o nosso próprio lugar”.

Em palco acompanhada da mãe, Maria Palmira Joaquim, e do músico Okan Kayma, a criadora desafia-nos a sentir.

“Vamos estar sempre a pedir ao público para interagir, para que possa chegar plenamente. Por exemplo, através de rituais muito pequeninos, em que as pessoas não têm de sair do lugar, não têm de se sentir desconfortáveis nem expostas”.

Nesta espécie de viagem de regresso a nós próprios, geográfica e emocionalmente impulsionada, “Úlulu” convoca-nos também a olhar para o Planeta.

“Nós não somos o centro, estamos aqui de passagem, com os nossos retornos, as nossas migrações. Mas há um lugar de parar, observar e escutar a Natureza: o que é que diz uma cascata? O que diz uma rocha? O que dizem as fibras vegetais?”.

Entre diálogos, Raquel sublinha que a regeneração planetária não tem de se fazer necessariamente através do ser humano. “Ainda que nós desapareçamos do planeta, há materiais que ficam, nomeadamente as fibras vegetais, com as quais nós vamos trabalhar muito em palco. Porque esses materiais vão ter histórias para contar e, eventualmente, vão-se regenerar”.

Partindo da ideia de que “existem rituais que servem exactamente para nos conectar com o Planeta”, a investigadora destaca a importância do “cuidado com o gesto ritualístico quotidiano”, que inclui rotinas como lavar os dentes ou a automassagem.

“Como é que esses momentos não só são retorno ao corpo, mas muitos deles estão-nos a falar sobre uma ligação ancestral ao próprio Planeta?”.

O úlulu abre muitas possibilidades de resposta.

“Plantar uma placenta é extremamente potente, porque é uma parte de nós poderosíssima em termos de sistema imunitário e células estaminais”, nota Raquel, realçando o efeito expansor deste ritual. “Imaginemos, então, como a quantidade de úlulus plantados em São Tomé fertiliza o próprio solo. Imaginemos esse lugar do nosso corpo voltar à terra enquanto composto que se decompõe, para depois germinar e criar mais vida”. Ciclicamente.

 “O úlulu dá-me esta ideia de ritmo, de um mantra circular e do movimento repetitivo, mas que nunca se repete porque é sempre diferente. Então, é um pretexto para falar de outro tipo de ligações mais globais”.

Regeneração colectiva e celebração

Diante das ameaças que vivemos, em que a Paz e a Justiça surgem cada vez mais fragilizadas perante sucessivas crises – do clima às migrações, passando pela democracia –, podem os rituais de “retorno” às origens oferecer uma via de regeneração colectiva? Haverá futuro sem respeitar os ciclos e ritmos da natureza humana e ambiental?

“Eu tento não romantizar porque, realmente, quando olhamos à volta vemos muito colapso a acontecer, e é importante ter essa consciência. Mas eu também digo que há aqui um lugar de esperança”, nota Raquel, antes de declamar um pedaço do texto de “Úlulu”.  Escrito assim: “E ainda que o nosso mundo já tenha acabado ou esteja a acabar, as crianças dormem aconchegadas nas costas de anciãs, e respiram num ritual, o mais profundo ritual que não se repete. Cada inspiração é única, cada inspiração é diferente, cada dia é um dia”.

A mensagem, assumidamente positiva – porque também importa esperançar e celebrar – é indissociável da vida que a compõe.

“Há aqui um lugar muito familiar. O meu companheiro faz apoio à criação. A minha mãe está em cena, o meu bebé está em todo o lado. Então, não é um espectáculo separado da vida, se é que isso é sequer possível”.

Certa da “impossibilidade de dissociar” a sua existência da performance, Raquel considera que é justamente isso que a peça tem de decolonial.

“A Tobi [Ayé], a nossa consultora de cosmovisão indígena, explica isso melhor do que qualquer pessoa. Ela disse: ‘Raquel, receberes a tua mãe em palco é, em si mesmo, um ritual’. Eu acho que esse ritual tinha de acontecer, que é o ritual de a minha mãe entender-se como mãe, eu entender-me como filha, e falarmos sobre isso. De eu pedir-lhe essa bênção. Isso foi uma chave durante este processo criativo. Mudou tudo”.

Entre curas, traumas, colapso, plantação, colheita, regeneração e celebração, a criadora de “Úlulu” recorda-nos também que o processo de descolonização das mentes é longo.

“Não dá para adormecer. Aliás, eu acho que o colonialismo é esse estado de sono, esse lado de sonolência”. Pelo contrário, sublinha Raquel,“o movimento decolonial é estar constantemente desperto e constantemente a despertar”.

 “Úlulu” abana-nos nessa direcção, ao mesmo tempo que se propõe encaminhar-nos para um lugar da poesia: “De se dizer uma frase que pode ser interpretada de várias formas, mas que acima de tudo tem de ser sentida”. Em conexão connosco, em relação com as outras pessoas, e na ligação ao Planeta.

Maria Palmira Joaquim, fotografada por Pedro Jafuno

Direcção artística e criação
Raquel Lima

Interpretação
Maria Palmira Joaquim, Okan Kayma, Raquel Lima

Cenografia
Eneida Tavares

Desenho de luz
Lui L’Abbate

Figurinos
Neusa Trovoada

Sonoplastia e composição original
Okan Kayma

Vídeo / filmagens
Sara Morais

Movimento
Lucília Raimundo

Consultora de cosmovisão indígena
Tobi Ayé

Apoio à criação
Danilo Lopes

Vozes

Ana Maria Semedo, Elcínia Dias, Eliane Borges, Eneida Tavares, Ernestina Miranda, Marilene de Andrade, Tobi Ayé

Olhar externo

Dori Nigro

Produção

Joana Costa Santos

Administração

Agência 25

Coprodução

Teatro do Bairro Alto, Teatro Municipal do Porto / FITEI

Coprodução em residência

OSSO, Alkantara, O Espaço do Tempo

Apoio

República Portuguesa – Cultura / DGARTES – Direção-Geral das Artes, Câmara Municipal de Lisboa / Polo Cultural das Gaivotas, Culturgest, Rural Vivo, Santos & Monteiro


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Dos saberes do arroz africano à libertação das memórias, Zia Soares revela-nos um outro mundo

Titulada em crioulo guineense, a peça “Arus Femia” – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro do Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli.

Ia e regressava de Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz. “Interessava-me saber como é que se planta”, conta Zia Soares, que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné e, com elas, viu germinar a sua mais recente criação: “Arus Femia”. Presente no ensaio de imprensa, realizado no Espaço da Penha, em Lisboa, o Afrolink conversou com a encenadora e actriz sobre esta produção, que “desarruma” os nossos olhares, escutares e falares. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”.  Titulada em crioulo guineense, a peça – que em português significa “Arroz Fêmea” –, estreia-se esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões. A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30. Neste dia, as reflexões desembrulhadas em palco estendem-se ao programa da Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, que acontece a partir das 14h30, no Rivoli. “Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo. Desta vez, os questionamentos atravessam a história do arroz africano no mundo Atlântico. “Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”. Do palco para a conferência, libertam-se memórias.

Fotos de Arlindo Camacho (também de capa), aqui com elenco do espectáculo “Arus Femia”, que inclui elementos do grupo cultural da Guiné-Bissau, Netos de Bandim

Sem uma única palavra, o diálogo constrói-se de silêncios e gestos, num serpentear de corpos e expressar de pés. Com eles desponta um movimento comum, tão harmonioso quanto misterioso.

“O que é isto? Quem és tu? O que é que tu queres? Não dizes nada?”.

Há uma estranheza neste encontro-confronto que nos prende a atenção, desarruma pensamentos, e marca os primeiros minutos de “Arus Femia”, a mais recente criação de Zia Soares.

“Nós estamos habituados a muito ruído, de todo o tipo, tanto sonoro como visual. E este espectáculo traz outra perspectiva. Há uma possibilidade de mundo no silêncio”, introduz a encenadora e actriz, propondo novos olhares, escutares e falares.

“Na expressão europeia, euro-centrada, as palavras, o que se diz e aquilo que se escreve têm uma hegemonia sobre tudo o resto”, nota a criadora, interessada em conhecer – e dar a conhecer – outros modos de comunicar.

“O silêncio não é uma incapacidade de expressão. Não é uma assombração, e sim um assombramento, uma forma de expressão completamente diferente, que nos diz que há um outro entendimento possível que desconhecemos”.

Mais do que teorizar sobre alternativas de ser e de estar, Zia faz por vivê-las.

Foi assim que, durante quatro anos, desdobrou viagens à Guiné-Bissau, sem outro plano a não ser trabalhar nos campos de arroz: “Interessava-me saber como é que se planta”.

O processo, construído na ligação a, e com outras mulheres e comunidade, acabou por produzir “Arus Femia”, espectáculo titulado em crioulo guineense, e que, em português, significa “Arroz Fêmea”.

“Há um entendimento maior que me acompanha: de que há muitas coisas que tenho de saber, que tenho de descobrir, que tenho de escavar, e em que tenho de mergulhar. Essa é a certeza que tenho, mas aquilo que vou encontrar quando mergulho é desconhecido também para mim”.

Não surpreende, por isso, que a experiência nos arrozais tenha acontecido desligada de programações artísticas, guiada por essa ânsia de conhecer, espicaçada por conversas e leituras sobre o contributo africano para a globalização do consumo do arroz.

“Como uma espécie domesticada de forma independente na África Ocidental há mais de três mil anos chegou às plantações do Novo Mundo? Que protagonismo tiveram as mulheres escravizadas no estabelecimento deste alimento africano vital nas Américas?”.

O palco em discussão

A proposta de reflexão, presente na Conferência “Arroz Africano no Mundo Atlântico”, prolonga a acção de “Arus Femia”, que se estreia esta semana no Teatro Campo Alegre, no Porto, com duas sessões.

A primeira está marcada para sexta-feira, 21, às 19h30, seguindo-se outra no sábado, 22, às 21h30, dia em que a apresentação é antecedida, a partir das 14h30, no Rivoli, por essa Conferência.

“Para além da obra artística, esta é uma discussão para a sociedade civil”, sublinha Zia Soares, que, de inquietação em criação, encontra novas chaves de leitura do mundo, neste caso apontadas para reflectir sobre soberania alimentar, crise climática, migrações e feminismo. Sem quaisquer pressões de entendimentos, garante a criadora.

“Não me sinto responsável pela forma como o público vai receber e interpretar o espectáculo. A mim cabe-me ter coisas que me impactam e inquietam, e que eu traduzo artisticamente”, revela Zia, interessada em estimular a reflexão de quem assiste, seja ela qual for.

Depois do Porto, a proposta segue para Lisboa, apresentando-se, a 2 de Abril, no CAM – Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, com entrada gratuita.

Ainda na capital, o Teatro do Bairro vai acolher cinco dias da produção, de 7 a 11 de Maio, mês que encerra com a presença do espectáculo na primeira Bienal da Guiné-Bissau.

Entre os palcos e a conferência, libertam-se memórias.

“A maioria das pessoas identifica a escravidão com o açúcar e poucas a associam ao arroz”, assinala-se na sinopse da conferência, recordando-se que os africanos escravizados cultivavam o cereal no estuário do Sado, em Portugal, no Brasil, nas Caraíbas e no sul dos Estados Unidos.

Este e outros saberes inspiraram “Arus Femia”, que, no entanto, se solta de cronologias e geografias. “É sobre isto que este espectáculo trabalha: a criação de um outro mundo, de uma outra língua, de outras perspectivas”, reflecte a autora, sublinhando a natureza não exclusivamente humana das personagens.

“Vemos em palco uma comunidade para além de qualquer tempo, em que as memórias não se fixam, estão sempre a circular, como acontece com a natureza, que não está presa, que se vai reconfigurando e se vai transformando”.

Pelo contrário, nota Zia, “nesta nossa forma de vida, estamos a acumular memórias, e como não sabemos o que fazer com elas, isso traz-nos muitas dores”.

Será a Dormência, nome de uma das sete personagens de “Arus Femia”, um modo de resistir à dor das memórias?

Será, como sugere outra personagem, que é preciso afundar, para lembrar? Ou então, lembrar para depois esquecer?

Entre os nossos próprios questionamentos, e aqueles que o espectáculo verbaliza, persiste a certeza de que um outro mundo está ao nosso alcance.

Com “coisas que nós não conseguimos ver, ouvir, nem olhar quando temos tanto ruído à nossa volta”.  

Zia Soares, foto de Sofia Berberan

Direcção, encenação, texto
Zia Soares

Interpretação
Albertinho Monteiro, Aoaní, Dionezia Cá, Izária Sá, Ulé Baldé, Urbício Vieira, Xullaji

Música
Xullaji

Movimento coreográfico
Vânia Doutel Vaz

Cenografia
Neusa Trovoada

Design de iluminação
Carolina Caramelo

Vídeo
António Castelo, Lentim Nhabaly

Video design
Cláudia Sevivas

Conteúdo visual para animação 2D
Camila Reis, Nú Barreto

Figurinos
Neusa Trovoada

Tranças
Mariana Desidério

Tradução para kriol
Miguel de Barros

Engenheiro de som
Jorge Gonçalves

Direcção de produção
Camila Reis

Apoio à pesquisa
TINIGUENA

Produção
Sowing_arts

Coprodução
Teatro Municipal do Porto, Netos de Bandim, STATION service for contemporary dance

Apoio
Câmara Municipal de Lagos/Centro Cultural de Lagos, Casa da Dança, Fundação Calouste Gulbenkian, GROWTH, Largo Residências/Jardins da Bombarda, O Rumo do Fumo, Polo Cultural Gaivotas Boavista, RDP África

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