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Estamos a normalizar a barbárie: entre a indignação pontual e o silêncio estrutural

Num “gesto provocador”, conforme o apresenta, a empresária de impacto social, Myriam Taylor, perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta, conta-nos, foi clara: “Através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento”. Mais do que notar que é “exatamente o caminho que estamos a seguir”, neste artigo de opinião Myriam aponta soluções. “O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível”.

Num “gesto provocador”, conforme o apresenta, a empresária de impacto social, Myriam Taylor, perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”. A resposta, conta-nos, foi clara: “Através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento”. Mais do que notar que é “exatamente o caminho que estamos a seguir”, neste artigo de opinião Myriam aponta soluções. “O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível”.

Myriam Taylor perguntou ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”

Texto de Myriam Taylor

Vivemos tempos de distanciamento emocional profundo. Um tempo em que o grito coletivo foi substituído por um scroll distraído. Onde a empatia deixou de ser um impulso natural para se tornar uma raridade. Onde o sucesso é medido pelo isolamento vitorioso, e não pela construção partilhada.

Estamos a educar crianças e jovens para o desempenho, não para a consciência. Ensinamos a competir, não a cooperar. A destacar-se, não a cuidar. E o resultado está à vista: uma sociedade muitas vezes incapaz de reagir com profundidade e continuidade à dor do outro.

Na semana passada, Portugal foi confrontado com um crime chocante: uma menor foi violada por três jovens que filmaram o ato e partilharam as imagens nas redes sociais. O caso foi amplamente noticiado e houve manifestações de indignação pública – por parte de cidadãos, organizações e plataformas de direitos humanos. No entanto, esta comoção, apesar de genuína, esbate-se rapidamente na espuma dos dias. Falta-nos continuidade, estruturas de proteção eficazes e um grito coletivo que dure mais do que um ciclo de notícias.

Este caso não é uma exceção. É um reflexo. O mesmo padrão repete-se em escala global. Em Gaza, mulheres e crianças são massacradas todos os dias, com o mundo a assistir. No Congo, mulheres continuam a ser vítimas de violência sexual extrema como arma de guerra, e crianças são exploradas como mão de obra escrava na extração de coltan e outros recursos que alimentam os nossos dispositivos digitais. Há indignações pontuais, sim – mas o que se impõe é um silêncio estrutural, normalizador.

A barbárie já não choca como deveria. Está a ser digerida em pequenas doses – e isso é perigosíssimo. Porque a barbárie instala-se não com gritos, mas com ausências: de cuidado, de mobilização, de responsabilização.

Quando educamos apenas para o “eu”, matamos o “nós”. E quando o “nós” desaparece, deixamos de reconhecer a dor do outro como nossa.

O desafio é claro e urgente: precisamos de resgatar a ideia de coletivo. De voltar a ensinar – em casa, nas escolas, nos media – que a liberdade e a justiça não são bens individuais. Que sem compaixão, sem responsabilidade partilhada, não há sociedade possível.

Esta inquietação levou-me, num gesto provocador, a perguntar ao ChatGPT: “Se fosses o diabo, como destruirias a Humanidade?”.  A resposta foi clara: através da erosão da empatia, da glorificação do ego, da divisão, da normalização da injustiça, da destruição da confiança e da apatia perante o sofrimento. Soa familiar? Porque é exatamente o caminho que estamos a seguir.

Mas ainda há tempo. Este texto não é só um grito. É um apelo. Que sejamos vizinhos atentos, cidadãos ativos, educadores conscientes. Que não deixemos o horror passar como mais um vídeo no feed.

Estamos num ponto de viragem. Somos todos chamados a tomar uma posição. Em que lado escolhemos estar?

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Eva Rapdiva - o backlash em dois países e a urgência de falarmos sobre múltipla pertença e legitimidade

Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste  artigo de opinião.

Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais, pós-graduada em Gestão Financeira e mestranda em Desenvolvimento Global, Eva Cruzeiro, popularizada pelo nome artístico Eva Rapdiva, é candidata a deputada pelo Partido Socialista, ocupando a 8.ª posição na lista do círculo eleitoral de Lisboa. A notícia está a desencadear uma onda de contestação, sobre a qual Myriam Taylor, empresária de impacto social, reflecte neste artigo de opinião.

Texto de Myriam Taylor

A nomeação de Eva Rapdiva para a lista do Partido Socialista às eleições legislativas fez estalar um debate que ultrapassa largamente as fronteiras da política. Assistimos a uma reacção em cadeia — tanto em Portugal como em Angola — que, mais do que qualquer questão partidária, nos convida (ou obriga) a reflectir sobre pertença, identidade e legitimidade.

Eva é, ao mesmo tempo, portuguesa e angolana. Não “meio de cá e meio de lá”. É de cá e de lá, inteira. Afro-europeia, mulher, artista, com uma voz pública forjada na denúncia da injustiça social e racial. E é precisamente essa pluralidade que parece ter incomodado tantos, em dois contextos que, embora distintos, continuam a resistir à ideia de múltiplas identidades coexistirem num mesmo corpo, numa mesma história.

Em Portugal, vimos os ataques de sempre: o questionamento sobre quem tem direito a representar o país. Como se a negritude fosse um corpo estranho à identidade portuguesa, como se o simples facto de Eva existir e falar com autoridade fosse uma afronta à ordem estabelecida. Já em Angola, surgiram críticas num registo diferente, mas igualmente revelador — a ideia de que o envolvimento dela na política portuguesa significaria um afastamento das raízes ou um “esquecimento” da pátria.

Importa recordar, neste contexto, que há alguns anos a então deputada e líder do CDS, Assunção Cristas, mostrou no Parlamento o seu passaporte angolano com orgulho — e esse gesto, embora simbólico, nunca suscitou qualquer tipo de comoção social, muito menos indignação pública. Nenhum debate sobre "dupla lealdade", nenhuma exigência de explicações sobre "a quem serve". O contraste é gritante. E diz muito sobre como a cor da pele e a origem racializada continuam a definir a forma como legitimamos (ou não) a presença de alguém nos espaços de poder.

É curioso (e doloroso) constatar como, mesmo nos espaços que deviam acolher-nos, continuamos a ser desafiadas a “escolher um lado”. Como se a nossa existência tivesse de caber numa única caixa, numa só bandeira, numa só narrativa. Mas nós, filhas da diáspora, somos feitas de muitas camadas. E isso não é uma falha — é uma força.

A reacção à candidatura da Eva mostra-nos como ainda há um longo caminho a percorrer na aceitação da pluralidade identitária. Mas também revela que a sua presença incomoda porque quebra expectativas. Porque desloca o centro. Porque obriga-nos a repensar o que significa ser portuguesa, ser angolana, ser europeia — e quem tem o direito de ocupar os lugares de decisão.

Eva Rapdiva não está “a ser permitida” ocupar um espaço. Está a reclamar, com legitimidade e mérito, um lugar que também é seu. E isso é revolucionário. Não apenas para ela, mas para todas nós que crescemos a ouvir que não era para “gente como nós”.

Que este momento sirva para nos unirmos em torno de algo maior: a construção de uma sociedade que abrace a complexidade das nossas existências. Que reconheça que somos plurais, móveis, e que isso não nos torna menos, mas muito mais.

Eva representa a possibilidade de um novo tempo. E é nosso dever assegurar que essa possibilidade floresça — com coragem, com dignidade e com amor.

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