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Judaico-Cristão? A História apagada por trás de uma expressão conveniente

A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.

A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.

Texto de Myriam Taylor

Nos últimos anos, ouvimos cada vez mais referências à chamada “tradição judaico-cristã” nos púlpitos, nos discursos políticos e até em documentos oficiais de diálogo inter-religioso. Em Portugal, esta linguagem chega tardiamente, sem que se questione suficientemente a sua origem, o seu uso político, e as suas consequências para uma teologia fiel à verdade histórica e à justiça inter-religiosa.

Mas será que a expressão “judaico-cristã” faz parte da tradição litúrgica da Igreja? E que teologia sustenta essa linguagem? A resposta surpreende: nenhuma liturgia tradicional portuguesa, nem os documentos magisteriais anteriores ao século XX, alguma vez definiram a Igreja como “judaico-cristã”.

Pelo contrário, durante séculos, o cristianismo foi construído em oposição ao judaísmo, muitas vezes alimentando o antissemitismo. A reconciliação, quando veio, foi tardia e necessária. O Concílio Vaticano II foi um ponto de viragem, com a declaração Nostra Aetate a rejeitar formalmente a ideia de culpa coletiva do povo judeu na morte de Cristo. Foi nesse contexto de reparação que, no mundo anglo-saxónico, se começou a falar em “herança judaico-cristã” como ponte de diálogo.

Contudo, essa ponte não foi construída apenas com tijolos de reconciliação espiritual. Foi também erguida sobre interesses políticos e estratégicos. Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais — sobretudo os Estados Unidos — começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria. O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda, associando valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico”.

No campo religioso, a teologia cristã dispensacionalista, popular entre evangélicos norte-americanos, ajudou a alimentar o sionismo político, com interpretações apocalípticas que viam o retorno dos judeus à Palestina como parte do “plano divino”. A instrumentalização do sofrimento do povo judeu, transformando-o em aliado estratégico no tabuleiro global, deu ao termo “judaico-cristão” um uso não inocente.

Em Portugal, esta linguagem chegou importada, mas sem crítica. Começou a aparecer em homilias, documentos catequéticos e até em textos institucionais, como se fosse parte orgânica da nossa história. Mas Portugal foi um dos países mais violentos na repressão do povo judeu: com a expulsão dos judeus sefarditas, a imposição forçada da conversão, e os autos-de-fé da Inquisição. Falar em “tradição judaico-cristã” sem reconhecer essa história de violência é reescrever o passado com tinta ideológica.

Além disso, ao insistirmos na aliança “judaico-cristã”, silenciamos outras heranças igualmente fundadoras da experiência de fé cristã: a matriz africana da Igreja primitiva (Egito, Etiópia), o papel das comunidades árabes-cristãs, a contribuição do pensamento muçulmano para a filosofia cristã medieval, e os elos espirituais com povos indígenas que hoje ainda vivem a fé de forma encarnada.

Precisamos de uma teologia mais honesta, mais plural e mais descolonizada. Não basta repetir fórmulas novas como se fossem antigas. É necessário perguntar: a quem serve essa linguagem? O que encobre? E o que exclui?

A reconciliação entre cristãos e judeus é um imperativo moral e espiritual. Mas ela deve ser feita com verdade, não com slogans. E deve abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação.

Falar de “judaico-cristianismo” sem senso crítico é repetir a liturgia do poder. E a liturgia do poder não liberta. Apenas disfarça.

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