HISTÓRIAS

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A cor que nos divide: o impacto do colorismo em países de maioria negra

“Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite”. O testemunho, escrito na primeira pessoa, é da moçambicana Shira Cátina Guambe que, a partir da experiência “como mulher negra retinta, e do contacto com diversas realidades”, propõe “uma análise crítica sobre as heranças coloniais, os padrões de beleza eurocentrados, e a invisibilidade que persiste nas relações sociais e afetivas”. O resultado lê-se no texto aqui publicado.

“Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite”. O testemunho, escrito na primeira pessoa, é da moçambicana Shira Cátina Guambe que, a partir da experiência “como mulher negra retinta, e do contacto com diversas realidades”, propõe “uma análise crítica sobre as heranças coloniais, os padrões de beleza eurocentrados, e a invisibilidade que persiste nas relações sociais e afetivas”. O resultado lê-se no texto aqui publicado.

Shira Cátina Guambe, assina esta reflexão

Texto de Shira Cátina Guambe

Falar sobre racismo estrutural é, hoje, um debate inevitável em qualquer sociedade. Mas no próprio universo negro, há uma ferida silenciosa, muitas vezes negligenciada: o colorismo. Esta forma de discriminação, baseada na tonalidade da pele no próprio grupo racial, continua a afetar profundamente como nos vemos, nos relacionamos e somos tratados mesmo em países de maioria negra. A questão que se impõe é simples, mas dolorosa: como é possível que, mesmo onde somos maioria, sejamos vítimas de uma lógica que nos hierarquiza pela proximidade à brancura? 

Colorismo: definição e legado

O termo colorismo foi popularizado pela escritora e ativista norte-americana Alice Walker, que o definiu como “o preconceito ou discriminação contra indivíduos com pele mais escura, geralmente entre pessoas do mesmo grupo étnico ou racial”. Embora nascido no contexto afroamericano, o colorismo é um fenómeno global e persistente.

Não é somente uma questão de tom de pele. É um reflexo de séculos de dominação colonial, onde tudo o que se aproximava do europeu era considerado superior: desde a cor da pele, ao cabelo, ao nariz, aos lábios, à estrutura corporal. É uma herança que atravessa gerações e geografias, e que continua a moldar o modo como construímos valor, beleza e estatuto.

Por mais insano que pareça, esta lógica persiste ainda hoje, mesmo em países onde a maioria da população é negra. Em vez de desaparecer, o colorismo ganhou novas roupagens e adaptou-se às dinâmicas atuais de poder, consumo e representação. 

Quando a cor da pele se torna critério: os impactos reais do colorismo

O colorismo não se limita ao campo da estética. Infiltra-se silenciosamente em todas as esferas da vida: nas oportunidades profissionais, na forma como somos atendidos nos serviços públicos, nas escolhas afetivas, na representação nos meios de comunicação e até nas nossas próprias aspirações.

Em muitos países africanos, incluindo o meu, não é raro vermos pessoas de pele mais clara em posições de maior destaque, sobretudo em áreas como a comunicação, moda, publicidade ou atendimento ao público. Em Moçambique, por exemplo, basta assistir a uma sequência de anúncios televisivos ou folhear uma revista para perceber que os rostos escolhidos para representar o “ideal” moçambicano tendem a ter tons de pele mais claros e traços mais próximos dos padrões eurocêntricos. O mesmo se observa em Angola, no Senegal, ou mesmo no Brasil, países com histórias distintas, mas atravessados pelo mesmo legado.

Isto não é coincidência. Segundo um estudo da Universidade da Cidade do Cabo, pessoas de pele mais clara, em contextos urbanos africanos, têm maior probabilidade de aceder a cargos bem remunerados e a serviços de saúde privados. Embora os dados variem consoante o país, o padrão é reconhecível: a tonalidade da pele continua a funcionar como um filtro social um privilégio invisível para uns, uma barreira camuflada para outros.

Contradições e invisibilidade: entre heranças coloniais e padrões eurocentrados

“Ela tem boa cor”, dizem, a elogiar uma mestiça. “O teu cabelo é duro, devias usar relaxante.” “Sou escuro, mas tenho hábitos de brancos.” Quem cresceu em contextos africanos ou afro-diaspóricos provavelmente já ouviu (ou disse) alguma destas frases. À primeira vista, parecem inofensivas. Mas carregam em si séculos de invisibilidade, de negação, de reconfiguração forçada da identidade negra.

São frases que mostram como a colonização deixou marcas profundas. Afinal, é um povo que foi anulado por séculos e levado a crer que os seus traços são feios e vulgares, que o seu cabelo é ridículo e pobre, que as curvas das mulheres negras são excessivas e traiçoeiras, que o nariz largo é deselegante. Tudo isso visando encaixar nos padrões da nova sociedade a colonial e afastar-se de tudo o que revelava a sua origem.

E é aqui que mora o perigo: estas ideias ainda enchem o nosso mundo e esvaziam a nossa essência. Porque muitos negros retintos, nascidos em África, sentem a necessidade de mudar a sua aparência para se tornarem socialmente mais aceites. Hoje, com míseras moedas, é possível comprar cremes que prometem “clarear” a pele. O mesmo se aplica ao cabelo: há uma infinidade de produtos para alisar, extensões e wigs, que poderiam ser usados como opção estética, mas que se tornam uma dependência disfarçada, uma exigência para “pertencer”.

O silêncio não nos serve: entre consciência e mudança

Falar sobre colorismo, especialmente dentro da nossa própria comunidade, não é confortável. Há silêncios que se tornaram regra, e feridas que aprendemos a disfarçar com humor ou resignação. Mas quanto mais ignoramos, mais normalizamos e mais longe ficamos de nos ver por inteiro.

Como mulher negra retinta, reconheço que sou privilegiada por ser consciente da minha identidade e isso devo, na maioria, à minha mãe. Cresci com uma mãe que exaltava a minha negritude, que me ensinou a amar-me como sou, a valorizar cada detalhe do meu ser. Foi ela quem me apresentou figuras marcantes da história negra, quem me encheu de poder e orgulho, mesmo quando o mundo lá fora insistia em me apagar. Incentivou-me a fazer os meus dreads, lembrando-me de que fazem parte da nossa história de resiliência, resistência e beleza ancestral. Ainda assim, mesmo com essa base sólida, enfrentei olhares julgadores, comentários enviesados e tentativas constantes de me moldar a padrões que nunca foram feitos para mim padrões construídos por outros, que tentavam convencer-me de que precisava de ser ajustada para ser aceite.

Mas talvez o impacto mais profundo nem seja o externo é o que acontece por dentro. O colorismo interiorizado, aquele que fere a auto-estima, é provavelmente o mais doloroso. Já ouvi, mais de uma vez, comentários como: “Fulana tem o útero limpo, vê-se pelo facto de o filho ter nascido clarinho.” Ou: “O teu cabelo nem parece ruim” como se o facto de parecer “menos crespo” fosse um elogio. E ainda aquele clássico: “Se fosses clara, eras muito mais bonita.” São frases que se dizem com naturalidade, mas que carregam séculos de rejeição, de comparação, de desvalorização dos traços negros.

Acresce a isto o fenómeno, infelizmente frequente, de vermos homens negros que se sentem vitoriosos ou “evoluídos” quando conseguem relacionar-se com mulheres brancas ou mestiças como se o amor estivesse também submetido a um código de validação racial. Basta observar o padrão em muitos atletas, músicos ou figuras públicas negras que, ao atingirem certo estatuto social ou económico, optam por estar com mulheres de pele mais clara, como se isso simbolizasse uma espécie de ascensão. Palavras, escolhas e silêncios que vão minando a identidade, como gotas constantes numa rocha frágil.

Encerrar para começar: o desafio de reimaginar-nos

Desconstruir o colorismo é um trabalho de todos os dias e de todos nós. Não basta somente culpar o sistema ou recordar as feridas do passado. É urgente olharmos para o interior da nossa comunidade e percebermos como continuamos a reproduzir, muitas vezes sem querer, lógicas que nos dividem, que nos hierarquizam, que nos enfraquecem. Precisamos de criar espaços onde todas as tonalidades de pele negra sejam valorizadas, onde o cabelo crespo seja celebrado e não tolerado, onde as crianças negras cresçam sem precisar de se comparar ou esconder.

Talvez não consigamos mudar tudo de uma vez. Mas podemos começar com o que dizemos, com o que partilhamos, com o que calamos. Podemos começar por escutar mais, por educar-nos mutuamente, por resgatar a beleza que sempre foi nossa e que nunca deveria ter sido colocada em dúvida.

No fundo, trata-se de reimaginar o que significa ser negro num mundo que tantas vezes tentou dizer-nos o contrário. E nessa reimaginação, há espaço para orgulho, para coragem e para cura.

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