HISTÓRIAS
Assata Skakur: “Sou uma revolucionária Negra”
Na despedida a Assata Skakur, ícone da luta dos Panteras Negras que morreu na passada quinta-feira, 25 de Setembro, em Cuba, publicamos uma mensagem gravada pela própria a 4 de Julho de 1973, e que extraímos da obra “Assata – Uma Autobiografia”, editada em 2022 pela brasileira Pallas. O importante testemunho, com prefácios de Angela Davis e Lennox Hinds, permite-nos mergulhar na história daquela que se tornou uma das mulheres mais procuradas pelo FBI. Nascida em Nova Iorque, a 16 de Julho de 1947, Assata iniciou a militância política na universidade, e, com a adesão aos Panteras Negras, interveio na criação de clínicas comunitárias e programas de alfabetização. Na luta pelos direitos civis, destacou-se igualmente como uma das líderes do Exército da Libertação Negra, até que, em 1973, fruto de uma emboscada policial, acabou presa e condenada à prisão perpétua. Conseguiu fugir em 1979 e, na hora da morte, aos 78 anos, permanecia asilada em Cuba. Conheça-a na primeira pessoa.
Na despedida a Assata Skakur, ícone da luta dos Panteras Negras que morreu na passada quinta-feira, 25 de Setembro, em Cuba, publicamos uma mensagem gravada pela própria a 4 de Julho de 1973, e que extraímos da obra “Assata – Uma Autobiografia”, editada em 2022 pela brasileira Pallas. O importante testemunho, com prefácios de Angela Davis e Lennox Hinds, permite-nos mergulhar na história daquela que se tornou uma das mulheres mais procuradas pelo FBI. Nascida em Nova Iorque, a 16 de Julho de 1947, Assata iniciou a militância política na universidade, e, com a adesão aos Panteras Negras, interveio na criação de clínicas comunitárias e programas de alfabetização. Na luta pelos direitos civis, destacou-se igualmente como uma das líderes do Exército da Libertação Negra, até que, em 1973, fruto de uma emboscada policial, acabou presa e condenada à prisão perpétua. Conseguiu fugir em 1979 e, na hora da morte, aos 78 anos, permanecia asilada em Cuba. Conheça-a na primeira pessoa.
Irmãos Negros, irmãs Negras, quero que saibam que eu vos amo e espero que em algum lugar dos vossos corações tenham amor por mim. O meu nome é Assata Shakur (nome de escrava joanne chesimard), e eu sou revolucionária. Uma revolucionária Negra. Quero dizer com isso que declarei guerra a todas as forças que estupraram as nossas mulheres castraram os nossos homens e deixaram os nossos filhos com a barriga vazia.
Declarei guerra aos ricos que prosperam com a nossa pobreza, aos políticos que nos mentem entre sorrisos, e a todos os robôs sem mente e sem coração que os protegem assim como às suas propriedades.
Eu sou uma revolucionária Negra e, como tal, sou vítima de toda a ira, o ódio e a calúnia que a amérika pode gerar. Assim como fez com todos os outros revolucionários Negros, a amérika está a tentar linchar-me.
Eu sou uma revolucionária Negra, e por isso me responsabilizaram e acusaram de todos os supostos crimes nos quais se acredita que uma tal mulher tenha participado. Nos supostos crimes, nos quais se presume que apenas homens estariam envolvidos, fui acusada de os ter planeado. Eles pregaram fotos supostamente minhas em agências dos correios, aeroportos, hotéis, carros de polícia, metros, bancos, televisão e jornais. Ofereceram mais de 50 mil dólares de recompensa pela minha captura e deram ordens para atirar assim que me vissem e para matar.
Eu sou uma revolucionária Negra e, por definição, isso faz de mim uma integrante do Exército de Libertação Negra. Os polícias têm usado os seus jornais e televisões para pintar o Exército de Libertação Negra como um grupo de criminosos violentos brutais e insanos. Eles apelidaram-nos de gângsteres e de pistoleiros, e nos compararam a personagens como john dillinger e má Barker. Que fique claro, que fique bem claro para qualquer pessoa que pense, enxergue ou ouça, que nós é que somos as vítimas. Vítimas, e não criminosos.
A essa altura já deveria também estar claro para nós quem são os verdadeiros criminosos. Nixon e os seus parceiros de crime assassinaram centenas de irmãos e irmãs do Terceiro Mundo no Vietname, no Camboja, em Moçambique, em Angola e na África do Sul. Como ficou provado no caso de Watergate, os principais agentes da lei neste país são um bando de criminosos mentirosos. O presidente, dois procuradores-gerais. o chefe do fbi o chefe da cia e metade dos funcionários da casa branca foram todos implicados nos crimes do Watergate.
Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós que matámos mais de 250 homens, mulheres e crianças Negros desarmados, que ferimos outros milhares nos motins que eles provocaram nos anos 60. Os líderes deste país sempre consideraram as suas propriedades mais importantes que as nossas vidas. Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós os responsáveis pelos 28 irmãos reclusos e nove reféns assassinados em attica. Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós também que matámos e ferimos mais de 30 estudantes Negros e desarmados na Jackson State – ou na Southern State.
Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não fomos nós que matámos Martin Luther King Jr., Emmet Till, Medgar Evers, Malcolm Max, George Jackson, Nat Turner, James Chaney w inúmeros outros. Não fomos nós que assassinámos pelas costas Rita Lloyd, de 16 anos de idade, Rickie Bodden, de 11 anos ou Clifford Glover, de 10. Eles apelidaram-nos de assassinos, mas não somos nós que controlamos ou impomos um sistema de racismo e opressão que mata sistematicamente pessoas Negras e do Terceiro Mundo. Embora os Negros supostamente representem cerca de 15% da população total amerikkkana, pelo menos 60% das vítimas de assassinato são Negras. Por cada porco que é morto supostamente cumprindo o seu dever, há pelo menos 50 Negros assassinados pela polícia.
A expectativa de vida dos negros é muito menor do que a dos brancos, e eles fazem de tudo para nos matar antes mesmo de nascermos. Somos queimados vivos em moradias precárias sem protecção contra incêndio. Os nossos irmãos e irmãs são acometidos diariamente por overdoses de heroína e metadona. Os nossos bebés morrem de intoxicação por chumbo. Milhões de Negros morrem em consequência de assistência médica indecente. Isto é assassinato. Mas eles têm o desplante de nos apelidarem de assassinos.
Eles chamam-nos sequestradores, mas foi o Irmão Clark Squire (que é acusado, juntamente comigo, de assassinar um polícia do Estado de Nova Jérsei) quem foi sequestrado a 2 de Abril de 1969 da nossa comunidade Negra, e mantido refém sob fiança de um milhão de dólares, no caso de conspiração dos 21 Panteras de Nova Iorque. Ele foi absolvido a 13 de Maio de 1971, com todos os outros, de 156 acusações de conspiração, por um júri que levou menos de duas horas para deliberar. O Irmão Squire era inocente. Mesmo assim foi sequestrado da sua comunidade e da sua família. Mais de dois anos da sua vida foram roubados, mas eles dizem que os sequestradores somos nós. Nós não sequestrámos os milhares de Irmãos e Irmãs mantidos em cativeiro nos campos de concentração da amérika. Noventa por cento da população carcerária deste país são Negros ou do Terceiro Mundo, pessoas que não têm como pagar fiança ou advogados.
Eles chamam-nos ladrões e bandidos. Eles dizem que roubamos. Mas não fomos nós que roubámos milhões de Negros do continente africano. Roubaram a nossa língua, os nossos Deuses, a nossa cultura, a nossa dignidade humana, o nosso trabalho, e as nossas vidas. Eles chamam-nos ladrões, mas não somos nós que desviamos mil milhões de dólares todos os anos, através de evasões fiscais, precificação ilegal, desfalques, fraudes contra os consumidores, subornos, comissões e trapaças. Eles chamam-nos bandidos, mas toda a vez que a maioria de nós Negros recebemos os nossos contracheques, nós é que estamos a ser roubados. De cada vez que entramos numa loja do nosso bairro estamos a ser assaltados. E toda vez que pagamos a nossa renda, o senhorio encosta uma arma às nossas costelas.
Eles chamam-nos ladrões, mas nós não roubamos e assassinámos milhões de índios tomando as suas terras, e depois nos autodenominámos pioneiros. Eles chamam-nos bandidos, mas não nós somos nós que roubamos os recursos naturais e a liberdade de África, da Ásia e da América Latina enquanto as pessoas que vivem lá estão doentes e a morrer de fome. Os governantes deste país e os seus lacaios cometeram alguns dos crimes mais brutais e cruéis da história. Os bandidos são eles. Os assassinos são eles. E têm que ser tratados como tal. Esses maníacos não estão aptos para me julgar, ao Clark, ou a qualquer outra pessoa Negra que esteja em julgamento na amérika. Os Negros têm que, e, inevitavelmente vamos determinar os nossos destinos.
Toda a revolução na história foi realizada através de acções, apesar de as palavras serem necessárias. Devemos criar escudos que nos protejam, e lanças que atravessem os nossos inimigos. Os Negros devem aprender a lutar lutando. Temos de aprender com os nossos erros.
Quero me desculpar com vocês, meus irmãos e irmãs Negros, por ter estado na rodovia new jersey turnpike. Eu não poderia ter cometido esse erro. Aquela rodovia é um lugar onde os Negros são parados, revistados, assediados e agredidos. Os revolucionários nunca devem estar apressados demais ao tomarem decisões descuidadas. Aquele que corre enquanto o sol dorme tropeçará muitas vezes.
Toda a vez que o Militante pela Liberdade Negra é assassinado ou capturado, os porcos tentam dar a impressão de que aniquilaram o movimento, destruíram as nossas forças, e acabaram com a Revolução Negra. Os porcos tentam também dar a impressão de que cinco ou 10 guerrilhas são responsáveis por toda a acção revolucionária conduzida na amérika. O que é uma tolice. Um absurdo. Revolucionários Negros não caem do céu. Somos gerados pelas nossas condições. Moldados pela nossa opressão. Estamos a ser fabricados em massa nas ruas do gueto, em lugares como attica, san quentin, bedford hills, leavenworth e sing sing. Eles estão a produzir milhares de nós. Muitos Negros veteranos de guerra desempregados e mães que dependem de políticas assistencialistas estão a engrossar as nossas fileiras. Irmãos e irmãs de todas as esferas da vida que estão cansados de sofrer passivamente compõem o Exército de Libertação Negra.
Há e sempre haverá, até que todo o homem, mulher e criança Negros sejam livres, um Exército de Libertação Negra. A principal função do Exército de Libertação Negra a essa altura é criar bons exemplos, lutar pela liberdade negra, e se preparar para o futuro. Temos que nos defender e não permitir que ninguém nos desrespeite. Temos de obter a nossa libertação por qualquer meio necessário.
É nosso dever lutar pela nossa liberdade.
É nosso dever vencer.
Devemos amarmo-nos e apoiarmo-nos uns aos outros.
Não temos nada a perder a não ser as nossas correntes.
Em honra de:
Ronald Carter; William Christmas; Mark Clark; Mark Essex; Frank “Heavy” Fields; Woodie Changa Olugbala Green; Fred Hampton; Lil’ Bobby Hutton; George Jackson; Jonathan Jackson; James McClain; Harold Russell; Zayd Malik Shakur; Anthony Kumu Olugbala White.
Devemos continuar a lutar.
Judaico-Cristão? A História apagada por trás de uma expressão conveniente
A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.
A empresária de impacto social Myriam Taylor reflecte sobre o conceito de “judaico-cristianismo”, neste artigo de opinião que o Afrolink publica. “Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais – sobretudo os Estados Unidos – começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria”, nota a activista pelos Direitos Humanos. “O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda”, prossegue Myriam, assinalando que o mesmo associa “valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico””. Mais do que identificar o problema, a empresária aponta a solução: “Abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação”.
Texto de Myriam Taylor
Nos últimos anos, ouvimos cada vez mais referências à chamada “tradição judaico-cristã” nos púlpitos, nos discursos políticos e até em documentos oficiais de diálogo inter-religioso. Em Portugal, esta linguagem chega tardiamente, sem que se questione suficientemente a sua origem, o seu uso político, e as suas consequências para uma teologia fiel à verdade histórica e à justiça inter-religiosa.
Mas será que a expressão “judaico-cristã” faz parte da tradição litúrgica da Igreja? E que teologia sustenta essa linguagem? A resposta surpreende: nenhuma liturgia tradicional portuguesa, nem os documentos magisteriais anteriores ao século XX, alguma vez definiram a Igreja como “judaico-cristã”.
Pelo contrário, durante séculos, o cristianismo foi construído em oposição ao judaísmo, muitas vezes alimentando o antissemitismo. A reconciliação, quando veio, foi tardia e necessária. O Concílio Vaticano II foi um ponto de viragem, com a declaração Nostra Aetate a rejeitar formalmente a ideia de culpa coletiva do povo judeu na morte de Cristo. Foi nesse contexto de reparação que, no mundo anglo-saxónico, se começou a falar em “herança judaico-cristã” como ponte de diálogo.
Contudo, essa ponte não foi construída apenas com tijolos de reconciliação espiritual. Foi também erguida sobre interesses políticos e estratégicos. Após o Holocausto, e com a fundação do Estado de Israel em 1948, as democracias ocidentais — sobretudo os Estados Unidos — começaram a usar a expressão “judaico-cristã” para justificar alianças geopolíticas, especialmente durante a Guerra Fria. O termo tornou-se uma ferramenta de propaganda, associando valores como liberdade, moralidade e democracia a uma suposta herança comum judaico-cristã — em oposição ao comunismo ateu ou ao “mundo islâmico”.
No campo religioso, a teologia cristã dispensacionalista, popular entre evangélicos norte-americanos, ajudou a alimentar o sionismo político, com interpretações apocalípticas que viam o retorno dos judeus à Palestina como parte do “plano divino”. A instrumentalização do sofrimento do povo judeu, transformando-o em aliado estratégico no tabuleiro global, deu ao termo “judaico-cristão” um uso não inocente.
Em Portugal, esta linguagem chegou importada, mas sem crítica. Começou a aparecer em homilias, documentos catequéticos e até em textos institucionais, como se fosse parte orgânica da nossa história. Mas Portugal foi um dos países mais violentos na repressão do povo judeu: com a expulsão dos judeus sefarditas, a imposição forçada da conversão, e os autos-de-fé da Inquisição. Falar em “tradição judaico-cristã” sem reconhecer essa história de violência é reescrever o passado com tinta ideológica.
Além disso, ao insistirmos na aliança “judaico-cristã”, silenciamos outras heranças igualmente fundadoras da experiência de fé cristã: a matriz africana da Igreja primitiva (Egito, Etiópia), o papel das comunidades árabes-cristãs, a contribuição do pensamento muçulmano para a filosofia cristã medieval, e os elos espirituais com povos indígenas que hoje ainda vivem a fé de forma encarnada.
Precisamos de uma teologia mais honesta, mais plural e mais descolonizada. Não basta repetir fórmulas novas como se fossem antigas. É necessário perguntar: a quem serve essa linguagem? O que encobre? E o que exclui?
A reconciliação entre cristãos e judeus é um imperativo moral e espiritual. Mas ela deve ser feita com verdade, não com slogans. E deve abrir caminho para uma teologia da justiça que também enfrente a opressão dos palestinianos, o racismo religioso e a exclusão dos outros povos da narrativa de salvação.
Falar de “judaico-cristianismo” sem senso crítico é repetir a liturgia do poder. E a liturgia do poder não liberta. Apenas disfarça.