HISTÓRIAS

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Vânia e Malika convidam-nos a ir à raiz de quem somos, para desenterrar emoções e plantar comunidade

Entre aprendizagens online, num caminho de autoconhecimento feminino e africano, a poetisa, performer e activista Vânia Andrade encontrou sustentação nos ensinamentos da farmacêutica holística Malika Rodrigues. Primeiro como seguidora dos conteúdos partilhados por Malika nas redes sociais – sob a assinatura Malika Soul –, e depois enquanto sua mentoranda, “Puma”, como também é conhecida, quis fazer dos novos saberes um espaço de ligação a outras mulheres. Nasceu assim o “Raiz Sagradu”, construído como um “círculo de mulheres africanas, onde o descanso é honrado, a consciência sábia do útero sagrado é despertada, e o amor-próprio é cultivado”. Cerca de um ano depois da estreia em Lisboa, a proposta regressa no próximo dia 29 de Novembro, em Caxias. Desta vez em formato de retiro diurno, com seis horas de duração – das 12h às 18h –, o “lugar de partilha” promete promover a reconexão a “uma tradição ancestral feminina”. As inscrições estão abertas, e o Afrolink dá-lhe a conhecer o essencial deste encontro, em conversa com as suas criadoras.

Entre aprendizagens online, num caminho de autoconhecimento feminino e africano, a poetisa, performer e activista Vânia Andrade encontrou sustentação nos ensinamentos da farmacêutica holística Malika Rodrigues. Primeiro como seguidora dos conteúdos partilhados por Malika nas redes sociais – sob a assinatura Malika Soul –, e depois enquanto sua mentoranda, “Puma”, como também é conhecida, quis fazer dos novos saberes um espaço de ligação a outras mulheres. Nasceu assim o “Raiz Sagradu”, construído como um “círculo de mulheres africanas, onde o descanso é honrado, a consciência sábia do útero sagrado é despertada, e o amor-próprio é cultivado”. Cerca de um ano depois da estreia em Lisboa, a proposta regressa no próximo dia 29 de Novembro, em Caxias. Desta vez em formato de retiro diurno, com seis horas de duração – das 12h às 18h –, o “lugar de partilha” promete promover a reconexão a “uma tradição ancestral feminina”. As inscrições estão abertas, e o Afrolink dá-lhe a conhecer o essencial deste encontro, a partir de uma conversa com as suas criadoras.

Alayo Akinkugbe, fotografada por Cameron Ugbodu

Com quantos gestos se constrói um movimento de regeneração colectiva? Que práticas e ensinamentos abandonámos, desenraizando-nos? Como honrar na actualidade a nossa ancestralidade? Onde podemos encontrar as peças que sentimos faltar ao puzzle da nossa existência?

Por mais individuais que sejam os nossos questionamentos, enfrentamentos e desligamentos humanos, há, na matriz africana, um manancial de respostas que só a comunidade consegue oferecer.

“Temos vindo a depositar muitas vezes numa só pessoa aquilo que antigamente era tribal”, observa a farmacêutica holística Malika Rodrigues, que encontrou no mundo digital, sob a identidade “Malika Soul”, uma via de divulgação e expansão de práticas ancestrais africanas, centradas no feminino.

"Não é para minimizar o homem, mas nós somos a fonte da vida. Escolhi especializar-me no cuidado das mulheres porque sou mulher, e porque estudei o corpo da mulher”.

Da alimentação às emoções, numa intersecção de alma, corpo e mente, os conteúdos de Malika cruzaram-se com os interesses de Vânia Andrade há cerca de cinco anos, entre confinamentos da pandemia.

“Ela falava de algumas coisas de que já tinha alguma informação, porque ouvia pessoas do Brasil, mas em Portugal ainda não eram assunto”.

A identificação com as mensagens, desde logo com a comunicação em língua cabo-verdiana, levou a poetisa, performer e activista a inscrever-se, em 2023 num programa de mentoria de quatro meses, encerrado com um desafio, lançado pela farmacêutica holística.

“Eu proponho sempre às mulheres que acompanho que dêem algum contributo para a nossa comunidade, seja através de um projeto, um desafio, ou uma criação”, explica Malika, partilhando as sementes que fizeram germinar o “Raiz Sagradu”, em co-criação com Vânia.

Apresentado como “um círculo de mulheres africanas onde o descanso é honrado, a consciência sábia do teu útero sagrado é despertada, e o amor-próprio é cultivado”, este é, antes de mais, um resgaste de tecnologias milenares.

“Antes recorríamos às mais velhas, às irmãs, às tias, em busca de soluções. Isso acontecia sem julgamento”, nota Malika, que com o “Raiz Sagradu” presta reverência ao passado, e promove a “devolução à prática de estarmos em grupo”.

Nutrir corpo e alma

A proposta, inaugurada no ano passado na Área Metropolitana de Lisboa, já depois de um encontro no Luxemburgo, regressa no próximo dia 29 de Novembro aos arredores da capital portuguesa, em formato de retiro diurno, e com seis horas de duração – das 12h às 18h.

 “Sentimos que aquelas horas com que iniciámos não foram suficientes. As pessoas querem mais, precisam de mais, e nós também precisamos de mais tempo, para darmos mais e melhor”, aponta Malika.

A entrega, complementa Vânia, começa com um convite ao reconhecimento.

“Queremos que as mulheres se olhem ao espelho e realmente se vejam, que parem com aquela síndrome do pensamento sempre activo, em que estão sempre preocupadas”.

Para facilitar esse processo, o encontro assume-se como “baby friendly”, permitindo que as mães possam levar as suas crianças.

Além de um espaço para cuidar dos mais novos, o “Raiz Sagradu” oferece um novo olhar para as heranças do continente-berço da Humanidade.

“Quando falamos em rituais terapêuticos africanos, falamos do que, de certa forma, nos foi tomado. São cerimónias e práticas que muitas vezes esquecemos que são nossas. Então, trazemos esse relembrar”, assinala Malika, desfiando alguns elementos.  “O yoga vem daí, o movimento, a respiração, a meditação e os tambores também”.

A farmacêutica junta ainda a água e a nutrição a essa rememorialização. “Fazer o resgate da nossa alimentação é uma consciência que trago muito às nossas mulheres, porque nós somos natureza. Então, só a natureza nos pode curar, tratar e maximizar”.

Com este entendimento, o retiro vai incluir um catering completamente vegano, a que se junta uma mesa de frutas, para acompanhar com uma selecção de chás.

A par das escolhas naturais para nutrir o corpo, que Malika promove igualmente com o seu projecto Alma Food, o “Raiz Sagradu” convida-nos a desenterrar emoções.

“Há questões comuns ao facto de sermos mulheres africanas, como virmos de famílias em que só há uma mãe, ou a forma pouco emocional de nos relacionarmos. Falamos pouco sobre isso”, observa Vânia, sublinhando a importância de o fazermos, num espaço seguro. “Ouvir que há outra mulher a vivenciar aquilo que nós estamos a viver, e perceber, finalmente, que não estamos sozinhas é único”.

Sem temas tabu, o “Raiz Sagradu” propõe-se restabelecer “a parte de estarmos juntos e navegarmos as complexidades da vida”, reitera Malika, sustentada na própria jornada.

“Sentia mesmo falta de ter práticas com que me identificasse, de ter pessoas com quem visse que poderia haver sinergia. Então, foi a partir dessa necessidade pessoal que me virei para a nossa comunidade e comecei a fazer a mentoria”.

Nesse caminho, e já depois de preencher os ‘buracos’ em que tropeçou, a farmacêutica encontrou a sua expressão holística.

“Há mais de 15 anos, quando a saúde mental nem era mencionada, já tinha feito terapia, e inclusive psicoterapia, mas não encontrava psicólogas negras. Senti que havia ali um gap em que, culturalmente, linguisticamente, e em termos de experiência, não me podia expressar. E não era culpa da psicoterapeuta. Era simplesmente algo que ela também não tinha para me oferecer”.

Perante essas sessões de impossibilidade, Malika abriu o seu próprio caminho de possibilidades.  “Nesse processo, encontrei a minha mentora, que é a Queen Afua, uma mulher africana também, muito conhecida nos Estados Unidos pelo trabalho que faz há mais de 50 anos. Aí encontrei essa parte holística da componente espiritual da mulher negra”.

A metamorfose vivida pela farmacêutica, ganha, na história de Vânia, força identitária. “Tenho pensado muito no que significa ser africana, e sentido, cada vez mais, que é ser esta pessoa em que me estou a tornar: alguém que respeita os seus limites, que escolhe estar em lugares onde é acolhida, e pode fortificar a africanidade que às vezes se vai desligando, em locais que não nos permitem expressar a individualidade”.

Pelo contrário, o “Raiz Sagradu” promete uma “experiência única”, orientada “para acolher, nutrir e saudar” cada mulher, despertando a escuta da sua verdade mais profunda.

“Trazemos essa proposta de como, juntas, podemos fazer esse trabalho e caminhar com outro olhar para metabolizar de forma saudável a raiva, muito presente na mulher africana”, conclui Malika, apontando também para a necessidade de “metabolizar o nosso luto, as nossas perdas, metabolizar doenças que possamos ter”.

Tudo sem perder de vista a máxima que impera no sagrado feminino: a cura de uma é a cura de todas.

Pode inscrever-se no retiro “Raiz Sagradu” aqui. 

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Dança, canta, partilha vivência ancestral, segue para o Sacerdócio no Candomblé e dá-se a ouvir na Gulbenkian – ela é Nara Couto

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto fez carreira como bailarina antes de soltar a voz nos palcos. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes.

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, Nara Couto viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna. No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco. “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”, conta ao Afrolink. Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, aventurou-se na música. Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, numa assinatura construída sob o impulso criativo de Sara Tavares, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”. Antes, gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”. Agora a caminho do Sacerdócio no Candomblé, a artista, criadora da oficina de movimento “Vivência Ancestral”, vê nesta religião uma forma de preservação da presença de África no Brasil. “O Candomblé é um lugar de resistência muito grande”. No próximo sábado, 5 de Julho, é dia de a ouvirmos e aplaudirmos no Jardim de Verão da Gulbenkian, onde actua às 17h. A entrada é livre, mediante levantamento de bilhetes. Vamos!

Num barco no meio do mar, entre espectáculos por Portugal, Nara Couto encontrou em Sara Tavares o balanço que, até hoje, marca a sua identidade musical.

“Eu disse: é isso! Estou conectada. Foi a primeira vez que ouvi Balancê, e mexeu muito comigo”.

Mergulhada na voz e composição de Sara, Nara fez dela assinatura, e letra a letra, dá-nos a escutá-la no próximo sábado, 5 de Julho, às 17h, no Jardim de Verão da Gulbenkian.

A caminho do concerto, o Afrolink foi conhecer mais sobre a artista, que firmou carreira como bailarina, antes de soltar a voz como cantora.

“As pessoas achavam que eu tinha que cantar um pouco mais forte, mas eu tinha a Sara Tavares como referência. E a Sara cantava sobre amor e sobre a leveza”.

Ainda a refazer-se da dor da perda da cantautora – que teve a oportunidade de ver actuar num concerto em Cabo Verde –, Nara conta como encontrar a voz de Sara, falecida em 2023, a inspirou a querer conhecer mais.

“África chegou até mim porque eu pesquisava muito. E quando comecei nessa busca, a minha referência foi a Sara Tavares, inclusive para a capa de um disco”.

Entretanto embalada também por outras músicas de criação africana, a baiana partilha múltiplas inspirações.

“Em Cabo Verde, eu comecei a ouvir os Tubarões e o Gil Semedo”, assinala, antes de revelar uma companhia de todos os dias.

“Sou muito fã do Paulo Flores – o tio Paulo –, que eu oiço sempre, e com quem tenho contacto”.

A ligação, antecipa Nara ao Afrolink, encaminha-se para uma parceria em fase de construção: “Estamos a conversar sobre projectos futuros”.

Da Bahia para “Outras Áfricas”

Nascida no bairro baiano do Curuzu, que apresenta como o “mais negro fora de África”, a artista viveu na Bahia de origem até aos 11 anos, idade em que se mudou para a Suíça, destino de fixação materna.

No regresso a casa, o Balé Floclórico da Bahia fincou-lhe as raízes no palco.  “Comecei a dançar aos 17 anos. Então, fiquei no Brasil para construir minha carreira”.

Filha do coreógrafo e director artístico Zebrinha, Nara aprendeu a arte da dança com o pai, e foi já depois de actuações em salas de todo o mundo como bailarina, que se aventurou na música.

Primeiro enquanto backing vocal de figuras como Gilberto Gil, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e desde 2017 em nome próprio, a artista está a promover o segundo álbum, intitulado “Orí”.

Antes desta produção, que se vai estender a uma curta-metragem, a baiana gravou o single “Linda e Preta” – transformado numa “música de impulsionamento da auto-estima de mulheres negras” –, e lançou o projecto “Outras Áfricas”, onde se afirma como “diplomata cultural”.

“A intenção é fazer com que a gente realmente faça grandes pontes”, sublinha, depois de uma viagem pela Guiné-Bissau, onde as ligações musicais incluíram um encontro com a Secretária de Estado da Cultura, Nancy Alves Cardoso.

“Imediatamente também escrevi para o Secretário de Cultura do Estado da Bahia para falar: ‘Estou aqui em Guiné-Bissau, estamos conversando e precisamos conversar mais”.

Nara promove e aprofunda esse diálogo a partir do projecto “Outras Áfricas”, que completou uma década em 2024.

A iniciativa, que num primeiro momento foi desenvolvida no Brasil, através do encontro com músicos africanos aí radicados, volta-se agora para os PALOP.

Depois do voo guineense, que teve como anfitrião e parceiro Mû Mbana, a baiana planeia viagens a Cabo Verde e Angola, sempre com ligações de palco e de estúdio.

“Estamos organizando para que todo mês eu possa estar compartilhando uma música com um artista do continente africano”, antecipa Nara, apontando Mû Mbana como o primeiro nessa frente de gravações. 

Danças com ancestrais e Sacerdócio no Candomblé

A rota de expressão e projecção musical combina-se sempre com movimento, hoje traduzido, para além dos palcos, no projecto “Vivência Ancestral”.

A proposta, assinala-se na sinopse, recorre a “momentos práticos multireferenciais das culturas negras e da transmissão oral de conhecimento”, para “criar uma experiência significativa que contribua para o bem-estar pessoal e colectivo, bem como para a preservação das tradições ancestrais a partir da dança”.

Já apresentada em Lisboa e no Porto, a vivência, explica Nara, é sobre ela própria “ser um instrumento que transporta uma mensagem que já foi passada pelos mais velhos”. O processo, sublinha, está enraizado na sua vida.

“É dessa forma que eu também adquiro a minha sabedoria, eu sento e converso com os mais velhos, eu leio livros. Eu ouço o vento, eu ouço o silêncio para depois compartilhar”.

Desengane-se, por isso, quem vai em busca de um workshop de dança. Na “Vivência Ancestral”, Nara entrega conexão – de cada pessoa consigo própria, com as suas raízes, com a natureza, com o mundo e a humanidade.

“Estamos todos vivendo nosso céu e nosso inferno ao mesmo tempo. Então, quando eu falo alguma coisa, se for importante, aquela pessoa vai acolher e utilizar no dia-a-dia”.

Comunicadora ancestral, a artista coloca em cada mensagem que partilha a intenção “de que as pessoas fiquem bem e que vivam melhor”.

O propósito encaminha os seus passos para o Sacerdócio no Candomblé, que cultua como uma forma de preservação da presença de África no Brasil.

“A forma como a gente come, tanto as comidas, como os alimentos; a forma como nós cantamos, como nós dançamos, tudo isso que um africano que vai no Brasil vê, reconhece e diz ‘Isso é África’, foi preservado através do Candomblé”.

Muito mais do que uma religião, Nara realça que “o Candomblé é um lugar de resistência muito grande”.

Axé!

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