HISTÓRIAS
“Malês”: a maior revolta de pessoas escravizadas no Brasil, contada por Antonio Pitanga
Aos 86 anos, o multipremiado actor e realizador brasileiro Antonio Pitanga apresenta-nos o filme da sua vida: “Malês”. A produção, que levou quase três décadas até chegar ao grande ecrã, transporta-nos para a Bahia de 1835, ano marcado pelo Levante dos Malês. O acontecimento é apontado como a maior rebelião de pessoas escravizadas no Brasil, e povoa o imaginário de Pitanga desde a infância, quando “o desejo de contar histórias ainda por conhecer” começou a ganhar forma. A busca por saber encaminhou-lhe os passos para o antigo Alto Volta, hoje Burkina Faso, onde, em 1964, procurou ir à raiz dos seus questionamentos: “De onde eu vim?”. As memórias da incursão africana, bem como dos ímpetos de criança, foram partilhadas pelo autor, no final de Novembro, em Berlim, após a exibição de “Malês”, longa exibida na sessão de abertura do Cine Brasil. Ainda sem data de apresentação em Portugal, o filme já marcou presença em países africanos, e suscita o interesse de universidades americanas, empenhadas em conhecer esse importante capítulo da resistência negra. Seja onde for, Pitanga defende a importância de “contar uma história dessas, e ter a alegria de a levar para as favelas, os quilombos, e África”. O Afrolink espera que a viagem de “Malês”, com destino a um maior conhecimento sobre a Escravatura, chegue às salas portuguesas. Até lá, deixamos-vos com um encontro pleno de lições e de inspiração.
Aos 86 anos, o multipremiado actor e realizador brasileiro Antonio Pitanga apresenta-nos o filme da sua vida: “Malês”. A produção, que levou quase três décadas até chegar ao grande ecrã, transporta-nos para a Bahia de 1835, ano marcado pelo Levante dos Malês. O acontecimento é apontado como a maior rebelião de pessoas escravizadas no Brasil, e povoa o imaginário de Pitanga desde a infância, quando “o desejo de contar histórias ainda por conhecer” começou a ganhar forma. A busca por saber encaminhou-lhe os passos para o antigo Alto Volta, hoje Burkina Faso, onde, em 1964, procurou ir à raiz dos seus questionamentos: “De onde eu vim?”. As memórias da incursão africana, bem como dos ímpetos de criança, foram partilhadas pelo autor, no final de Novembro, em Berlim, após a exibição de “Malês”, longa exibida na sessão de abertura do Cine Brasil. Ainda sem data de apresentação em Portugal, o filme já marcou presença em países africanos, e suscita o interesse de universidades americanas, empenhadas em conhecer esse importante capítulo da resistência negra. Seja onde for, Pitanga defende a importância de “contar uma história dessas, e ter a alegria de a levar para as favelas, os quilombos, e África”. O Afrolink espera que a viagem de “Malês”, com destino a um maior conhecimento sobre a Escravatura, chegue às salas portuguesas. Até lá, deixamos-vos com um encontro pleno de lições e de inspiração.
Foram precisos 29 anos de persistência criativa, mais de oito décadas de experiência e consciência de vida, e séculos de resistência negra para contar esta História. Nela encontramos a Bahia de 1835, e um dos acontecimentos que, desde a infância, habita o imaginário de Antonio Pitanga: o Levante dos Malês, reconhecido como a maior rebelião de pessoas escravizadas no Brasil.
“Criança ouve tudo. Sabe de coisa que até Deus duvida, né? Os mais velhos vão falando e a gente vai escutando, formando uma narrativa”, aponta o actor e realizador, revisitando os primeiros anos de uma existência colectivamente predestinada, porque “ninguém nasce no Pelourinho por acaso”.
Filho de Maria Natividade, “neta de escravo que com 12 anos já era empregada doméstica”, Pitanga recorda como o seu bairro-berço, situado em Salvador, bem no coração da Bahia, “é uma referência de tragédia”.
As memórias, fixadas nos horrores da Escravatura, recuam aos tempos em que “os senhores levavam os ‘seus negros’ para assistir outros negras e negros serem chicoteados”, dissuadindo-os de incorrer nas mesmas ‘tentações’.
Os capítulos do passado, aqui descritos pelo realizador, desfiam-se em Berlim, depois da exibição no grande ecrã do Cine Brasil, de “Malês” – o filme da vida de Antonio Pitanga, baseado na obra do historiador João José Reis.
Aos 86 anos, e com seis décadas de carreira, construída no teatro, na televisão e no cinema, o baiano cumpre, com a nova produção, “o desejo de contar histórias ainda por conhecer”.
A busca por mais saberes encaminhou-lhe os passos para o antigo Alto Volta, hoje Burkina Faso, onde, em 1964, procurou ir à raiz dos seus questionamentos: “De onde eu vim?”.
Da incursão africana – cumprida numa rota alargada, com passagens por Benim, Togo, Nigéria e Senegal –, aos ímpetos da infância, Pitanga faz questão de sublinhar que transporta nas vivências múltiplas influências ancestrais.
“Ninguém nasce de um acidente”, observa, evocando todo o movimento negro que o – e nos – antecede, e que tem a sua génese na oralidade, “tatuando alma, pele e corpo”.
Não estranha, por isso, que, em contraciclo àquilo que alguns colegas conjecturavam – de que o Brasil poderia estar a falar holandês, espanhol ou inglês, se outras ocupações coloniais, que não a portuguesa, tivessem vingado –, o cineasta sempre tenha defendido outra hipótese. “Eu dizia: não, o que eu queria era falar árabe, como os negros Malês, sequestrados da Mãe África e escravizados no Brasil”.
Protagonismo feminino e humanização
O fascínio de Pitanga por essa presença negra, africana e muçulmana estendia-se à Educação que acumulavam. “Eles eram letrados, tinham conhecimento da Física, da Engenharia, e isso, na minha cabeça de jovem brilhava”.
Consciente de que aquilo que não está nos anais diz tanto ou mais do que tudo o que está, o autor de “Malês” assume a responsabilidade de preencher vazios históricos a partir da sua obra.
“Tenho a bagagem do século passado, mas sou o homem de hoje, meu tempo é agora, meu futuro é no presente”, nota, explicando que construiu o filme atento às possibilidades de novos encontros.
“Para dialogar com vocês, com meus netos, meus bisnetos, com o ensino fundamental, a Universidade Pública, com os quilombos e os povos, eu tenho que interagir no olhar do século XXI, em pleno 2025. Então, quando você se depara com uma história como essa, o que faz?”.
Pitanga optou por reconhecer a presença feminina, humanizando-a.
“As mulheres não estão nos anais. Não tinham nem direito de fala. É sempre o marido, o homem. Então, eu disse: não, vamos trazer a mulher, e dividir o protagonismo”.
O resultado comprova-se em “Malês”, uma “história real”, que nos permite conhecer “as cabeças que fizeram o Levante”, nomeadamente o Pacífico Licutan, interpretado pelo próprio Pitanga.
Ao mesmo tempo, o filme oferece-nos a oportunidade de homenagear todas aquelas que tornaram possível a resistência, o combate e os caminhos da libertação negra, indissociáveis da reivindicação do direito de Amar.
Não é por acaso que as primeiras cenas de “Malês” nos transportam para um casamento, violentamente interrompido por acção do sistema escravocrata, da mesma forma que a existência de um parto na trama está longe de ser acidental.
Sem nunca se desligar de uma direcção humanizadora, o filme desconstrói igualmente a vilania de Sabina, personagem interpretada por Camila Pitanga.
Ainda que os registos históricos a apontem como a denunciante dos planos da revolta, sabotados a partir da sua interferência, o realizador retirou-lhe o rótulo de traidora.
“Criei, com o meu irmão cubano, Antonio Molina [também cineasta], um diálogo com Iyá Nassô, para se entender que o gesto dela era de Amor. E por Amor se faz qualquer coisa”. Até mesmo denunciar o próprio marido, com a ilusão de que seria poupado no embate com os agentes do sistema escravocrata.
“Eles estão preparados para a nossa força, não para a nossa inteligência”
A par da homenagem ao contributo das mulheres negras para a História da nossa libertação, “Malês” distingue-se também por exibir outra face pouco visibilizada do papel feminino nesse passado: mais do que ‘meras’ cúmplices dos crimes da Escravatura, as mulheres brancas orquestraram-nos tão ou mais cruelmente do que os homens.
Quão longe estamos de conhecer e reconhecer essa realidade? E de perceber que, sem esse encontro com o passado, as relações raciais vão continuar minadas de desconfiança?
Enquanto viaja por países africanos e suscita o interesse de universidades americanas, nomeadamente Princeton, Pensilvânia e Harvard, “Malês” permanece sem data de apresentação em Portugal.
“Quando levei o filme agora, em Burkina Faso, o pessoal lá chorou. Eles diziam: Gratidão, Pitanga, gratidão!”, partilha o realizador, assinalando igualmente o entusiamo da academia americana em discutir o levante baiano.
“Eles sabem tudo do Haiti [da Revolução], mas perguntam: que negros são esses, letrados, do Brasil, que fizeram tudo para se organizar?”.
A resposta prende-nos ao grande ecrã, onde “Malês” projecta o poder da mobilização e unidade negra. “Nunca fomos tantos. Uma hora vamos ser todos”, ouvimos numa das cenas, enquanto noutra se apresenta aquele que talvez seja o “perigo” que desde sempre mobiliza o opressor branco contra os povos negros. “Eles estão preparados para a nossa força, não estão preparados para a nossa inteligência”.
Seja como e com quantos for, Pitanga defende a importância de “contar uma história dessas, e ter a alegria de a levar para as favelas, os quilombos, e África”.
O Afrolink espera que a viagem de “Malês”, com destino a um maior conhecimento sobre a Escravatura, chegue às salas de cinema lusas, e que, a partir delas, encontremos renovada e reforçada inspiração para continuar a luta, à letra do que nos lega a obra de Antonio Pitanga: “Parados não podemos ficar (...) / Temos que levantar. Todos juntos”.
Neste movimento, prosseguindo com a força argumentativa do filme, que nunca percamos de vista o compromisso colectivo, por mais especificidades individuais que a nossa mobilização agregue. “Se o mundo quer fazer o meu filho de escravo, eu quero é mudar o mundo”. Avancemos!